• Nenhum resultado encontrado

SOBRE A CONTEXTUALIZAÇÃO DO ENSINO RURAL NO BRASIL

2 ENTRE HISTÓRIAS E CONTEXTOS: BENTO GONÇALVES E VALE DOS

3.1 SOBRE A CONTEXTUALIZAÇÃO DO ENSINO RURAL NO BRASIL

Considerando os aspectos históricos do ensino primário na área rural brasileira, a primeira década do século XX é marcada pelo interesse de um processo de ampliação do sistema de ensino e defendida de forma mais incisiva a partir da segunda década.

As migrações do campo para a cidade ou de uma região para outra foram se tornando cada vez mais intensas no cenário social do Brasil. Esse movimento social teve força crescente e passou a ser ameaça à organização política e econômica do país. As mazelas dessa circunstância não demoraram a ser sentidas. Em alguns círculos políticos e econômicos mais dominantes, passou-se a considerar necessário um movimento de algumas reformas importantes para amenizar as consequências desse processo migratório.

Pensando na necessidade de modificar as condições de vida daqueles que viviam na zona rural, a fim de que lá permanecessem, começou a ganhar força entre alguns setores da sociedade um projeto de reformas que pudessem atender às precariedades da vida no campo, entre elas, a escolarização. As intenções reformistas visavam a garantir a sustentação da economia rural e evitar a mobilidade geográfica, por conta do conjunto de diversos fatores.

Um dos elementos mais complexos que encontramos no início do século XX é o fator da escolarização. No recenseamento de 1906 é possível compreender que, para a elite e a política dominante até o século XIX, a escolarização não era vista como uma preocupação social ou uma questão que sensibilizasse suas ações públicas. Os resultados do quadro a seguir demonstram os reflexos claros de uma reação política de indiferença à educação.

Quadro 7 - Analfabetismo no Brasil em Estados Brasileiros Recenseamento de 1906

Estados e Distrito Federal

De 1.000 habitantes

Sabiam ler Eram analfabetos

Alagoas 200 800 Amazonas 228 772 Bahia 321 679 Ceará 218 782 Distrito federal 519 481 Espírito Santo 269 731 Goias 218 782 Maranhão 254 746 Mato Grosso 270 730 Minas Gerais 256 744 Pará 300 700 Paraíba 168 832 Paraná 239 761 Pernambuco 193 807 Piauí 173 827 Rio de Janeiro 231 769

Rio Grande do Norte 204 796

Rio Grande do Sul 326 674

Santa Catarina 257 743

São Paulo 247 753

Sergipe 247 753

Fonte: Brasil. Diretoria Geral de Estatística. Estatística da Instrucção (1ª parte, “Estatística Escolar”, 1º vol.), 1916. O quadro está incluído no texto “Introdução”, assinado por Oziel Bordeaux Rego, da quarta seção da Diretoria Geral de Estatística, p. CCXI.

Os dados que o quadro revela demonstram o alto índice de analfabetismo de forma homogênea. Como é possível constatar, as discrepâncias regionais ainda não eram significativas. Em todas elas, os índices dos que eram considerados analfabetos eram relativamente próximos, equânimes às outras regiões, com exceção do Distrito Federal que, na época, Rio de Janeiro, era a capital brasileira.

De todo modo, é legítimo concluir que na história da educação até o século XIX e início do século XX as políticas voltadas para a educação foram tímidas, por isso:

[...] podemos afirmar que o estranhamento e a perplexidade com os quase 80% de analfabetos são uma reação pública posterior ao final do século XIX. Em uma sociedade basicamente rural, - mais de 80% da população -, comandada pelos grupos oligárquicos, com precários sistemas de comunicação, a demanda social de educação era também muito baixa (BOMENY, 2003, p. 3).

