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A socialização do homem e o casamento

3. H OMEM E MULHER : NATURALMENTE IGUAIS E DIFERENTES

3.2 A socialização do homem e o casamento

Se perguntarmos pelo que há de negativo nessa passagem de uma natureza para a outra, Rousseau nos chamará a atenção para o desenvolvimento dos caracteres pelo estado social. É,

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Id. Ibid., V. IV, p. 764. [“Não se deve confundir o que é natural no estado selvagem e o que o é na sociedade. No primeiro estado todas as mulheres convêm a todos os homens, porque uns e outros não têm ainda senão a forma primitiva e comum; na segunda, cada caráter sendo desenvolvido pelas instituições sociais, e cada espírito tendo recebido sua forma própria e determinada, não da educação somente mas no decurso bem ou mal ordenado do natural e da educação, não é mais possível ajustá-los senão os apresentando um a outro para ver se convêm de todos os pontos de vista, ou para preferir, ao menos, a escolha que dá mais conveniências”. (Id. Ibid., p. 487)]

segundo ele, nesse desenvolvimento que está o mal. Primeiro, o estado social distingue as classes sociais. Depois disso, passam a existir duas ordens distintas, ou seja, a formação do espírito passa a ser diferente em cada um, à proporção que as condições sociais interferem na educação deles. Assim sendo, uns passam a ser inconvenientes aos outros. Se os pais escolhem os parceiros para suas filhas, estão considerando apenas essas conveniências, bem como as instituições sociais. Como conseqüência, temos o que Rousseau chama “casamentos desiguais”. É destes que provém todas as desordens. Estas desordens refletem muito bem o que poderá ser o convívio social em geral, uma vez que as famílias formadas a partir desses casamentos desiguais acabam convertidas em formas de depravação humana, conforme conhecemos. A mais evidente conseqüência disto é o fato de que, segundo Rousseau,

Plus on s’éloigne de l’égalité plus les sentimens naturels s’altérent; plus l’intervalle des grands aux petis s’accroit, plus le lien conjugal se relâche; plus il y a de riches et de pauvres, moins il y a de peres et de maris. Le maitre ni l’esclave n’ont plus de famille, cacun des deux ne voit que son état.44

Com outras palavras, estabelece-se assim a impossibilidade de um contrato entre as pessoas, sem que seja por isso possível uma relação amorosa que permita a afirmação da cidadania. Se quisermos pensar com seriedade no que significa esta afirmação da cidadania, haveremos, portanto, de considerar o que representa a igualdade de condições para a efetivação de um contrato que viabilize a relação conjugal. Isso não quer dizer, por outro lado, que essa igualdade seja necessária, isto é, indispensável. Rousseau está nos dizendo, sim, que ela é importante e, por isso, deve ser considerada no momento de escolha dos parceiros, uma vez que, segundo ele, “quand cette égalité se joint aux autres convenances elle leur donne un nouveau prix; elle n’entre em balance avec aucune, mais la fait pancher quand tout est égal”.45

Quais seriam essas conveniências? De que modo se pode chegar a elas? Voltemo-nos, então, segundo Rousseau, para a questão do pensar. Como ficaria a relação de um homem que pensa com uma mulher que não aprendeu a pensar? Nisso podemos identificar uma das conseqüências da educação do homem: a possibilidade de pensar. Ou seja, o pensar é uma arte como qualquer outra que se adquire pelo processo ensino-aprendizagem. Assim, de acordo com Rousseau, o homem não pensa naturalmente, mas a partir do momento em que aprende a

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Id. Ibid., V. IV, p. 764. [“quanto mais nos afastamos da igualdade, mais se alteram os sentimentos naturais; quanto maior o intervalo entre os grandes e os pequenos, mais o laço conjugal se relaxa; quanto mais ricos e pobres, menos pais e maridos. Nem o senhor nem o escravo têm mais família; cada um não vê senão sua condição”. (Id. Ibid., p. 487)]

