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Sob o olhar dos estudos de gênero

No documento R EESCRITAS DAN AÇÃO (páginas 62-68)

1. Lugares periféricos

1.4 Sob o olhar dos estudos de gênero

As questões de gênero não são, de um modo geral, elaboradas nas crônicas de exílio de Onetti. Há poucas menções relacionadas ao assunto e, quando ocorrem, é de forma superficial. O alargamento de diferenças que se constroem dentro do sistema patriarcal mundial herdeiro da Europa são reiteradamente mencionadas em um tom de rechaço. Elas possuem naturezas diversas: Rockefeller sustentando o imperialismo norte-americano que financiou ditaduras no sul do continente; violências étnicas e raciais, como a escravização de negros, os horrores do apartheid sul-africano, o genocídio indígena; o inferno vivenciado pelos povos do Oriente Médio; a pobreza alastrada pelo continente africano e em alguns países da Ásia.

A violência física experimentada por um altíssimo número de mulheres no mundo é um dado mencionado como uma manchete de jornal que causa espanto, mas não chega a ser desenvolvido como um tópico exclusivo. Em “Confissões de um leitor”, Onetti tece breves comentários a respeito das categorias de leitor-macho e leitor-fêmea presentes em O jogo da amarelinha de Cortázar das quais discorda, defendendo que a colaboração na leitura independe do gênero do leitor:

Em O jogo da amarelinha, Julio Cortázar nos fala da necessidade de chegar a provocar o nascimento e a perdurabilidade do leitor macho, o que participa na obra e até colabora nela, em oposição ao leitor-fêmea que se desperna e se converte em mera receptividade. Deixo de lado a facilidade de assegurar a existência da fêmea ativa e não só diante de um romance. Digo – qualquer psicólogo faria um diagnóstico coincidente - que todo ser humano, qualquer que seja o sexo que lhe impuseram ou preferiu, não pode ler um relato sem exercer uma colaboração, do prólogo ao epílogo. (ONETTI, 2009b, p.547).

40 Ao comentar a epígrafe apócrifa de Borges no romance, Walter Carlos Costa diz: “Chama a atenção, em primeiro lugar, nessa novela tardia, que é também uma novela-despedida e uma novela testamento, a epígrafe.”(COSTA, 2010, p.106)

63 Portanto, as conclusões que percorro a respeito do tema central deste capítulo – a articulação entre a razão ocidental, o balbucio teórico e os escritos não-ficcionais do exílio de Onetti – não permitem que delineie, para além das duas menções acima, algo contundente sobre as questões de gênero do ponto de vista do escritor.

Por outro lado, tanto Achugar quanto Mignolo acenam para as conquistas da crítica feminista em vislumbrar certos aspectos que seriam bastante frutuosos para a crítica latino-americana. Mignolo (1996, p.23) observa que introduzir o gênero e o feminismo no amplo esquema da crítica pós-colonial – inserindo-se aí, obviamente, o que ele compreende por pós-ocidental na América Latina – permite empreender avanços epistemológicos em dois âmbitos que se complementam: “a rearticulação da cumplicidade entre a modernidade e a violência da razão ao descobrir a supressão de qualidades secundárias do campo do conhecimento” e “a abertura do trabalho erudito e acadêmico à esfera pública”. O autor observa que na medida em que práticas teóricas no campo das minorias (aí incluída a teorização pós-ocidental) ganham força, transformam-se os terrenos epistemológico, social e cultural.

Achugar, por sua vez, aciona o questionamento de Nancy Harstock acerca de quais seriam os temas políticos da agenda acadêmica feminista considerando-se a relação entre ativistas e acadêmicos para reformular a pergunta em outros termos: “Quais são os temas políticos na agenda dos acadêmicos latino-americanistas? E em relação com o que, em outros contextos, tem sido chamado à ‘esfera pública internacional’, caberia perguntar se as agendas do norte e do sul são as mesmas.” (ACHUGAR, 2006, p.49)

Nelly Richard (2002, p.128) é uma das críticas feministas latino-americanas que reconhece a necessidade de os códigos importados da teoria feminista internacional serem reajustados ao contexto de enunciação; Norma Alarcón (1991) também vem apontando que certa vertente do feminismo anglo-americano revela uma base liberal e etnocêntrica, convertendo-se em uma paródia do sujeito masculino da consciência41. O argumento de Alarcón é também um dos elementos que Mignolo tem levado em consideração ao pensar a razão pós-ocidental.

41 ALARCÓN, 1991.

64 O debate que propõe em torno da escrita feminina (“A escrita tem sexo?”) também toca aspectos já amplamente discutidos no campo dos estudos de gênero, sobretudo a respeito do neutro, ou do universal – que é masculino, heterossexual, realizado a partir de “categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram, naturalizam e imobilizam” (BUTLER, 2015, p.24). Ainda, adverte que além das questões de gênero, duas “marcas de enunciação” fundamentam o debate: a “violência da censura política do Chile da ditadura” e “a marginalidade da cultura latino-americana frente ao discurso institucional e acadêmico metropolitano”. (RICHARD, 2002, p.127).

