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Entre mães e filhas:

Ao encontrá-la pela primeira vez aguardando-me à porta do ambulatório, Larissa já me trazia na cena que se desenrolava, um aspecto de sua vida, sua dificuldade com a família, em particular ali com a mãe. Parecia tirar toda a força de seu corpo para defender-se dos comentários maternos. Nesse inicio despertou em mim algo de um infantil, de uma onipotência fragilizada, de seu desamparo diante do diagnóstico de HIV remetendo a escancarar outras feridas. Diante do desespero de um diagnóstico que agora já não podia evitar, Larissa encontrava-se diante do insuportável: de uma ferida a céu aberto no seu narcisismo.

Pensei ali o que Larissa buscava em mim: sair em sua defesa? Era o que estava me demandando nessa hora. Do que precisava ser defendida? Ou de quem? Quando sua mãe sai do consultório, se abriu um lugar para o silêncio. Um silêncio se fez nela, ao me colocar para escutá-la ali. De sua altivez, foi abrindo espaço para tentar falar de si, de seus sentimentos. Fala desse momento da “confusão em sua vida” e da tristeza diante de suas perdas, que a isolava em sua casa, tentando fugir dos conflitos com a mãe. Como fugir de conflitos? Que conflitos trazia?

Nossos atendimentos iniciais giraram em torno de sua angústia em como contar ao seu parceiro atual sobre o diagnóstico de HIV. Apesar de não vê-lo desde a época em que começou a adoecer, se perguntava: se contasse, ele a agrediria? A abandonaria? A aceitaria? Entre as angústias do contar-como contar aos poucos trazia sua relação com seus pais. Suas preocupações e medos, para além das criticas e discriminações, diante do diagnóstico HIV continha a pergunta dirigida a seus pais: “Quem ia me cuidar?”

O que destoava em Larissa era seu aspecto confiante, determinado e desafiador que aparentava quando a encontrava no ambulatório, e que permanecia por algum tempo inicial nos atendimentos, até que ia surgindo, nas associações, algo que parecia arremessá-la a uma Larissa triste e solitária, uma criança com medo e perdida, em total desamparo. Larissa, para

quem a primeira gravidez aconteceu aos 14 anos, teve filhas-irmãs, cuidadas que foram por sua mãe. Já após a descoberta do vírus encarnou esses aspectos da maternidade cuidando de uma neta, para quem deslocava seu amor e cuidados. Essa foi a maternagem que foi se processando nesse período, de um encontro difícil, conflituoso. Entre o dito e o não dito, o saber e o não saber do sexual. Larissa quer encontrar uma saída para os conflitos com as filhas e a mãe. Relembrando Joyce McDougall, citada anteriormente:

A menina precisa arrancar de sua mãe o direito de ser ela própria, identificando-se com sua mãe em seu mundo psíquico interno, mas precisa também de sua mãe externamente, como guia, como consoladora e auxiliadora nos anos que se seguem (MCDOUGALL, 2001, p. 13).

O cenário que me trouxe com esse não saber da sexualidade colocando a mãe como esse lugar do “não saber”, não saber da menstruação, não saber do preservativo e a mágoa direcionada à de não ter aprendido com ela. Essa posição regredida que se fez nos atendimento foi onde pude tentar dar voz a essas queixas maternas. Segundo Zalcberg (2007, p. 33): “deste fator – de a mãe inscrever a criança num universo simbólico e discursivo que é seu – cada história de vida é um desdobramento. O que o analista ensina o sujeito a reconhecer como seu inconsciente é a sua história cujo capítulo não é escrito por ele mesmo”. O que Larissa desconhecia de seu corpo? A obstinação e ressentimentos de Larissa à mãe expressou desta forma em um atendimento, em que falava que agora queria refletir, ficar um tempo só, porque estava sempre com alguém e ao perguntar como era isso para ela, respondeu-me: “como minha mãe diz, uma pessoa bonita, intelectual, porém não progrediu nada..não vou mostrar para ela, vou mostrar para mim mesma”. Essa era o conflito de Larissa, sentir-se sozinha no seu mundo interno, desamparada, precisando dessa mãe protetora, acolhedora, e que até então vivia camuflando essa carência “em nunca estar só”.

