• Nenhum resultado encontrado

SOBRE OS SABERES DIFUNDIDOS NOS MANUAIS PEDAGÓGICOS

2 ENTRE HISTÓRIAS E CONTEXTOS: BENTO GONÇALVES E VALE DOS

3.4 SOBRE OS SABERES DIFUNDIDOS NOS MANUAIS PEDAGÓGICOS

O uso dos manuais pedagógicos como fonte e objeto de investigação para estudos em história da educação tem contribuído ao longo dos últimos anos para historicizar o saber que circulou nos espaços escolares, permitindo ao “pesquisador estudar o pensamento pedagógico de um determinado setor ou grupo social, a partir da análise do discurso veiculado e a ressonância dos temas debatidos, dentro e fora do universo escolar” (CARVALHO, 2002, p.74 -75).

Com isso, neste tópico, analisarei os manuais pedagógicos coletados de antigos alunos e professores, buscando identificar os saberes neles expressos. Assim, o processo educacional investigado mais profundamente, a partir dos manuais, pode nos apresentar as múltiplas redes de saberes da vida social dos sujeitos e a sua própria realidade. Nóvoa ressalta que:

De fato, a imprensa revela as múltiplas facetas dos processos educativos, numa perspectiva interna ao sistema de ensino (cursos, programas, currículos etc.), mas também no que diz respeito ao papel desempenhado pelas famílias e pelas diversas instâncias de socialização das crianças e jovens. A imprensa constitui uma das melhores ilustrações de extraordinária diversidade que atravessa o campo educativo (NÓVOA, 2002, p.13).

A partir disso, analisar os livros pedagógicos que se encontravam guardados como relíquias e verdadeiros patrimônios culturais de antigos alunos e professores das escolas rurais do Vale dos Vinhedos é abrir um “leque de possibilidades do fazer historiográfico, da mesma maneira que se impõe a esse fazer a necessidade de ir buscar junto a outras ciências do homem os conceitos e os instrumentos que permitem ao historiador ampliar sua visão do homem (BURKE, 1997, p.07).

Por ser uma população eminentemente descendente de italianos, como já dito, a língua utilizada para ensinar era o dialeto italiano. A formação de escolas, com práticas pedagógicas italianas, foi necessária nos primeiros anos do Vale dos Vinhedos, uma vez que o lugar ocupado pelos imigrantes era carente de qualquer estrutura e tipo de assistência aos cidadãos. Frente a isso, a instrução precisou ser liderada por eles mesmos, inicialmente de forma precária e improvisada. Os primeiros recursos externos conseguidos para a educação foram do próprio governo italiano, que repassava à Sociedade de Mútuo Socorro Rainha Margarida uma ajuda financeira para custear as despesas básicas da escola, como também envio de material didático vindo diretamente da Itália aos seus concidadãos italianos e seus filhos.

Alguns desses materiais impressos ainda são guardados no Museu do Imigrante da cidade ou até mesmo zelados pelos próprios descendentes italianos do Vale dos Vinhedos, como importantes recordações familiares. É o caso dos exemplares que escolhi para contextualizar esses saberes tratados nos primeiros tempos do ensino rural do lócus da minha pesquisa. Eles foram encontrados em acervos pessoais e, a partir deles, podem-se perceber alguns indícios dos saberes tratados nos espaços escolares.

Um desses exemplares que esteve presente nas mesas escolares foi o livro “A Língua Italiana”, apresentado na figura a seguir.

Figura 30 - Livro pedagógico usado para a instrução nas escolas rurais do Vale dos Vinhedos

Fonte: Acervo pessoal da Família Angheben.

O livro, assinado por Dr. F. Ahn, da Livraria Francisco Alves do Rio de Janeiro, sem data, tem uma proposta muito clara na sua própria capa, que está destacada na cor laranja. Trata-se de um método “adaptado para o uso dos brasileiros” para aprender rápido a língua italiana. O livro é composto de 218 páginas e sua estrutura é composta em forma de gramática. A obra é de 1913.

Dialogando com a proposta desse livro, podem-se estabelecer alguns questionamentos, sendo o mais relevante: Por que um livro para o brasileiro aprender o italiano? Talvez, a lógica não seria inversa?

