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Sistemas educacionais e a profissão docente no contexto brasileiro

CAPÍTULO 1 – DA GÊNESE DO TRABALHO DOCENTE E SEU STATUS

1.2 Formação dos sistemas educacionais no contexto brasileiro

1.2.2 Sistemas educacionais e a profissão docente no contexto brasileiro

A gênese e o desenvolvimento da profissão docente no Brasil acompanham o percurso traçado pela docência na maioria dos países ocidentais, como foi observado na primeira parte deste

capítulo. Atrelado inicialmente ao clero, os professores irão aderir ao movimento liberal de estatização dos sistemas de ensino ao longo do século XIX, culminando em seu processo de funcionarização no Século XX.

Desde a década de 1930 até os anos finais da década de 1970, o Brasil experimentou um período de intensa modernização industrial e financeira. Marcado por períodos como a Era Vargas, o governo de Juscelino Kubitschek e o “milagre econômico” da década de 1970, o país viveu uma série de 30 anos (entre 1950 e 1980) em que seu Produto Interno Bruto cresceu menos de 4% apenas em 1956 e nos anos entre 1963 e 1965 (BAER, 2002).

Tal crescimento acelerado do capitalismo no país, conforme visto anteriormente, refletiu na organização dos sistemas educacionais. Todavia, ao período da ditadura militar reservam-se transformações profundas na carreira do magistério público. Este lapso no desenvolvimento dos sistemas de ensino do Brasil tornou-se um divisor de águas no que diz respeito à posição ocupada pelos professores na hierarquia sócio-ocupacional e, consequentemente, ao seu status social.

As reformas do ensino superior e da educação básica, em 1968 e 1971, respectivamente, revelam-se como produto do crescimento econômico acelerado que o país vivenciou, sobretudo no governo militar, e da importância da conformação da política educacional ao modelo de desenvolvimento que se seguia (FERREIRA JR.; BITTAR, 2006; VALLE, 2003). Para Ferreira Jr. e Bittar (2006), a educação nesse período, sob a autoridade de um Estado repressivo, esteve instrumentalizada como aparelho ideológico deste, tornando-se um dos meios mais profícuos para a difusão da ideologia que respaldou o regime ao longo de seus 24 anos. Segundo os autores,

pautado pela repressão, o Estado editou políticas e práticas que, em linhas gerais, redundaram no tecnicismo; na expansão quantitativa da escola pública de 1º e 2º graus às custas do rebaixamento da sua qualidade; no cerceamento e controle das atividades acadêmicas no interior das universidades; e na expansão da iniciativa privada no ensino superior (FERREIRA JR.; BITTAR, 2006, p. 1161).

As reformas efetivadas no governo militar ficaram marcadas pelas mudanças estruturais significativas que engendraram nos sistemas de ensino, cujos objetivos pautaram-se na adequação da formação escolar às demandas criadas pelo “milagre econômico”. Por um lado, a reforma do ensino superior de 1968 interveio sobre a formação profissional docente. A formação em nível superior passou a ser exigida para atuação no ensino de 2º grau, antigo

Colegial. Os cursos de licenciatura curta, ofertados em larga escala no período noturno das faculdades privadas, foram criados para atender à crescente expansão do ensino derivada, dentre outros aspectos, da extensão da obrigatoriedade escolar, que passou de 4 para 8 anos, representando o ensino de 1º grau criado pela LDB de 1971. Essa célere formação de professores apresentou, dentre outros problemas, lacunas em sua formação pedagógica e a fragmentação dos conteúdos abordados (FERREIRA JR.; BITTAR, 2006; VALLE, 2003). A expansão quantitativa da escola e a formação pedagógica aligeirada e insuficiente, associadas ao arrocho salarial experimentado pelos docentes ao longo da década de 1970, culminaram na constituição de uma categoria de professores distinta daquela que perpetuara até então (FERREIRA JR.; BITTAR, 2006, 2010). Segundo Ferreira Jr. e Bittar (2010), a composição social da categoria dos professores de 1° e 2° graus sofreu transformações no que se refere à sua origem econômica e cultural. Para os autores, com a difusão do setor privado do ensino superior após a reforma de 1968, frações das camadas médias urbanas populares passaram a ter acesso aos cursos noturnos de licenciatura curta (com dois anos de duração), resultando em uma nova categoria que

assumiu uma configuração profissional que combinava extração social assentada nas classes médias populares e precária formação educacional superior [...] isto é, deixou de ser uma categoria profissional com origem social nas camadas médias altas e segmentos periféricos das elites econômicas e políticas, cujo capital cultural havia sido amealhado durante a chamada “idade de ouro” da escola pública brasileira (FERREIRA JR.; BITTAR, 2010, grifo nosso).

