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Sobre a teoria reticular

No documento A teoria neuronal de Santiago Ramón y Cajal (páginas 151-155)

PARTE II – A TEORIA NEURONAL

8. Teoria reticular

8.1. Sobre a teoria reticular

A teoria das terminações livres encontrou na comunidade científica um modelo contrário e fortemente arraigado, a teoria do retículo. A explicação da fibra muscular estriada em termos reticulares fornecia argumentos para a consideração de redes no tecido nervoso224. A grande diferença da hipótese reticular para a fibra muscular em relação à fibra nervosa é que na primeira, a rede era considerada intracelular, enquanto na segunda, a rede era intercelular.

A concepção reticular proposta por Golgi propunha que a substância cinzenta constituiria o ponto de encontro e fusão de todas as fibras aferentes e eferentes dos centros nervosos. A ideia de um retículo contínuo e de grande riqueza fibrilar favorecia alguns fatores: (1) as ramificações terminais dos axônios sensitivos ou simplesmente aferentes de outros centros nervosos; (2) os ramos colaterais do axônio de certos elementos grandes, designados por Golgi ‘células motrizes’ (grandes pirâmides cerebrais, células de Purkinje do cerebelo entre outras); (3) as arborizações terminais do axônio de outras células nervosas, consideradas sensitivas por Golgi e que Ramón y Cajal denominou de ‘células de axônio curto’225.

No intervalo entre os anos 1850 e final da década de 1870, em linhas gerais, podemos considerar dois modelos reticulares competindo entre si. Um proposto por Gerlach e outro por Golgi (figura 15). Gerlach concebia a cooperação das projeções do ramo protoplasmático (dendritos) neuronal na construção da rede, enquanto Golgi

224 Essa hipótese é sustentada por Gordon Shepherd (Shepherd, 1991) como o principal ponto de viragem na interpretação reticular. Shepherd considera que a série de artigos sobre a fibra muscular (os principais artigos foram: Klein, 1878; Carnoy, 1884; Melland, 1885) em que começavam a questionar a natureza reticular das terminações musculares teria, pelo mesmo princípio de similaridade antes utilizado na defesa das redes, contribuído de forma nevrálgica para a adoção de hipóteses contíguas para o tecido nervoso. Na obra de Carnoy (1884), examinei apenas a introdução e os apontamentos históricos para essa pesquisa.

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restringia os componentes da rede apenas às ramificações nervosas (axônios). A limitação técnica no exame anatômico das terminações nervosas favorecia a não adoção de explicações contíguas. Ademais, um tecido nervoso formado por redes permitia que se examinasse uma população de células e suas implicações funcionais ao invés de um trabalho árduo, e que não se tinham garantias de sucesso, na busca pelas terminações livres das células nervosas. Cito Golgi:

Entre as várias opiniões sobre esse assunto emitidas pelos autores recordemos aqueles, entre os poucos discordantes, Rindfleisch226 e Gerlach – sustenta o primeiro que o prolongamento protoplasmático (dendritos), depois de ser decomposto em uma série de fibrilas tênues, se dissolve em uma substância granular intersticial (substância nervosa difusa, de acordo com um conceito antigo de Wagner, Henle entre outros) em que a substância, após ser decomposta em um conjunto de fibrilas de extrema finura, terminam em um eixo [provavelmente seja um axônio] de inúmeras fibras medulares. Gerlach, que não faz muito tempo se associou a Butzke, Boll e outros, opina [opina invece] que o prolongamento protoplasmático, ao decompor-se indefinidamente em filamentos, constitui uma rede nervosa de modo a ser visível apenas pelos sistemas de imersão mais fortes, a partir desta estrutura teriam o axônio, entre o último e o prolongamento protoplasmático, um reticulo nervoso contínuo. (...) [proposta de Golgi] O prolongamento protoplasmático, ao invés de decompor-se indefinidamente, seja por uma substância amorfa fundamental (Rindfleisch), seja pela formação de um retículo (Gerlach), termina nas células do tecido intersticial227.

Boa parte da produção historiográfica sobre as propostas reticularistas para a constituição do tecido nervoso faz referencia, em sua imensa maioria, aos modelos de Gerlach e Golgi. Ao mencionar Rindfleisch, Golgi dá prova de que o modelo de Gerlach não reinava incólume no cenário científico da metade do século XIX. É bem provável

226 Eduard von Rindfleisch (1836-1908). Foi um patologista e histologista alemão. Rindfleisch foi assistente de Virchow em Berlim. É considerado o proponente da primeira teoria vascular da esclerose múltipla, após propor entre os anos 1862 e 1863 que a inflamação associada a determinadas lesões se distribuíam pelas veias.

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que um exame detalhado trouxesse à tona gradualmente propostas distintas entre as duas mencionadas (Gerlach e Golgi).

Um dos principais problemas no modelo reticular, apontado por Ramón y Cajal, se refere ao seu poder explicativo em relação às exigências da fisiologia de então. Fenômenos fisiológicos como reflexos, atos instintivos, localização funcional no córtex entre outros demandavam conhecimento das vias ou caminhos de condução da informação nervosa, circunscritos através do eixo cérebro-raquídeo.