Essas circunstâncias e números sustentaram a inspiração e a motivação de alguns movimentos em favor de uma política com um olhar mais atento à educação rural. Há de se compreender que esse movimento que começa a se desenhar, especialmente a partir de 1920,

não surge por um viés exclusivamente ao ensino rural, mas ao ensino de um modo geral. Os investimentos e as ações políticas, de forma geral, atingiram o urbano e o rural. Contudo, esta pesquisa foca na dimensão estritamente do meio rural, porém, inicialmente, tenho feito uma abordagem de forma geral sobre as primeira políticas voltadas ao ensino.

Diante da complexidade dos números apresentados, sendo um país majoritariamente analfabeto, quais seriam, afinal, as motivações que começaram a provocar uma reforma de ensino para o meio rural? O que visava as ações que decorreram para o ensino rural? Quais eram as suas preocupações? A que fim almejavam?

As respostas dessas questões estão intimamente ligadas às questões sócio-históricas ocorridas de forma mais acentuada a partir da década de 1920. Conforme Almeida (2007):

O século XX assistiu à transformação de uma sociedade de base eminentemente agrária a uma sociedade industrial, e a cidade assumiu a posição de guia, de modelo, de paradigma dos modelos culturais e sociais. O Brasil era um país nitidamente rural e assim se manteve até a década de 1920, mas, a cada novo período, a tendência irreversível foi o aumento da população urbana e o decréscimo da população rural. As mudanças econômicas e sociais promoveram transfigurações identitárias e, portanto, afirmou-se uma tendência de construção de identidades urbanas, uma vez que a cidade tornou-se o ícone da modernidade. A cidade assumiu a posição de direcionadora de determinadas ações, em certa medida determinando à sociedade a valorização de alguns aspectos e não de outros (ALMEIDA, 2007, p. 84 - 85)

Nesse contexto, o crescimento do processo de urbanização, o deslocamento demográfico e a forçosa influência do capitalismo impulsionaram um novo ciclo e movimento econômico do país. Como consequência desse novo momento social e econômico inclinado para a dimensão urbana e industrial, a educação passa a ser questionada e sentida. Embora marcada pelo descaso e pouco incentivo, a educação até o início do século XX era basicamente rural, por concentrar a maior fatia da população. Contudo, com o advento da industrialização nos centros urbanos, “o analfabetismo começa a incomodar a cidade, para onde o desenvolvimento industrial e a expansão do comércio e dos serviços em geral passam a carrear levas crescentes de migrantes rurais, em grande parte analfabetas” (FERRARO, 2012, p. 944).

Partindo disso, encontra-se aqui a chave principal que balizou e motivou as primeiras iniciativas para o ensino rural. A população do meio rural representava, para esse novo momento, uma gente em atraso, desqualificada para servir e ocupar os serviços industriais. Na condição de analfabetos (a maioria), tinham dificuldades de atender às demandas emergentes do sistema capitalista. Era, portanto, preciso iniciar um processo civilizador no campo,

dotando-lhes de instrução necessária para bem servir aos interesses do desenvolvimento econômico. Para Almeida (2007):

O meio rural foi associado às ideias de atraso, de ausência de desenvolvimento e de ignorância de sua população. A educação rural passou a ser vista como um instrumento capaz de aproximar a modernização, de formar, de modelar cidadãos adaptados ao seu meio de origem, mas lapidados pelos conhecimentos endossados pela cultura urbana. Ou seja, foi a cidade que apresentou as diretrizes para a formação de homens e mulheres do campo. De lá que vieram os ensinamentos capazes de instrumentalizá-los para a realização de suas atividades, tais como conhecimentos de saúde, saneamento, alimentação adequada, administração do tempo, técnicas agrícolas e pastoris modernas, práticas de higienização, todos esses amparados e condizentes com o desenvolvimento científico da sociedade. Coube à escola preparar as populações campesinas para que pudessem melhor enfrentar as mudanças sociais e econômicas, enfim, fazê-las compreender as ideias de progresso e de modernidade representadas pelas grandes metrópoles do país (ALMEIDA, 2007, p. 84 - 85).