Os caminhos da repetição

Nesse aspecto penso nessas relações destrutivas e violentas e que vão fazendo parte da vida de Larissa enquanto repetição – companheiros que vivem na marginalidade e que algo de um masoquismo presente, no sentido apontado por Nunes (2000), de assujeitamento ao outro, quando não encontra recursos fálicos outros que possam lhe garantir escapar do seu desamparo. Uma necessidade de punição constante por culpa atribuída à vivência dessa sexualidade, sempre transgredida, e sempre em situação de atuação pulsional. Apesar desse movimento pulsional, seus conflitos internos buscam conseguir uma conciliação possível e

não a arremessá-la a quadros depressivos, mantendo o prazer, se ligando a Eros. Talvez o que a liberte dessa condição é sua acirrada luta para não se identificar com a mãe submissa, que não soube mostrar-lhe sua sexualidade.

Conforme Freud (1924a) nos afirma em seu texto “O problema econômico do masoquismo”:

O masoquismo leva o sujeito à tentação de agir de forma “pecaminosa”, para que posteriormente essa ação seja, então, expiada por meio das criticas de ação sádica ou pelos castigos corporais aplicados pelo grande poder – de natureza parental – do Destino. Para conseguir que esse representante do casal parental o castigue, o masoquista deve fazer coisas inadequadas e trabalhar contra o seu próprio beneficio, destruir as expectativas que se lhe abrem no mundo real e eventualmente aniquilar sua própria existência real (FREUD, 1924a, p.114).

Há uma entrega total a esse amor, a essa relação, onde o outro é responsabilizado por tê-la seduzido e encantado “depois que ele fez gostar” e quando em sua fala: “fez essa maldade comigo”, como se nada pudesse ter feito para fugir desse destino trágico. E essa sedução atribuída ao outro, pediu uma entrega total, que significava a confiança desse amor: “eu passei confiança, mas não tive a confiança dele”. O risco a que se submetia, seu corpo e sua vida, parecia fazer parte da entrega amorosa ao qual se sujeitava. Quando sentiu a ameaça que o pacto silencioso que fazia com o companheiro que a havia contaminado, poderia ser rompido, reage ameaçando-o. De sua história, os seus envolvimentos afetivos que pareciam intensos e conturbados pareciam ao mesmo tempo fazer parte de uma tentativa de Larissa encontrar a si mesma, de uma busca incessante por uma liberdade que ela mesma não encontrava parâmetros, limites. Lutava contra um outro que podia agredi-la, maltratá-la, só não abandoná-la.

O pai

O pai de Larissa aparece como aquele que não sustentava o amor “conversava, conversava...e depois me espancava”. O relato de Larissa dava um tom de inquisição, por que a conversa e se no fim das contas iria me espancar? O desfecho dessa história de amor era de um tom trágico e sombrio que aparecia deixando marcas em seus relacionamentos com seus parceiros. Vida amorosa que não dava conta de prosseguir para além dos “cinco anos” e que eram “só namoros”. Estabelecer uma relação remetia confiança, confiança quebrada que “podiam rasgar as páginas”.

Nessa relação paterna, me remeto à obra de Ferenczi (1932), ao teorizar sobre um desencontro por assim dizer entre a linguagem de pais e seus filhos, crianças e adultos.

Crianças em situações de abusos físicos, morais, sentem-se confusas nessa relação ternura – agressão, e pedem ajuda a um segundo, em geral, a mãe, que as proteja. Ao escutar Larissa, me levava a tentar entender essa incongruência na atitude paterna, de um rompante de loucura, que de traumático e assustador pode significar psiquicamente para uma criança. Nesses relatos sobre os espancamentos sofridos do pai, em meio a perplexidade que parece ainda residir nessa dificuldade de interpretar os intempestivos acessos de raiva que ficava exposta, diante de um pai antes compreensivo, que a colocava sentada para conversar, Larissa trazia ao mesmo tempo, a falta de socorro a essas situações, e os ressentimentos com a mãe, que aparece como ausente nessas cenas.

Aprendendo a ser mulher

Da rebeldia que como “quanto mais falam, mas faço”, parece apontar uma saída para tentar se auto afirmar, se encontrar, como quando saía para rua, fugindo da casa com tantos conflitos, abusos. Penso também nesse aprender enquanto demanda que me foi dirigida transferencialmente que algo lhe fosse ensinado. Algo que busca nas palavras do dicionário, sentidos para seu viver e como continuar a viver.

A transferência como lugar de amor dirigida a um outro, algo dessa ordem estaria se processando. A esse lugar que a mãe representa para os momentos iniciais de uma criança é o do amor primeiro é porque é um amor “que melhor pode nos ensinar a amar” (ZALCBERG, 2007, p. 37).