Ferreira Jr. e Bittar (2006) salientam, ainda, que o período militar marcou um grande processo de arrocho salarial para os docentes. Segundo os autores, o professorado do ensino básico, no conjunto dos trabalhadores assalariados provenientes das classes médias, foi uma das categorias profissionais mais atingidas pelas medidas econômicas do período, o que reduziu sobremodo a massa de trabalhadores no país.

A combinação destes elementos – expansão quantitativa da escola, formação insuficiente e aligeirada e arrocho salarial – irá alavancar um intenso processo de deterioração da profissão docente, um processo de proletarização, cujo efeito da perda do poder aquisitivo, dentre outros aspectos, teve papel central na mobilização da categoria, culminando em sucessivas greves estaduais nos anos finais da década de 1970 (FERREIRA JR.; BITTAR, 2006, 2010).

1.2.2.1 A identidade docente ligada ao operariado e a fragmentação da categoria

As reformas educacionais vividas nas décadas finais do século XX organizaram o trabalho educativo com base no modelo empresarial, submetendo os professores, reconhecidos socialmente por sua competência, às pressões e aos novos mecanismos de controle impostos pelas esferas tecnoburocráticas. Segundo Arroyo (2011), esse modelo “levou os ordeiros professores públicos a se sentirem não servidores do público, mas força de trabalho vendida a um patrão chamado Estado” (ARROYO, 2011, p. 54). A proletarização à qual o magistério do ensino básico esteve submetido colocou-o em pé de igualdade com os trabalhadores da produção. Isto é, expôs o docente à mesma condição material de vida daqueles trabalhadores (ARROYO, 2011; FERREIRA JR.; BITTAR, 2006, 2010; OLIVEIRA, 2010c). Produto dessa identificação do professorado com o operariado se refletirá, sobretudo, na identidade de luta entre trabalhadores da produção e trabalhadores do ensino e no apoio mútuo entre eles, principalmente destes primeiros sobre as reivindicações dos educadores frente ao Estado (ARROYO, 2011). Essa identificação entre esses grupos de trabalhadores materializa-se na constituição da Confederação dos Professores Primários do Brasil, instituição de caráter associativo criada em 1962, mas que terá uma atuação mais evidente na década de 1970, agora com o nome de Confederação dos Professores do Brasil (CPB). Posteriormente, já na década de 1990, a CPB, filiada à Central Única dos Trabalhadores (CUT), passou a se chamar Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), a qual unificou várias federações setoriais da educação em uma mesma entidade de nível nacional (CNTE, 2013). A identificação dos trabalhadores da educação e do proletariado se deu em um momento em que o movimento sindical se organizava e tomava força, embora a vinculação de funcionários públicos aos sindicatos tenha sido permitida apenas a partir da Constituição de 1988. Tal movimento pautou-se não na formação de um estatuto profissional, um dos elementos constituintes de uma profissão, mas sim na “orientação classista trazida pelo ‘novo sindicalismo’ pressupondo a organização horizontal” (OLIVEIRA, 2010c, p. 28).

A hierarquização do trabalho do modo de produção capitalista trouxe à docência, assim como ao operariado, aspectos de diferenciação dentro da categoria que fragmentou a classe dos trabalhadores em educação. Tal divisão parte dos centros de formação de professores surgidos a partir das Escolas Normais. Segundo Arroyo (2011), “em toda empresa capitalista, a distinção entre trabalhadores especializados e não especializados não tem por objetivo a valorização

destes, mas sua depreciação sob o protesto de não serem especializados” (ARROYO, 2011, p. 59-60).