Dentro dessa perspectiva, surge o movimento em torno do ruralismo pedagógico20 na tentativa de assegurar o êxodo do campo, como também a educação passou a ser compreendida como instrumento através do qual seria possível dar solução aos problemas do homem no campo. Em consenso, entre governistas e intelectuais, tinha-se “a crença de que através da multiplicação das instituições escolares e do acesso à escolarização o Brasil se tornaria uma grande potência” (ALVES, 1998, p. 21).

Contudo, as tímidas iniciativas de discussão sobre a necessidade do ensino rural iniciadas na década de vinte do século XX ganham força na década seguinte, no governo de Getúlio Vargas. Há de considerar que toda medida discutida sobre um determinado aspecto da sociedade não se efetiva de imediato, mas leva-se alguns anos para se consolidar e ser absorvida na sociedade. Dessa forma, somente a partir dos anos de 1930 a 45, essa discussão em torno da questão da expansão do ensino rural foi mais efetiva, e alguns movimentos ganham distinção no cenário educacional, como o “Otimismo Pedagógico”, “Entusiasmo pela Educação” e a criação da Associação Brasileira da Educação (ABE). Para Nagle,

20 De acordo com Bezerra Neto, o conceito de ruralismo pedagógico esteve atrelado à “ideologia de fixação do

homem no campo por meio da pedagogia. Para essa fixação, os pedagogos ruralistas entendiam como sendo fundamental que se produzisse um currículo escolar que estivesse voltado para dar respostas às necessidades do homem do meio rural, visando atendê-lo naquilo que era parte integrante do seu dia a dia: o currículo escolar deveria estar voltado para o fornecimento de conhecimentos que pudessem ser utilizados na agricultura, na pecuária e em outras possíveis necessidades de seu cotidiano”. (BEZERRA NETO, 2003, p. 15). Esse movimento foi protagonizado no começo do século XX por Silvio Romero e Alberto Torres. No entanto, mais tarde (a partir de 1920), foi difundido por Sud Menucci, um dos grandes expoentes do movimento da ruralização do ensino. Esses teóricos defendiam que crianças do meio rural deveriam ser atendidas por professores com formação ou experiência com o meio rural, como também deveria ser elaborada uma proposta curricular e material pedagógico adequado às necessidades do meio rural.

Esse conceito do ruralismo não será ampliado nesta dissertação. Todavia, poderá ser aprofundado na obra de Menezes, (2015) e Sá, Silva (2012).

O entusiasmo pela educação e otimismo, que tão bem caracterizam a década dos anos vinte, começaram por ser, no decênio anterior, uma atitude que se desenvolveu nas correntes de ideias e movimentos político-sociais e que consistiam em atribuir importância cada vez maior ao tema da instrução, nos seus diversos níveis e tipos. É essa inclusão sistemática dos assuntos educacionais nos programas de diferentes organizações que dará origem aquilo que, na década dos vinte, está sendo denominado de entusiasmo pela educação e otimismo pedagógico. A passagem de uma para outra dessas situações não foi propriamente gerada no interior dessa corrente ou daquele movimento. Ao atribuírem importância ao processo de escolarização, prepararam o terreno para que determinados intelectuais e “educadores” – principalmente os “educadores profissionais” que apareceram nos anos vinte – transformassem um programa mais amplo de ação social num restrito programa de informação, no qual a escolarização era concebida como a mais eficaz alavanca da História brasileira (NAGLE, 1974, p. 101).

Compreende-se, nesse sentido, que esse movimento calçava seus princípios na preocupação em alfabetizar as grandes camadas populares, propondo a disseminação de escolas para a formação moral e cívica da população. Outra faceta desse movimento estava amparada no âmbito político, o qual defendia a disseminação de escolas, a fim de garantir a população de direitos políticos e aumentar o número de eleitores. De um modo geral, compreendo que as ações que nortearam esse movimento estavam alicerçadas no âmbito quantitativo. Importava mais multiplicar as condições de acesso à escola primária e diminuir os índices de analfabetismo.

O “Otimismo Pedagógico”, de acordo com Paiva (2003), preocupava-se com a qualidade do ensino. Seu maior desafio era formular um programa escolar e encontrar profissionais qualificados para atender aos interesses de expansão e qualificação da instrução.

