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3. O ECOSSISTEMA CULTURAL APLICADO À RODA DE CAPOEIRA

3.1. O trajeto histórico da formação dos grupos de capoeira no Brasil

3.1.1 Sobre o cenário

Tuan (2013) afirma que o corpo humano é a condição para experienciar o mundo e, ao mesmo tempo, um objeto acessível, integrado ao meio. As suas funções fisiológicas, os seus sentidos, também estão constituídos pelas emoções e pelas experiências sociais íntimas. A sede de um grupo de capoeira é constituída nesse processo, porém, ela não se limita à atuação dos capoeiristas, pois a roda pode ser feita na sede e em qualquer outro lugar, desde que haja uma pessoa tocando berimbau, cantando, e outras duas jogando entre si, tal como afirma Mestre Pavão (SILVA, 2008c). Afinal, o ser humano tem a capacidade de interpretar o espaço, modificá-lo, materializar nele os seus sentimentos, imagens e pensamentos por meio de seu corpo. Nesse sentido, podemos compreender a interação do ser humano com o seu meio ambiente como uma parte natural da sua vida.

Como demonstra Silva (2014), todo grupo de capoeira, para se manter como tal, tem o seu lugar, a sua sede. Nesse lugar, o grupo colore as paredes, prega quadros dos mestres, enfim, decora o espaço do modo com o qual ele mais se identifica. Na sede, o grupo realiza os treinos, as reuniões, as confraternizações, as rodas. Enfim, as interações dos integrantes do grupo entre si e com a capoeira se desenvolve na sede.

O “natural”, aqui, é um grupo se apropriar de um espaço e transformá-lo em seu lugar de capoeira, na sua identidade como grupo. Sem uma sede, um grupo encontra inúmeras dificuldades em se manter como tal. Podemos considerar, então, que a sede do grupo é um lugar delimitado conforme as características da capoeira e a afetividade daquelas pessoas. Mestre Pavão (SILVA, 2008d, p. 44) afirma que “[...] o espaço de treinamento e o do jogo são previamente estabelecidos pela demarcação de um círculo riscado no chão, ou imaginária, ou com o deslocamento das pessoas [...].” Portanto, a sede pode ser considerada como um cenário do grupo de capoeira, onde as interações comunicativas treino e roda podem acontecer.

Em razão de um grupo de capoeira depender de uma sede e poder fazer a roda em qualquer lugar, pode-se afirmar que na capoeira existem dois lugares interdependentes para a existência de um grupo: a sede e o lugar da roda. Todos eles são construídos pela experiência. O primeiro seria o lugar do grupo como uma comunidade de fala ecolinguística, isto é, a sede, o endereço onde o grupo se mantém como tal, realizando os treinos, as reuniões, as rodas, as confraternizações, etc. O segundo lugar é o da roda de capoeira, no qual se percebe uma ecologia de interação comunicativa própria da capoeira angola, nos termos da Linguística Ecossistêmica. Ademais, ela não precisa acontecer, necessariamente, na sede do grupo.

Na roda, a capoeira está demarcada, o capoeirista coloca seu treino em prática e exercita sua criatividade na ginga e nos movimentos. É comum identificar vários grupos de capoeira em uma mesma roda, revezando instrumentos, cantos e jogos. Ali todos eles se tornam a comunidade da capoeira, atualizam toda a sua simbologia e aprendem cada vez mais, pois cada jogo é único e irrepetível. As interações comunicativas entre os membros dessa comunidade de fala acontecem na sede e na roda. Então, podemos considerar para a capoeira dois cenários: a sede é o lugar onde o grupo interage ecolinguisticamente como uma comunidade de fala e realiza seu treino. A roda é o lugar onde o(s) grupo(s) interage(m), constituindo, como já dito, uma Ecologia da Interação Comunicativa capoeirística.

Vale fazer uma pontuação aqui. A EIC é o cerne da linguagem, é a maneira pela qual uma interação comunicativa se organiza entre os interlocutores. Dessa maneira, na sede de um grupo de capoeira há EIC porque os membros estão se comunicando. Na roda temos a

capoeira em sua totalidade de música, jogo, dança, mandinga, ancestralidade e tudo o mais. Por isso, na roda realiza-se a EIC da capoeira. Isso não exclui a interdependência dessas duas EICs, já que uma roda também pode acontecer na sede do grupo, inclusive, todos os grupos de capoeira promovem uma roda de capoeira em sua sede para os demais capoeiristas e público em geral.

Retomando a classificação do grupo de capoeira como uma comunidade de fala, tem- se que a sede é o lugar delimitado pelo grupo para que ocorrem as interações comunicativas que fazem dele uma CF simples/complexa; compacta/fixa. A roda pode ser considerada um lugar simbólico, construído pela demarcação do círculo (Mestre Pavão, SILVA, 2008d) e por meio de elementos próprios que se compõem em uma simbologia cíclica onde ocorrem os jogos de capoeira. Nesse lugar simbólico forma-se uma CF simples/complexa e

compacta/efêmera, pois a roda não é ponto fixo nem repetitivo. É um lugar simbólico,

definido pela circularidade, cuja frequência e regularidade mantêm a capoeira viva.

Mestra Janja (ARAÚJO, 2004) afirma que a roda de capoeira é uma pequena roda, inserida na grande roda da vida. A capoeira tem uma duplicidade quanto ao lugar onde ela existe e onde é praticada. Contudo, aqui está sendo considerado esse duplo cenário para a capoeira em termos de interação comunicativa, na medida em que, sem essa constituição, um grupo de capoeira dificilmente poderia se manter como uma comunidade de fala. Portanto, podemos dizer que existem dois cenários para a interação comunicativa da roda de capoeira. O primeiro é um cenário físico, a sede, um lugar delimitado por elementos de capoeira que congregam as pessoas em um grupo. O segundo é um cenário simbólico, a roda de capoeira, um lugar composto por elementos que perpetuam a capoeira na vida das pessoas. Assim, considerando que as rodas de capoeira também acontecem regularmente na sede do grupo, nesse caso, temos, então, um cenário simbólico que coincide com o cenário físico da CF

grupo de capoeira.

Nesse sentido, este estudo trata da interação comunicativa da roda de capoeira, de modo que, daqui em diante, considera-se apenas o que foi denominado por cenário

simbólico. Ele é composto, então, pelos instrumentos e pelos jogadores vestidos de uniforme

e organizados em forma de ciranda. Cada grupo de capoeira possui uma maneira de organizar seus instrumentos. Tal como Silva (2014) também sinalizou, a ordem dos instrumentos dos grupos de Goiânia é a seguinte (da esquerda para direita): reco-reco, agogô, pandeiro, berimbau viola, berimbau médio, berimbau gunga, pandeiro, atabaque. Geralmente, os angoleiros que tocam instrumentos ficam sentados. Aqueles com mais tempo de capoeira, treineis, contramestres e mestres têm preferência para tocar o berimbau. Os demais

participantes sentam-se ao chão, em frente à bateria, em forma de ciranda. Essa é a composição do cenário simbólico onde acontece a interação comunicativa da roda.