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SOBRE AS TRANSCRIÇÕES E AS ANÁLISES DO REPERTÓRIO

4 METODOLOGIA DA PESQUISA

4.4 SOBRE AS TRANSCRIÇÕES E AS ANÁLISES DO REPERTÓRIO

Em seu livro A afinação do mundo, Schafer declara que a notação musical representa “uma tentativa de substituir fatos auditivos por sinais visuais.” (SCHAFER, 1997, p. 175).

Esta tentativa jamais é integralmente bem-sucedida, e, portanto, a notação musical por si só apresenta limitações estruturais.

Em alguns gêneros de música popular, determinado conjunto de conhecimentos musicais relativos à performance é compartilhado pelos músicos daquele ambiente, de forma que a notação não se ocupa com determinados aspectos tacitamente acordados entre aqueles indivíduos “através da observação direta e da tradição oral” (ARAGÃO, 2013, p. 164). Segundo Sève:

O jazz, o choro e outros estilos e gêneros populares costumam ter também suas músicas notadas apenas com indicações essenciais — ritmos melódicos, formas, alturas, tonalidades e sugestões de andamento (...). Detalhes de articulação, de dinâmicas e agógicas (...) raramente são prescritos. Muitos procedimentos interpretativos encontram-se revelados em um sistema de códigos compartilhados pela tradição oral. (SÈVE, 2016, p.1305).

O exemplo do violonista e pesquisador Luiz Otávio Braga (2002, P. 31) ilustra certa “divergência” entre a notação e a realização musical.

As semínimas, nas linhas de baixo, são tocadas com maior frequência com um pouco de efeito staccato. Suas durações, portanto, não são integrais e estariam no limite da colcheia. Nesse caso, a própria mão esquerda “corta” a duração indicada na partitura, com a retirada sutil da pressão da mão. Da mesma forma, semínimas indicadas com pizzicato são interpretadas como colcheias, ao que os violonistas chamam de “efeito tuba”. A rigor, não se indica na partitura o que fazer, estando a oportunidade de uma ou outra ação a critério do violonista.

Segundo Remo Pellegrini (2005, P. 45), a constituição acústica dos instrumentos normalmente auxilia esse recurso de performance:

Pela estrutura de construção do instrumento, a ressonância de cada nota é bem mais curta que em violões de concertista, o que leva esse instrumento a uma característica quase percussiva. Essa é uma preferência dos violonistas tradicionais para que a sonoridade de seus instrumentos não se sobreponha à melodia principal, expondo sua função harmônico/melódica e se fundindo ao naipe de percussão.

Portanto, as semínimas indicadas nas transcrições não duram exatamente o valor de uma semínima, assim como em alguns casos a colcheia não dura o valor completo de uma colcheia. Sob essa perspectiva, as transcrições apresentadas nesta pesquisa foram realizadas

com a consciência de que apenas o envolvimento real com o gênero musical é capaz de impulsionar a internalização de determinados recursos idiomáticos, como o acima citado.

A respeito das transcrições, é necessário destacar ainda a dificuldade encontrada em realizá-las na perspectiva da audição, uma vez que os antigos sistemas de gravação não possuíam uma captação individualizada dos instrumentos, o que implica na dificuldade de percebê-los e identifica-los. Grande parte das transcrições foi realizada a partir de gravações cuja captação foi executada com uma pequena quantidade de canais, como observado na equalização do disco Vibrações (realizada pelo técnico Darci da RCA Victor em 20/06/1967 e fixada no interior do estojo de Jacob do Bandolim), em que é possível confirmar que diferentes instrumentos “dividiam” alguns canais, o que gera dificuldades na mixagem individual de cada um deles.

Figura 5 - Equalização do disco Vibrações.

Fonte: Acervo Jorge Cardoso17.

Tal dificuldade é agravada pelo fato do V6 estar posicionado em uma situação intermediária no espectro de frequências do conjunto, o que prejudica a audição da sua performance. Nesse tipo de gravação, os “extremos” de frequência (os agudos do solista ou os

17 CARDOSO, Acervo de Jorge. Equalização para Jacob, por Darcy. LP Vibrações. Rio de Janeiro: RCA – 20

de junho de 1967. 1 imagem. Disponível em: <https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10210210999740688&set=a.10201856036671833.1073741826.15

graves do V7) são frequentemente mais perceptíveis do que o V6, tanto pela própria questão de sua posição no espectro, como em função das mixagens e volumes adotados.

O músico e pesquisador Iuri Lana Bittar, que também percebeu tais dificuldades ao transcrever a performance do violonista Meira, aponta que “na grande maioria das gravações notamos o violão de Dino (V7) bem claro, enquanto para se ouvir o violão de Meira (V6), necessitamos de um grande esforço, normalmente com recompensas insatisfatórias”. (BITTAR, 2011, p.98).

Tais dificuldades são ainda agravadas quando o grupo possui 3 violões, ou seja, um V7 e dois V6s, como no Época de Ouro, cuja equalização apresentada na figura acima aponta que os violões de César Faria e Carlinhos Leite compartilham o canal 3.

Portanto, é preciso destacar essas ressalvas em relação às transcrições. Nesta pesquisa, preferi as nomear como transcrições baseadas nas gravações utilizadas, pois em alguns trechos é realmente muito difícil decupar o V6.

Convém também justificar o formato escolhido para as transcrições apresentadas. A partir da constatação das importantes relações entre melodia e V6 e entre V7 e V6, optei por ir além de uma transcrição isolada do V6 e apresentar três linhas na grade transcrita: melodia, V6 e V7, nesta ordem, com a harmonia apresentada entre o V6 e o V7. Este formato me pareceu mais adequado para a visualização e análise das performances transcritas, uma vez que a visão geral das três linhas, simultaneamente expostas, possibilita uma imediata avaliação vertical a cada trecho. Especificamente, em relação à transcrição dos violões, optei por escrever apenas o baixo. A escrita de toda a digitação de cada acorde me pareceu exagerada aos propósitos da pesquisa e, além disso, geraria uma quantidade de informações que acabaria por dificultar a visualização e a análise das competências musicais discutidas. A harmonia – cifra – apresentada entre os violões e os baixos transcritos na segunda e terceira linhas são suficientes para indicar a sua performance. Apesar da cifra ser uma notação imprecisa na perspectiva da disposição do acorde, as principais formações de acordes típicas do Choro (em suas disposições mais tradicionais) são apresentados na secção Harmonia e na secção Inversões, o que irá auxiliar na visualização da formação do acorde sem precisar explicitá-lo integralmente a cada momento. No entanto, em alguns casos especiais, é oferecida, especialmente na transcrição de Levadas, uma transcrição literal dos acordes. Em relação à análise harmônica contida na secção Harmonia, é importante frisar que foram utilizados algarismos romanos simples (I, II, III...) para os acordes pertencentes ao campo

harmônico correspondente18. O acorde dominante foi cifrado como V (apenas), para evitar confusão com a sigla utilizada para o violão 7 cordas – V7.

Por fim, os comportamentos descritos nas análises apresentadas podem ser encarados como apontamentos para uma generalização dos detalhes dessa performance, uma vez que o repertório escolhido é bastante representativo. No entanto, quanto mais transcrições e análises forem feitas, maior será a segurança probabilística em se cravar paradigmas da performance, naturalmente.

18 Ou seja, o algarismo II, por exemplo, pode representar diferentes tipos de acorde, a depender do contexto do

campo harmônico. No contexto de C, II significa Dm, por ser o acorde pertencente ao campo harmônico de C. No contexto de Cm, II significa Dm7(b5), por se tratar do acorde correspondente àquele campos harmônico.