Desse modo, o fruto dessas discussões ocorridas ao longo dos anos vinte proporcionaram um raio-x mais claro da educação brasileira, possibilitando, assim, planos e projetos mais concretos para a área. Para Nagle:

A década dos vinte herdou, do decênio anterior, a bandeira de luta contra o analfabetismo. Os dados levantados pelo recenseamento de 1920, as discussões e os estudos resultantes da conferência sobre o ensino primário de 1921 e o constrangimento que dominou o ambiente espiritual em 1922, quando, ao mesmo tempo que se procurava comemorar o primeiro centenário da independência, pesava sobre a nação uma cota de 80% de analfabetos – conforme cálculos da época – transformaram o analfabetismo na grande vergonha do século, no mínimo ultraje de um povo que vive a querer ingressar na rota da “moderna civilização” (NAGLE, 1974, p. 112).

Embora a década de 1920 tenha alcançado algumas reformas importantes em alguns Estados para a escola primária, o ensino rural ainda estava longe de encontrar um projeto unívoco. É importante destacar que nessa década o governo federal não definiu diretrizes

comuns para o ensino primário, o que leva a concluir que esse nível do ensino ainda não recebia a atenção prioritária do Governo Federal, restando aos Estados o compromisso pelas reformas e investimentos necessários. Além disso, conduz ao entendimento de que o ensino primário não tinha um sistema único de ensino.

Contudo, a partir de 1930, foram dados novos passos para a expansão do ensino. Entre eles, destacam-se a criação do Ministério da Educação e Saúde Pública em 1930; a Reforma de Francisco Campos em 1931; o Manifesto dos Pioneiros e as campanhas de alfabetização em 1932, o qual pregava a regionalização do ensino, defendia a educação das massas rurais, entre outros propósitos, além das duas Constituições de 1934 e 1937. Nessa mesma década, em 1937, foi criada a Sociedade Brasileira de Educação Rural, com o propósito de propagar a educação rural e de estudar e difundir o seu folclore e suas artes.

Mesmo diante dessas medidas, a preocupação com o ensino rural ainda era constante na década de 1940. Questões relativas ao meio rural foram debatidas no VIII Congresso Nacional de Educação, ocorrido em Goiânia, por iniciativa da Associação Brasileira de Educação. Porém, mesmo com tantas iniciativas para a educação no meio rural, entre os anos trinta e quarenta do século XX, conforme assinala Zago:

[...] pouco foi o progresso obtido em relação ao ensino primário na área rural. A população rural sofria um descompasso: dos 6 e meio milhões de crianças brasileira em idade escolar, 1.956.900 moravam na cidade, sendo que delas 306.000 não eram atingidas pela escola primária na zona rural havia 4.540.000, das quais 3.200.000 não eram atendidas pela escola primária (ZAGO, 1980, p. 29).

A partir disso, diversos líderes e defensores do ensino rural posicionavam-se com duras críticas às forças políticas pelo favorecimento e preferência ao ensino urbano em detrimento do rural. O descompasso das condições do ensino urbano ao rural era bastante debatido, uma vez que o meio rural ainda concentrava o maior número da população e as condições de infraestrutura eram bem precárias, como também todo o sistema curricular e organizacional da educação estava constituído a partir dos interesses da escola urbana.

Considerando a atuação permanente dos diversos movimentos ruralistas, em 1950 surge o CNER (Campanha Nacional do Ensino Rural), que, “com menor expressão, na década

de 50 as ideias em torno da ruralização da escola primária e da preparação dos professores em

Escolas Normais Rurais continuavam mantendo influência até praticamente a década de 60”

Fornecidos esses dados históricos sobre o ensino rural, é pertinente ressaltar a concepção de saberes para a educação rural, presentes nessas iniciativas. A partir dos diversos movimentos e determinações conquistados entre os anos de 1930 a 1960, conforme apresentado acima, para o ensino rural, os saberes foram amplamente discutidos.

3.2 SOBRE A CONTEXTUALIZAÇÃO DO ENSINO RURAL DO VALE DOS