Contudo, ao afirmar a necessidade de que o brasileiro nato ou o filho de imigrante italiano (brasileiro) deveria saber e dominar as normas cultas da língua italiana implica conhecer uma relação de saber que pode ir além do objeto de estudo. Na análise das relações de saberes difundidos por esses manuais pedagógicos, nas escolas rurais, posso levar a considerar as relações de concorrências e competições que podem ter sido travadas entre grupos que participaram da elaboração e da materialização dessa política, assim como relações de poder e de dominação estabelecidas, ou, como postula Chartier (1990), conhecer as “lutas de representações”.

Isso se confirma no relatório do agente consular italiano no ano de 1905, ao mencionar que houve um movimento de tentar obstaculizar escolas que recebiam suporte de material

pedagógico italiano, pois “suspeitavam que nos auxílios que o governo italiano lhe garantira supunham esconder-se alguns fins políticos ocultos”. (PETROCHI, In: DE BONI, 1985, p.113).

Essas fontes históricas trazem elementos da organização dos tempos e dos saberes escolares das escolas étnicas rurais do Vale dos Vinhedos. Esses manuais podem nos mostrar indícios dos modos de direcionar os “saberes” que contribuíram na formação de uma identidade própria dos grupos de imigrantes, por meio de uma função estratégica, pois o “papel preponderante foi desempenhado pela escola, já que o ensino primário entre as primeiras gerações de imigrantes foi ministrado (é claro que com exceções) em escolas particulares, comunitárias ou não, na língua de origem” (SEYFERTH, 1990, p. 82). Nesse sentido, usar e difundir impressos e manuais pedagógicos que estimulavam a língua da pátria- mãe cumpria com uma função étnica de promover os saberes que asseguravam a cultura e a socialização das crianças com a língua das “origens” de seus ascendentes. Assim, mesmo em território estrangeiro, evidenciava-se o seu pertencimento a uma identidade e a um grupo étnico. Conforme Seyferth, “esses meios serviam como veiculadoras e perpetuadoras da etnicidade desses grupos” (SEYFERTH, 1990, p. 82).

Em circunstância a isso, outra fonte que reforça esses tensionamentos e essas redes de saberes étnicos nas escolas rurais são os manuais pedagógicos produzidos no país de origem dos imigrantes e utilizados de forma integral nas escolas rurais do Vale dos Vinhedos.

Num casarão de 1911, com arquitetura ainda muito original, Anitta Marcatto apresentou-me, entre tantos documentos, diversos livros dos seus antepassados. Entre estes, encontravam-se exemplares de conhecimentos gerais produzidos integralmente em língua italiana, conforme exemplificado na figura abaixo

Figura 31 - Livro de leitura da Escola Popular Austríaca usado nas escolas rurais do Vale dos Vinhedos

Fonte: Acervo pessoal de Anitta Marcatto.

Conforme apontam as fontes documentais históricas de 1905, nos primeiros anos da história do ensino municipal, portanto, inclusive o ensino rural do Vale dos Vinhedos, registrava-se a grande carência de recursos financeiros e pedagógicos para as escolas. A escassez de material impresso impedia o desenvolvimento dos saberes considerados essenciais. O agente consular italiano Luigi Petrochi apontava em seu relatório que

A instrução deixa muito a desejar: em todo o território há apenas 18 escolas públicas brasileiras, e cerca de duas dezenas de pequenas escolas italianas, dirigidas estas de boa vontade por compatriotas nossos que, pouco se importando com sacrifícios e privações de toda sorte, ensinam o que sabem e como podem, [...] causadas pela falta absoluta de material escolar, especialmente livros de leitura, que os colonos consideram objetos de luxo. (PETROCHI, 1905, in: DE BONI, 1985, p. 81).

Assim, a ajuda com recursos pedagógicos do governo italiano foi fundamental para a alfabetização e instrução dos colonos do Vale dos Vinhedos.

O livro apresentado na figura anterior não se trata de uma material pensado para a realidade brasileira. Ele é essencialmente elaborado dentro de uma outra circunstância histórica e social, muito distinta da realidade brasileira, no caso, a Itália. Contudo, frente à dimensão de desprovimento de recursos pedagógicos que os imigrantes se encontravam,

houve inúmeras remessas de material pedagógico feito pelo governo italiano para os seus imigrantes.