Mais do que da escrita feminina, conviria, então, falar – qualquer que seja o gênero sexual do sujeito biográfico que assina o texto – de uma feminização da escrita: feminização que se produz a cada vez que uma poética, ou uma erótica do signo, extravasa o marco de retenção/contenção da significação masculina com seus excedentes rebeldes (corpo, libido, gozo, heterogeneidade, multiplicidade), pra desregular a tese do discurso majoritário. Qualquer literatura que se pratique como dissidência da identidade, a respeito do formato regular da cultura masculino-paterna, assim como qualquer escrita que se faça cúmplice da ritmicidade transgressora do feminino-pulsátil, levaria o coeficiente minoritário e subversivo (contradominante) do ‘feminino’. (RICHARD, 2002, p.133)

Assim, a autora esclarece que a escrita que se prontifica a romper com as pautas do discurso masculino/hegemônico estaria dotada de “devir-minoritário” de um feminino (como concebido por Deleuze e Guattari), “que opera como paradigma de desterritorialização dos regimes de poder e captura de identidade normatizada e centralizada pela cultura oficial” (Ibidem), pondo em risco o que constitui ideologicamente os modos hegemônicos de representação.

Para Nelly Richard (2002, p.136-137), o texto feminino deve ser ressituado “como parte ativa da tradição com a qual dialoga, ou interpela”, no intuito de dinamizar criticamente a relação continuidade/ruptura interrompendo “o sistema da identidade e da repetição oficiais”. Se a língua, a história e a tradição não são “totalidades monolíticas, inquebrantáveis”, os estudos de gênero – ou as mulheres, nas palavras de Richard – não poderiam deixar de participar ativamente das batalhas que irão prescrever os códigos que as compõem, “mesmo que as regras do combate estejam prefixadas a partir do masculino”. Sempre será possível perscrutar nas “entrelinhas rebeldes” de toda cultura para encontrar as brechas a partir de onde se revelam as potencialidades antipatriarcais:

65 É vital resgatar, a favor do feminino, todas aquelas vozes descanonizantes (incluindo as masculinas) que liberam leituras heterodoxas, capazes de subverter e pluralizar o cânone. Esses pactos, cúmplices entre distintas posições de discursos marcados pela subalternidade cultural, ampliam o poder feminino, naquilo que Jean Franco chamou de “a luta pelo poder interpretativo”.(RICHARD, 2002, p.136-137)

É nesse sentido que interpretar os papéis encenados pelas mulheres dentro de uma certa tradição patriarcal permite pensar em que medida Onetti rompe, mantém ou subverte os lugares hegemônicos e em que medida o olhar dos estudos de gênero permite que esses códigos sejam interrompidos.

Para isso, Richard (2002, p.145) esclarece que o conceito de “experiência” é fundamental dentro do debate feminista, pois, ao passo que questiona os argumentos naturalistas de gênero, refutando sua dimensão ontológica, proporciona a reavaliação dos saberes, com base no aqui e no agora, “formas de conhecimento parciais e situadas” que desmontam a mentira do universal, “o sistema de generalização masculina”. Assim, “a revalorização da experiência serve para confirmar a concreção material-social de uma determinada condição de sujeito, específica a um contexto particular de formação e relações sociais.”(Ibidem). O neutro – “a neutralização do saber” – seria uma abstração do falso universalismo que visa sustentar a “tese da cientificidade do saber objetivo e da especulatividade do saber filosófico como saber puro, sem marcas de determinação sexual (sem vestígios de nenhum dos conflitos de força e poder.” Recorrer à experiência (à “pessoa-em-situação: subjetividade e contexto”, em sua especificidade), portanto, em um exercício teórico e político, é o que garante que os códigos dominantes sejam interpelados e que as diferenças e as identidades sejam evidenciadas.

O traslado desta dimensão crítica da ‘experiência’ ao campo do feminismo latino-americano, deveria nos servir para defender um contexto de operações, a partir do qual se pode elaborar formas locais de produção teórica. Tanto teorizar a experiência (dar-lhe a categoria analítica de uma construção de significados), como dar conta das particulares experiências da teoria que a crítica feminista latino- americana realiza, em espaços culturais não homologáveis nas codificações metropolitanas, passa por afirmar o valor tático de um conhecimento situado: um conhecimento que se reconhece marcado por uma geografia internacional de subordinação de poder e que, além disso, reivindica a afirmação do contexto como um recurso útil para se opor a um certo nomadismo pós-modernista, o qual deslocaliza tudo sem cessar, apagando perigosamente as fronteiras e os antagonismos. ‘Contextos’ e ‘experiência’ designam, neste caso, o modo contingente

