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3. O ECOSSISTEMA CULTURAL APLICADO À RODA DE CAPOEIRA

3.1. O trajeto histórico da formação dos grupos de capoeira no Brasil

3.1.5 Sobre a comunhão

De acordo com Couto (2016), as regras sistêmicas e interacionais podem garantir algum nível de entendimento e manter a coesão de um grupo, mas são insuficientes para mantê-lo coeso. É necessário “algo” a mais que justifique, para cada membro, a importância de se manter a comunidade viva. Esse “algo” é mais um componente da EIC denominado de

(VII) comunhão. Como analisado, as regras interacionais englobam as sistêmicas, de maneira

que só o sistema linguístico não é suficiente para que a interação comunicativa se efetive entre os interlocutores. Couto (2009) disserta que é necessária certa predisposição dos falantes para a comunicação, uma vontade de estar junto para dialogar como grupo, seja ele grande ou pequeno.

Assim, após discutir os conceitos apresentados pelo dicionário, Couto (2009) apresenta três definições de comunhão. A primeira é a de que ela é um compartilhamento de sentimentos em uma convivência harmônica, cooperativa, entre as pessoas. A segunda relaciona-se à função fática da linguagem teorizada por Jakobson, “[...] a comunhão fática é um pré-requisito para a comunicação, é uma espécie de preparação para ela” (COUTO, 2009, p. 75). Por fim, a terceira definição é a comunhão comunial, que se trata de uma coesão comunitária, uma comunhão interacional que mantém uma comunidade de fala unida.

[...] a comunhão é um tipo de coesão, um tipo de força centrípeta que mantém as partes de um todo em harmonia entre si. Essa força de coesão fica mais patente no nível da comunidade, ou da coletividade, também chamada de povo ou população. No entanto, ela é de fundamental importância também nos atos de interação comunicativa. Sem um mínimo de empatia ou, pelo menos, um pouco de boa vontade, não haveria comunicação eficaz entre dois interlocutores. O fato é que, quando se fala em linguagem, é necessário que haja comunhão, ou coesão comunitária e comunhão interacional, sendo que esta última é mais propriamente chamada de comunhão interlocucional ou dialógica. (COUTO, 2009, p. 85).

Portanto, a comunhão foi pensada na instância da comunidade e no fluxo interlocucional no interior da EIC. Em termos de comunidade, ela é um compartilhamento de sentimentos, envolve laços de empatia e de cooperação entre os membros do grupo para que estejam em constante interação comunicativa. Em termos do fluxo interlocucional, trata-se das condições de possibilidade de um diálogo, que exige um conhecimento linguístico entre os interlocutores e uma predisposição para que se comuniquem em torno de alguma necessidade emergente.

Atualmente, também se discute que esses sentimentos, saberes e laços cooperativos desenvolvem, em cada indivíduo, um senso de pertencimento ao seu grupo. Em cada grupo de capoeira, os capoeiristas começam a vivenciar e a desenvolver um senso de pertencimento. O compromisso e a dedicação ao aprendizado nos treinos permitem que o grupo reconheça a pessoa como um de seus membros, do mesmo modo que ela também começa a se reconhecer como parte do grupo. Todas as regras interacionais mencionadas anteriormente constroem e mantêm a comunhão em um grupo de capoeira. Atitudes solícitas, respeito aos mais velhos, respeito à ancestralidade africana, aprendizado dos movimentos, dos cantos, dos instrumentos e da cosmovisão da capoeira conserva um grupo de capoeira coeso e unido. Da mesma maneira, essa comunhão do grupo permite agregar novos membros.

Os cantos de capoeira também trazem itens lexicais que evidenciam a construção de comunhão dentro do grupo de capoeira. Os substantivos “angoleiro” e “camarada” tem a função de identificar os membros do grupo e trata-los de modo amistoso. Para se referir ao parceiro de jogo também é um item lexical de construção de comunhão. Ambos constroem em cada indivíduo um senso de pertencimento. Da mesma maneira, a marcação de gênero nas palavras “mestra”, “contramestra” e “angoleira”. A partir do momento em que as mulheres começaram a participar do grupo, a se dedicarem à capoeira, percebeu-se a necessidade de desconstruir visões de mundo e atitudes que as excluíam. Essa comunhão das mulheres da capoeira com os grupos está se consolidando cada dia mais, mesmo com os conflitos existentes, pois, como vimos nas lideranças femininas da capoeira em Goiânia, a perspectiva é que haja mais igualdade de gênero também nesta comunidade.

A comunhão também pode ser vista como uma maneira de o grupo se adaptar às mudanças de seu meio exterior. A progressiva participação das mulheres na capoeira reconfigura a comunhão entre os participantes de um grupo, no sentido de que é necessário cooperar com elas, conviver, ter empatia, enfim, integrá-las ao grupo. Logo, comunhão e adaptação podem ser vistas como determinantes para as interações comunicativas de uma comunidade de fala. Além disso, a comunhão também garante a sobrevivência do grupo. Infelizmente, a rotatividade nos grupos é grande, pois, hoje em dia, poucas pessoas conseguem dedicar muito de seu tempo à capoeira. Contudo, o grupo persiste e a capoeira também, pois o senso de pertencimento dos capoeiristas mantém isso vivo. A tradição da capoeira, então, é transmitida pelos grupos por meio dessa capacidade que cada um deles tem de manter a comunhão entre os seus membros e de se adaptar a transformações sociais do mundo.

A descrição dos sete elementos da Ecologia da Interação Comunicativa da capoeira angola – (I) cenário, (II) falante, (III) ouvinte, (IV) assunto, (V) conjunto de regras

interacionais, (VI) regras sistêmicas e (VII) comunhão – foi a maneira de demonstrar que

um estudo ecolinguístico dos fenômenos da linguagem não dissocia a comunidade de fala de suas interações comunicativas no momento da descrição de seus elementos. Muito se falou do grupo de capoeira como uma comunidade de fala para entender a interação comunicativa da roda de capoeira angola. Apesar disso, a capoeira é um jogo, uma dança e uma luta (REIS, 1997) em que todos os seus componentes estão, em razão dessa tripla concepção, centralizados na linguagem corporal. A capoeira está no corpo do capoeirista. Como afirma Mestre Pavão (2008c, p.20), o corpo inteiro do capoeirista é uma arma. Por isso, uma reflexão sobre o papel do corpo na interação comunicativa da roda de capoeira angola contribui para compreensão do universo ao qual os capoeiristas estão imersos.