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4.3 ELUCUBRAÇÕES COM AS IMAGENS

4.3.2 Sobre bricolagem e bricoleur

Mário Vitória também se mostra como bricoleur, em nossa perspectiva, pois a utilização de diversos símbolos e elementos da cultura em suas imagens pictóricas leva-nos a refletir acerca desse oceano imagético. MV relaciona símbolos heteróclitos, remetendo-nos a diversas questões tratadas nas Epistemologias do Sul. A bricolagem para Carvalho (2003):

é um processo que se define basicamente pela ausência de um projeto que ajuste, de modo linear e causal, meios e fins. Nela se desfazem as dualidades entre arte e ciência, ciência e mito, razão e desrazão. Seu papel é criar signos e significados valendo-se de resíduos culturais acabados, imprimindo-lhes rearranjos e reorganizações (CARVALHO, 2003, p. 9).

Enquanto bricoleur, MV religa elementos distintos e, convencionalmente, inconcebíveis como partes integrante nas relações humanas. O artista compõe cenários e personagens inéditos à normalidade do cotidiano, legitimando o que não se vê e não se crê. É, ao mesmo tempo, colocar em cheque a ideia de pureza do ser humano, considerando-o constituinte de natureza animal e vegetal.

O bricoleur utiliza materiais que já existem e une materiais diferentes trazendo à tona outro conceito, outra história, outro objeto. No caso do Mário Vitória, a denominação de bricoleur tem um caráter simbólico, porque esses objetos, essas coisas, esses materiais que são colados, juntados, reunidos numa única peça resultam na ressignificação de um objeto, de um símbolo, ou de uma estória inteira, outro utensílio. As experiências sociais reunidas com o onírico e elementos da fantasia (criados pela indústria cultural da produção infantil de desenhos animados) evidenciam e denunciam os desgastes dos direitos humanos. Werneck (2008) explica que:

na arte da bricolagem, o onírico e o poético são elementos constitutivos do objeto fabricado, não importando a sua rusticidade. É a arte do improviso, do intuído, em que a imaginação, aliada a uma grande habilidade manual, desempenha papel fundamental. Artista do acaso objetivo, colecionador de cacos e ruínas, o bricoleur retira, até mesmo do ordenamento e da classificação de seus materiais, uma experiência estética suplementar (WERNECK, 2008, p. 326).

Para Lévi-Strauss (1989, p. 42), o bricoleur é aquele que jamais completa o projeto, estando sempre a se reinventar, falando “por meio das coisas”, “pelas escolhas que faz entre possibilidades limitadas”. Um trecho, de Lévi-Strauss, que principia a obra “Olhar, escutar, ler” (1997), é pertinente como exemplo da ação de bricollage:

Proust compara seu trabalho ao de uma costureira que monta um vestido com peças já recortadas, que já possuem forma; ou, se o vestido estiver muito usado, o refaz. Do mesmo modo, em seu livro ele ajusta e cola fragmentos uns aos outros “para recriar a realidade, costurando, no movimento de ombros de um, o movimento de nuca feito por outro”, e construir uma única sonata, uma única igreja, uma única jovem, com impressões recebidas de várias.

Essa técnica de colagens e montagens faz da obra o resultado de uma dupla articulação. Não utilizo a expressão segundo seu emprego linguístico. A extensão parece-me, contudo, legítima pelo fato de as unidades de primeira ordem já serem obras literárias, combinadas e dispostas para produzir uma obra literária de um nível mais elevado. Esse trabalho difere do que resulta de projetos, de esboços refundidos na redação definitiva, em vez de, no estado último da obra, as peças do mosaico permanecerem reconhecíveis e manterem sua individualidade (LÉVI-STRAUSS, 1997, p. 10).

Outro excerto de Lévi-Strauss (1997), desta vez ao versar sobre o pintor francês Nicolas Poussin (1594-1665), também pode vir a compor nossa analogia com MV em seu caráter bricoleur. Vejamo-la:

num quadro de Poussin, nunhuma parte é desigual em relação ao todo. Cada uma delas é uma obra-prima do mesmo nível, tanto que, tomadas à parte, apresentam o mesmo interesse. O quadro aparece assim como uma organização em segundo grau de organizações já presentes em cada detalhe. Isso é igualmente verdadeiro visto no sentido inverso: há figuras isoladas, em quadros de Poussin, que contêm várias, que aparecem ser por si só um quadro completo de Corot. A organização do todo transpõe numa escala maior a das partes, cada figura é tão cuidadosamente pensada quanto o todo. Não surpreende que, em sua correspondência, Poussin siga o costume de seu tempo, medindo a dificuldade de cada obra pelo número de figuras que irá conter; cada uma coloca um problema do mesmo nível que a totalidade do quadro (LÉVI-STRAUSS, 1997, p. 28).

Quando tratamos de organização das partes e do todo, estamos também discutindo a capacidade criativa, lúdica do artista em representar a realidade. A escritora Vera Zolberg (2006) aponta que:

alguns pensadores psicanalíticos vêem o artista como aparentado ao “xamã, que é ao mesmo tempo cientista, artista, médico e sacerdote”. A exemplo dos xamãs, os artistas estão em íntimo contato com o próprio inconsciente e com

o de outros. Combinam essa capacidade com a disciplina, controlando e transformando as forças assim liberadas em expressão lúdica (ZOLBERG, 2006, p. 183).