66 e situacional através do qual as feministas latino-americanas produzem teoria. Porém esta defesa teórico-crítica da ‘experiência’ tem pouco a ver com o uso pré-crítico que frequentemente lhe deram as tendências predominantes do feminismo latino-americano, que dotam essa noção de um valor pré-discursivo ou extra-discursivo; um valor que parece designar uma realidade sempre anterior ou exterior à mediação categorial, como fonte de um conhecimento vivenciado a partir da natureza (corpo) ou a partir da biografia (vida): um conhecimento direto, i-mediato.”(RICHARD, 2002, p.145)

A leitura de Richard (2002, p.153) convoca a pensar sobre um projeto de feminismo latino-americano que não aceite representações homogêneas e homogeneizantes, mas que se configure “como um vetor de descentramento significante, que interroga os mecanismos de centralização do sentido e da identidade presentes em qualquer formação discursiva (incluindo a da ‘literatura de mulheres” ou das “crítica feminista latino-americana”). Sua ideia seria de “acentuar teoricamente esta função desestabilizadora do ‘feminino’, convertendo-o em um ‘conceito-metáfora’”, propondo diferenças que desestabilizam os binarismos, podendo torná-los ambíguos. Assim, é possível associar sua proposta às leituras de Achugar e Mignolo, na medida em que visa a desestabilização do ‘feminino’ uno, monolítico, ocidental para heterogêneo, não dado a priori, não sintetizado em oposições binárias – como centro- periferia/ identidade-diferença/ masculino-feminino:

A crítica literária e cultural – que trabalha sobre as dobras e os excessos da significação – sabe que o jogo da diferença sexual somente pode ser reinventado quando se trabalha com as voltas e reviravoltas de um eu, cujas linguagens não se esgotam na sujeição do sujeito a sua definição programada.”(RICHARD, 2002, p. 167-168) Essa recuperação teórica dos meandros da crítica feminista não diz respeito, precisamente, ao que Onetti pensa sobre estudos de gênero, porque pouco se sabe de fato que autor pensava a esse respeito. Recuperar os escritos não-ficcionais de exílio permitem elaborar uma melhor compreensão de como o autor se posicionava na Europa como um uruguaio exilado pela ditadura militar e, também, evidenciar as colocações que ele apresenta em relação ao seu posicionamento politico e – por que não? – ideológico.

Na presente tese, portanto, o exercício que se faz é interpretativo do texto literário, bem como de suas crônicas, numa tentativa de divergir da tradição da fortuna crítica do autor, de forte tradição hermenêutico-fenomenológica, principalmente porque me interessa mostrar como esses textos de Onetti falam de um lugar que reconhece o

67 fracasso dos projetos político-econômicos latino-americanos desde o período colonial. Tais projetos, que sempre estiveram entrelaçados à ideia de progresso, sustentam-se igualmente no “mito sacrificial da modernidade” (DUSSEL, 1993); ele vai além da escravização dos povos, do genocídio indígena e do feminicídio (legitimado pelo patriarcado), que ainda se perpetuam de formas mais ou menos evidentes até hoje, no século XXI42. Os exílios políticos carregam também esta marca, na medida em que os golpes à democracia se sustentaram pela ideia de que a adesão à nova ordem econômica mundial passaria por conjurar o perigo do socialismo, expulsando, torturando ou matando aqueles que – como disse Onetti – pensavam diferente ou simplesmente pensavam. Assim, falar do lugar do fracasso é assumir um lugar de balbucio.

Caminhar na esteira da crítica feminista permite, portanto, repensar os papéis de gênero desempenhados em Cuando ya no importe, questionando seus significados dentro do projeto literário de Onetti, e não deslocados dele, como frequentemente se faz. Desse modo, para além fugir dos reducionismos e simplificações que situam o ponto de vista do escritor como machista, é possível questionar todo um universo sustentado em violências diversas, não apenas no que diz respeito à “mulher”. Assim, é possível confrontar e estabelecer um diálogo com o papel das mulheres e das relações amorosas/afetivas nos romances fundacionais do Romantismo na América Latina, que além de trazerem ideais modernizadores para as jovens pátrias independentes, continham todo um projeto de nação, que olhava para o futuro. Mais de um século depois, a obra de Onetti evidencia, deixa falar um passado traumático e doloroso.

42 Vide a recorrência de casos dos bolivianos na indústria de roupas, em situações “análogas” à escravidão; a construção da hidrelétrica de Belo Monte no Alto Xingu, que afeta a biodiversidade e a vida das comunidades indígenas; e o velho feminicídio, de mulheres cis e trans, que não precisou de receber uma forma especial de legitimação de fundamentação neo- liberal.

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No documento R EESCRITAS DAN AÇÃO (páginas 62-68)