O que ocorreu (e ocorre) com a docência não foge a essa “regra”. O surgimento da formação específica nas Escolas Normais trouxe à categoria uma depreciação do trabalho daqueles não normalistas, sentida, sobretudo, nos ganhos salariais. Com a formação dos “especialistas”, os docentes normalistas se viram em uma situação semelhante aos de seus predecessores: tiveram seu salário rebaixado e a depreciação de seu trabalho por não possuir o conhecimento especializado ofertado pelos centros de formação (ARROYO, 2011).

A partir desse novo patamar na educação, a fragmentação desses trabalhadores torna-se evidente. Enquanto os regentes de classe tiveram seu trabalho depreciado pelo surgimento de novas formações, os especialistas, longe da regência de classe, por se constituírem um corpo profissional especializado, pouco contribuíram com as lutas dos docentes pela valorização da carreira (ARROYO, 2011).

A orientação dos sindicatos nas décadas seguintes aos anos 1970 prezou pela busca de uma identidade única que combinasse todos os trabalhadores da educação – de professores e especialistas a funcionários administrativos e de apoio (OLIVEIRA, 2010c). Em 1990, a Confederação dos Professores do Brasil (CPB), após seu congresso nacional extraordinário, unificou todas as categorias dos educadores e funcionários da escola pública em uma única entidade: a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), marcando, segundo Ferreira Jr. e Bittar (2010), o início de uma outra fase da luta sindical dos professores, agora com a denominação de trabalhadores da educação.

A primeira década do século XXI iniciou-se com um amplo debate em torno da valorização da carreira do magistério, embasado, sobretudo, pelo artigo 206 da Constituição Federal de 1988, o qual dispõe sobre a obrigatoriedade dos planos de carreira e do piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação escolar pública (BRASIL, 1988). Nesse contexto, a discussão atenuou-se sobre a definição da categoria dos profissionais da educação desaguando nas resoluções da Lei n. 12.014, de 6 de agosto de 2009, que altera o artigo 61 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e discrimina as categorias de trabalhadores que se devem considerar profissionais da educação:

Art. 61. Consideram-se profissionais da educação escolar básica os que, nela estando em efetivo exercício e tendo sido formados em cursos reconhecidos, são:

I – professores habilitados em nível médio ou superior para a docência na educação infantil e nos ensinos fundamental e médio;

II – trabalhadores em educação portadores de diploma de pedagogia, com habilitação em administração, planejamento, supervisão, inspeção e orientação educacional, bem como com títulos de mestrado ou doutorado nas mesmas áreas;

III – trabalhadores em educação, portadores de diploma de curso técnico ou superior em área pedagógica ou afim.

Parágrafo único. A formação dos profissionais da educação, de modo a atender às especificidades do exercício de suas atividades, bem como aos objetivos das diferentes etapas e modalidades da educação básica, terá como fundamentos:

I – a presença de sólida formação básica, que propicie o conhecimento dos fundamentos científicos e sociais de suas competências de trabalho;

II – a associação entre teorias e práticas, mediante estágios supervisionados e capacitação em serviço;

III – o aproveitamento da formação e experiências anteriores, em instituições de ensino e em outras atividades (BRASIL, 2009a).

Embora a legislação considere todo esse corpo de funcionários como “profissionais da educação”, na prática existe a nítida separação destes grupos: professores e especialistas, de um lado; funcionários administrativos e de apoio, de outro. A terceirização dos serviços prestados por esses últimos é um elemento assinalado como de extrema relevância para tal fragmentação (OLIVEIRA, 2010c). Outros aspectos que corroboram com essa separação dizem respeito à titulação e à remuneração desses grupos, em que os primeiros auferem patamares maiores. Atribui-se também a essa fragmentação a natureza das atividades internas da escola das quais se ocupam esses trabalhadores, sendo que professores e especialistas são, em geral, “os responsáveis pela atividade-fim da escola, o que nos leva a indagar se de fato é possível pensar em uma identidade docente que inclua os que não estão diretamente envolvidos com os processos de ensino e aprendizagem” (OLIVEIRA, 2010c, p. 29).