Dessa forma, inevitavelmente, os saberes difundidos nas escolas rurais, por muito tempo, tornavam-se os mesmos saberes estudados na sua pátria mãe. Na análise da obra da figura acima, fica claro que o objetivo é propor textos para o exercício de leitura. A obra é dividida em seis capítulos, os quais sintetizo no quadro abaixo:

Quadro 11 - Síntese do “Libro Lettura – Scuole popolari austriaca”

1º capítulo Não é possível identificar a área dos saberes, porque as quatro primeiras paginas forma perdidas ao longo do tempo. No entanto, percebe-se que são historietas diversas, fazendo memória a personagens históricos, lendários e outras expressões do cotidiano. Capitolo Secondo “Nozioni di geografia” [Noções de Geografia]

- O capítulo inicia trazendo informações de astronomia geral, estendendo-se com textos específicos sobre noções da geografia regional.

Capitolo Terzo “Nozioni di storia naturale” [Noções da história natural]

- Apresenta informações da anatomia humana do corpo masculino e feminino.

- Traz algumas noções e informaçoes sobre a fauna e a flora regional Capitolo quarto “Nozioni di física” [Noçoes de física]

- Os textos apresentam informações do que são conceitos básicos da física (massa – volume peso – inércia e força – luz e calor )

Capitolo quinto “Alcuni cenni di agricoltura” [Algumas dicas de agricultura] - O capítulo traz informações sobre a dinâmica de plantio agrícola e os ciclos da agricultura.

Capitolo sesto “Racconti storici” [Contos históricos]

- Apresenta relatos dos principais eventos históricos da história geral e finaliza o capítulo, com relatos da formação histórica da Áustria (antigo território italiano)

- Este é o capítulo mais extenso da obra, o qual faz toda uma releitura da história geral e estende em demasia com a história local, evidenciando personagens históricos e eventos marcantes da sua história.

Fonte: Acervo pessoal da família Marcatto – Tradução minha.

Sem a intenção de generalizar os fatos, a partir da análise da natureza desses impressos, fica evidente a força dos saberes estrangeiros sobre o ensino rural do Vale dos Vinhedos. Embora, muito provavelmente pudesse haver outros materiais nacionais para o uso nas escolas, é possível imaginar que, por alguns anos, o uso de impressos estrangeiros pode ter sido predominante. Sendo assim, pode-se compreender que o currículo escolar tinha uma tônica muito forte de conteúdos voltados para uma “cultura estrangeira”, pois a maioria dos professores eram de ascendência italiana. Sentiam-se ensinando o que sabiam. Dessa forma, essas escolas serviram como espaço da produção e reprodução cultural da italianidade. Esses saberes, muito provavelmente, contribuíram na construção dos processos identitários.

Assim, compreendo que, ao percorrer a análise da organização curricular das escolas isoladas do Vale dos Vinhedos, no final do século XIX e na primeira década do século XX, implica necessariamente na identificação de uma perspectiva étnica. Para Kreutz,

A possibilidade fundante para o reconhecimento do étnico como um dos elementos constitutivos da dinâmica social é a percepção da multiplicidade de culturas que, estando em constante processo relacional ou instalando-se mais fortemente numa cultura específica, tem, na sua dimensão cultural, o eixo desencadeador de confrontos e interações que se refletem no respectivo processo educacional (KREUTZ, 1999, p. 80).

Com isso, compreendo que os saberes presentes nas primeiras décadas das escolas rurais do Vale dos Vinhedos foram parametrizados por um cunho étnico, que visavam ao domínio de uma prática de leitura e de escrita com base na língua italiana, negociando com os dialetos.

Frente às circunstâncias, talvez seja possível concluir que, nos primeiros anos do ensino rural do Vale dos Vinhedos, os saberes que regiam o aprender/ensinar dependiam predominantemente dos manuais pedagógicos que eram enviados da Itália. Se lhes era ofertado um manual italiano, os saberes apreendidos eram totalmente distintos, se comparados aos manuais nacionais. Contudo, frente às análises, fica evidente que inicialmente houve mais a circulação de material ofertado pelo governo italiano do que propriamente brasileiro, o que pode ser corroborado pelo testemunho oral da minha entrevistada centenária: “O que me lembro é que a gente falava tudo em italiano na escola. Falava e os livros também eram tudo em italiano [...] A professora vinha de Bento. Às vezes era difícil falar com ela, de entender ela, porque em casa se falava somente o dialeto e ela falava as duas línguas, o italiano e brasileiro” (PARMEGIANI, 2016).

3.5 SOBRE OS SABERES CURRICULARES PRESCRITOS PARA AS ESCOLAS