Em outra análise, Santa'Anna (2017) explica: “dizemos que um cirurgião é artista quando ele é excepcional. Até na política esse adjetivo é aplicado. Em qualquer atividade humana (e às vezes entre os adestrados animais) a artisticidade é um mérito, uma qualidade, um elemento diferenciador" (SANTA'ANNA, 2017, p. 22). Em seu ensaio crítico, Santa’Anna (2017) defende que atividades artísticas “têm um traço em comum: partem do princípio de que o indivíduo que as pratica detém um saber, uma técnica” (p. 20). O autor comenta a existência do “mestre” nas práticas artísticas, pois esse termo “se aplica como sinal distintivo, categorizador”. Aqueles que possuem esse título são “especialistas numa determinada coisa, são pessoas que dominam um certo código” (SANTA'ANNA, 2017, p. 21). Seria, portanto Mário Vitória, atualmente, um jovem mestre da arte insurgente?

Há de considerarmos a maestria do artista ao estabelecer consenso entre as partes, promovendo um todo impactante, causando deslumbramentos. A conexão entre as partes reflete a composição artística enquanto sistema imagético, sendo assim análogo a um organismo inteiro, no qual cada uma das suas estruturas coopera na construção de sensações de experiências alusivas à realidade concreta.

Com as artes plásticas, MV assume uma luta social. De acordo com Santos (2014b), “Ninguém vai à luta por razões apenas [...]. Tem que haver uma paixão, tem que haver uma emoção. Portanto, um conhecimento nascido na luta é um conhecimento emocional”.

Prosseguindo nosso deslumbramento em direção ao “sentido do sul” (SANTOS, 2017), acrescentamos o que se pensa sobre Axé, o qual, para Menezes (2012, p. 61), é um sentimento “é o princípio vital, o poder, a força mágica [...]. O axé pode ser veiculado ou estar contido em locais, objetos, elementos da natureza, animais, vegetais, alimento ou seres humanos”. Desta maneira, as imagens de MV expressam, muitas vezes, relações criadoras do Axé45, que é, a nosso olhar, o significado de apelo social produzido na interação entre os

45 O termo Axé também é utilizado no Brasil na tradição cultural da Capoeira, em seus cantos e nas vivências de treino e roda. Durante as “papoeiras” (o saber da oralidade com o Mestre) se falar em Axé é comum. Alguns Mestres Capoeiras possuem suas definições particulares do termo, uma delas é contextualizada pelo Mestre Fora do Ar, que frisa: “A roda de capoeira é um organismo. Os componentes da bateria atuam como o cérebro; os dois jogadores pulsam no centro como o coração; a assistência dos outros capoeiristas, com as palmas e o coro, servem como artérias, músculos e esqueleto. Por isso que a roda é um corpo vivo e deve ser respeitada, e cada um tem a sua importância para criar o Axé”. (Mestre Robson (Fora do Ar) – Capoeira Corpo Livre, 12.09.2017, Natal-RN).

elementos pictóricos, embora, nesse posicionamento, estejamos transgredindo fronteiras culturais Brasil/ Portugal, praticando uma mestiçagem.

Cada obra imagética de MV possui um discurso único construído por elementos múltiplos, os quais também se expressam singularmente e contam a sua própria história; por isso, em cada composição há ecologias. Destarte, podemos ilustrar esta abstração com o raciocínio filosófico Ubuntu.

ubuntu ressalta a importância do acordo ou consenso. A cultura tradicional africana, ao que parece, tem uma capacidade quase infinita para a busca do consenso e da reconciliação (Teffo, 1994a: 4 – Towards a conceptualization of Ubuntu). Embora possa haver uma hierarquia de importância entre os oradores, cada pessoa recebe uma chance igual de falar até que algum tipo de acordo, consenso ou coesão do grupo seja atingido (LUZ, 2016).

Podemos entender, assim, que cada indivíduo constitui um significado para o todo. A importância do sujeito dentro de um sistema incide na sua significação para o coletivo. Se os distintos significados dialogam e se complementam, há possibilidades de constantes transformações. As narrativas visuais de MV fazem-se no conjunto, na interação e na necessidade umas das outras para criar sentido e se fazer história.

Os diálogos percebidos nas imagens, em nosso entendimento, podem ser estabelecidos de duas formas, quais sejam: entre as personagens hegemômicas e entre as personagens contra- hegemônicas. O diálogo em alguns momentos surgiu-nos como expressão de solidariedade, ou poderíamos entender também como um modo de amor social. Para Maturana (2001, p. 269), “tudo isso nos permite perceber que o amor [...] a aceitação do outro junto a nós na convivência, é o fundamento biológico do fenômeno social. Sem amor, sem aceitação do outro junto a nós, não há socialização, e sem esta não há humanidade”. Sendo assim, o amor atua como elemento da estrutura humana, sendo também o cerne do social. O domínio de condutas é constituído pela amorosidade, uma esfera na qual se opera a aceitação do outro como legítimo. Neste diapasão, amparados por Nunes (2005), concordamos com seu pensamento quando afirma:

só há emancipação através de significações partilhadas” (S. Santos, 2000). Este princípio de comunicação é, a um só tempo, interrogativo e criativo. Interrogativo das condições de participação activa que criem e sustentem o diálogo plural e a polifonia; criativo quando a negatividade dessas condições [...] se transmuta na positividade (o auto-reconhecido optimismo trágico) (NUNES, 2005, p. 125).