Wilhelm His (1831-1904) e August Forel228 (1848-1931) se opuseram ao modelo reticular, sem, no entanto, apresentarem resultados de pesquisa empiricamente satisfatórios. A ideia de individualidade celular atribuída inicialmente ao tecido nervoso estava mais adequada à explicação dos impulsos nervosos por contato do que com qualquer resultado empírico forte. Ramón y Cajal considerou que a hipótese das terminações livres lançadas por Forel e a aparente impossibilidade de surpreender a anastomose na substância cinzenta permitiam as analogias que começaram a circular no meio acadêmico, comparando a célula nervosa e suas terminações a folhas em um bosque visto a distância suficiente para não se ver as terminações entre as folhas, imaginando continuidade entre elas.

228 Theodor Hermann Meynert (1833-1891) foi professor em Viena e um dos grandes defensores do modelo reticulado. Forel foi seu aluno de doutorado e conta (Forel, 1941) que inicialmente propôs como estudo a investigação do tálamo óptico. A noção acima expressa da ‘falta de dados empíricos’ não deve ser considerada de forma radical, pois, Forel foi um ótimo neuroanatomista, tendo sido um dos primeiros na década de 18ι0 a utilizar o recém ‘criado’ micrótomo. A ‘falta de dados experimentais’ na tese neuronal de Forel e His se justifica quando comparado ao número realmente grande de exames empreendido por Ramón y Cajal sobre o tecido nervoso e suas conexões, além, de um inventário detido sobre as principais estruturas do sistema nervoso.

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Figura 15: A: Esquema da estrutura da substância cinzenta da medula espinhal, segundo os autores

anteriores ao método de Golgi. A: raízes anteriores; B: raiz posterior; C: rede intersticial da substância cinzenta; D: sulco anterior da medula; E: fascículo de Goll; F: fascículo de Burdach; H: célula motriz; I: via piramidal cruzada; G: coluna de Clarke; J: gânglio sensitivo. B: (I) esquemas destinados a comparar a concepção de Golgi sobre as comunicações sensório-motoras da medula espinhal: (II) Resultado das investigações de Ramón y Cajal. A: raízes anteriores; B: raízes posteriores; a: colateral das raízes motrizes; b: células de axônio curto que interferem, segundo Golgi, na formação da rede; c: rede difusa intersticial; d: colaterais longas em contato com as células motrizes; e: colaterais curtas. (Fonte: Ramón y Cajal, 2006, p. 795-6).

A adoção do programa reticular retirava o compromisso de um exame detido sobre as terminações nervosas, pois, a dificuldade técnica em tal empreitada era por si só um desestímulo. Ramón y Cajal considerava que, somente por meio da clara e exata exposição dos últimos axônios centrais, a contenda se resolveria, retirando o debate de meras hipóteses especulativas. Cito Ramón y Cajal:

Afirmar que tudo se comunica com tudo, vale tanto como declarar a absoluta incognocibilidade do órgão da alma229.

A idéia de que a defesa do reticularismo se baseou, quase que integralmente, em especulações sem adequação com os dados empíricos não se sustenta à luz da documentação. O exame detido da obra desses autores que defenderam a formação da rede na constituição do tecido nervoso mostra um meticuloso trabalho de

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experimentação sobre o tecido nervoso tanto quanto de seus sucessores que adotaram a teoria neuronal no final do século XIX.

Devemos pontualmente limpar a fumaça que se instaurou sobre o tema para que possamos olhar com clareza os pontos de sustentação das teses reticularistas. Neste capítulo examinarei o que a historiografia consagrou sobre a primeira metade do século XIX como a contenda entre duas visões sobre a organização do sistema nervoso e o organismo em sua totalidade. Esta controvérsia se deu em termos funcionais e anatômicos. A controvérsia é representada pelo conceito localizacionista e sua antítese holista. Assumo desde já que a adoção dessa dicotomia não ajuda a compreensão da orientação que se deu na adoção das teses reticularistas e posteriormente, por boa parte da comunidade científica, da teoria neuronal.

Outro ponto a ser examinado neste capítulo se refere ao que chamo de reticularismo golgiano, em alusão direta à concepção reticular que Golgi sustentou até o final de sua vida. Defenderei ser mais correto a distinção entre reticularismo de orientação funcional-patológica e reticularismo estrutural do que a também consagrada distinção entre reticularismo e contiguidade (neuronismo). Para tal, nos próximos capítulos tentarei mostrar que em alguma medida Golgi não se filia a teses reticularistas, sendo errônea a classificação geral dele como um cientista reticularista em um confronto direto com o modelo neuronal.

Com isso não defendo que Golgi seja compreendido como sendo filiado à teoria neuronal, já que sua oposição é notoriamente conhecida. Defendo que a compreensão da história moderna da neurociência pela via da formação dos conceitos centrais das teorias em questão permite e pressupõe a diluição de contendas que são ampliadas pela historiografia frequentemente e que retira toda a heurística do processo de formação e consolidação dos conceitos científicos caros à neurociência.

No documento A teoria neuronal de Santiago Ramón y Cajal (páginas 151-155)