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2 O PERCURSO TEÓRICO

2.2 Sobre a comunicação publicitária: do contrato à enunciação

Seguindo os pressupostos semiolinguísticos, Soulages (1996) defende uma análise do discurso publicitário que leve em conta a transformação do social em rito linguageiro; logo, uma análise que considere o funcionamento desse ritual sociolinguageiro como base da construção do objeto de discurso em estudo. Trata-se de um importante posicionamento do autor, por nós ratificado, uma vez que se afasta ora de análises centradas no conteúdo – as análises imanentes do texto de inspiração semiológica, como identifica Soulages –, ora de análises cujo ponto de origem é a de seus produtores (os publicitários), que, supostamente, partiriam de um “conhecimento quase transparente” dos destinatários reais, prevendo, assim, como estes iriam aderir à mensagem. Acreditamos, como o autor, que é preciso considerar a publicidade como fenômeno social transformado em discurso, tomando-a, assim, como objeto discursivo.

Nesse sentido, outro ponto importante a destacar diz respeito à própria caracterização do discurso publicitário, visto que não raro são confundidos ou mesmo considerados equivalentes certos discursos ligados ao que Charaudeau (2010e) nomeia de discurso propagandista, o qual, inscrito num dispositivo de difusão27, é movido pela promoção de algo, que pode ser um produto, um valor social ou mesmo uma imagem ou ideias políticas.

Na tipologia proposta por Charaudeau para o discurso propagandista, este é considerado como um processo discursivo abrangente ao qual se ligam os discursos publicitário, promocional e político. Tal tipologia é baseada em coerções contratuais, as quais dizem respeito ao tipo de visada, à natureza do dispositivo comunicacional com suas diferentes instâncias, à natureza de cada instância e à natureza do conteúdo veiculado. Considerar tais elementos como critérios para caracterizar o discurso publicitário e seus gêneros mostra-se, a nosso ver, como a opção mais coerente para

27É daí que vem o emprego de “propagandista”, como explica Charaudeau (2010e, p. 62-3), do “sentido

etimológico de difusão e circulação do discurso no espaço público, junto ao maior número possível de pessoas (propagare)”.

uma abordagem diacrônica do anúncio, pois vemos como prioritário que a relação entre tipo de discurso e gênero discursivo seja considerada a partir do contrato comunicativo que se possa reconhecer em cada época.

Sem querer dissociar nenhum componente que coloca o discurso propagandista em funcionamento, Charaudeau (2010a) dá considerável destaque à finalidade, definida em função da intenção pragmática de um Eu (uma instância individual ou coletiva) a partir da posição que ocupa na relação de força que o liga a um Tu (uma instância coletiva) e, igualmente, da posição que este deve ocupar.Assim, parte de uma finalidade geral para identificar as situações em que aparece o discurso propagandista: a finalidade de incitação (a orientação de um Eu que incita um Tu a fazer algo), que assim descreve:

‘Eu’ quer ‘mandar fazer’, mas, não estando em posição de autoridade, não pode obrigar o ‘Tu’ a fazer; ele deve, então, ‘fazer acreditar’ (por persuasão ou sedução) ao ‘Tu’ que ele será o beneficiário de seu próprio ato; ‘Tu’ está, então, em posição de ‘dever acreditar’ que se ele age, é para o seu bem. (CHARAUDEAU, 2010a, p. 82)

Embora os discursos publicitário, político e promocional tenham suas especificidades, é possível identificar em todos eles esse Eu que quer fazer um Tu fazer (dizer ou pensar), mas, por não poder impor, procura um modo de fazê-lo crer e aceitar que deve crer. Obviamente, há, em cada um dos contratos, elementos que os restringem e os distinguem, dos quais depende a legitimidade do sujeito comunicante, a natureza do objeto de que se fala e o lugar previsto ao sujeito destinatário. Por essa razão, é importante delimitarmos o discurso publicitário não só a partir de suas especificidades mas também das diferenças estabelecidas entre os dois outros tipos. Comecemos por caracterizá-lo separadamente com base na descrição feita por Charaudeau (1983) no capítulo “A propos du genre publicitaire”, de seu livro “Langage et discours”. No que diz respeito ao circuito externo, a publicidade se inscreve em “um circuito de trocas de bens de produção que envolve vários parceiros” (CHARAUDEAU, 1983, p. 118). Assim, ele se refere a um Eu-publicitário como sujeito comunicante, a quem cabe desde a fabricação/comercialização de um produto ao projeto de fala publicitário, e a um Tu-consumidor como sujeito interpretante, cujo status é ao mesmo tempo de comprador do produto à venda (objeto econômico) e de leitor/ouvinte/espectador do texto publicitário (objeto cultural). Para além dos parceiros, refere-se a um Ele-produto, que define como objeto de troca, centralizando

uma dupla promessa comercial: enriquecer a instância publicitária e beneficiar o sujeito consumidor. Essa descrição é retomada e, de certa forma, ratificada no artigo “Le discours publicitaire, genre discursif”, de 1994, em que o autor rediscute algumas estratégias discursivas, sobre as quais falaremos adiante.

Posteriormente, Charaudeau (2009a, 2009b, 2010a, 2010d) passa a incluir nesse contrato uma instância concorrência28, reorganizando a tipologia. Assim, refere- se ao envolvimento de uma instância publicitária – que se legitima a partir de seu posicionamento no mercado, “louvando as qualidades [benefícios] de um produto em face de seus concorrentes” –; uma instância concorrência – representando as outras marcas – e uma instância público – que assume os papéis de consumidor comprador potencial e consumidor efetivo da publicidade. Esse consumidor comprador “é destinado a ‘dever crer’ que tem uma carência e ele não pode desejar mais nada do que ser o agente de uma busca que cobrirá sua carência, sendo o objeto dessa busca o benefício louvado” (CHARAUDEAU, 2010a, p. 85).

Com base nesses últimos componentes, Charaudeau (2009a), no artigo “Il n’y a pas de société sans discours propagandiste”, compara os subtipos de discurso propagandista. No quadro a seguir, apresentamos a descrição por ele proposta para diferenciar discurso político e publicitário:

28 Em “Langage et discours”, Charaudeau (1983, p. 119) já se refere à concorrência, mas esta é

apresentada como um fator de restrição do ato da concepção publicitária. Segundo ele, a ausência de um concorrente permitiria o questionamento do próprio fato publicitário e a imposição do ato de venda- compra como uma injunção: “se, P existe, então compre P” (no texto original: “P existe, alors achetez P”). Por outro lado, a concorrência entre diferentes produtos leva à concepção de um discurso que valoriza o produto por meio de sua marca, a fim de singularizá-lo entre os demais: “no conjunto de P, existe P(M)” (no texto original: “parmi l’ensemble des P, il existe P(M)”).

Quadro 3 – Comparação entre discurso político e discurso publicitário

COMPONENTES DISCURSO POLÍTICO DISCURSO