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Id. Ibid., V. IV, p. 461. [“quando essa igualdade se junta às demais conveniências, ela lhes dá mais valor; não entra na balança com nenhuma outra, mas pesa em tudo, sendo igual”. (Id. Ibid., p. 488)]

fazê-lo. E se comparamos a arte de pensar com as demais artes, até podemos dizer que seja ela mais difícil. E, se é algo que se ensina e que, portanto, se aprende, o convívio social exige que homens e mulheres aprendam a pensar. Educar passa a significar também ensinar o homem essa arte e, a partir disso, saber pensar passa a ser também uma das conveniências que deve ser levada em consideração, quando os indivíduos fizerem a sua escolha de um parceiro para o casamento.

No convívio social, seja ele qual for, faz-se necessária a comunicação entre os indivíduos. Esta necessidade de comunicação está presente no momento em que os jovens se aproximam uns dos outros para buscarem a identificação daquilo que possa ser conveniente a um relacionamento entre eles. A ausência do saber pensar, seja do lado do homem ou da mulher, tem como conseqüência a inviabilidade dessa comunicação. Por isso, Rousseau nos diz somente conhecer

pour les deux séxes que deux classes réellement distinguées; l’une des gens que pensent, l’autre des gens qui ne pensent point, et cette différence vient presque uniquement de l’éducation. Un homme de la prémiére de ces deux classes ne doit point s’allier dans l’autre; car le plus grand charme de la societé manque à la sienne lorsqu’ayant une femme il est réduit à penser seul.46

Quando Rousseau se refere aqui ao pensar está nos falando do refletir, como o bem fica expresso ao chamar a atenção para o que seja uma das inconveniências para o casamento somente um dos sexos pensar. Como será possível estabelecer princípios que regulamentem um contrato, se as partes envolvidas não souberem igualmente pensar? Quando este contrato diz respeito ao casamento, há ainda de se considerar o que pode resultar para a educação dos filhos, se a mulher não tiver aprendido a pensar tanto quanto o marido. Vejamos, pois, como Rousseau coloca-nos esta questão:

D’ailleurs, comment une femme qui n’a nulle habitude de réfléchir elevera-t-elle ses enfans? Commet disceernera-t-elle ce qui leur convient? Comment les disposera-t-elle aux vertus qu’elle ne connoit pas, au mérite dont elle n’a nulle idée? Elle ne saura que les flater ou les manacer, les rendre insolens ou craintifs; elle em fera des singes maniérés ou d’étourdis poliçons, jamais de bons esprits ni des enfans aimables.47

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Id. Ibid., V, IV, p. 767. [“para os dois sexos duas classes distintas: uma das pessoas que pensam, outra das que não pensam; e essa diferença vem unicamente da educação. Um homem da primeira dessas duas classes não deve unir-se com pessoa da outra; porque o maior encanto da associação falta à sua quando, tendo uma mulher, ele se vê reduzido a pensar sozinho”. (Id. Ibid., p. 490)

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Id. Ibid., V, IV, p. 767. [“Demais, como uma mulher que não tem o hábito de refletir educará seus filhos? Como poderá discernir o que lhes convém? Como os inclinará para as virtudes que não conhece? Não saberá

Pensemos, então, no que será uma sociedade em que as mães não saibam pensar. Que tipo de homem se formará? De que cidadania poderemos falar, quando aqueles que se formarem homens, não souberem discernir entre os vícios e as virtudes? Se não há condições para fazer dos filhos “bons espíritos” e “crianças amáveis”, certamente só poderemos contar com a depravação em um nível maior de crescimento. Assim, se queremos formar cidadãos, é preciso considerar o saber pensar como uma das conveniências que aproximarão os homens; e isto deverá começar no momento em que se firma um contrato de casamento. Pois, segundo Rousseau, “Il ne convient donc pas à un homme aqui n’em ait point, ni par consequent dans um rang où ne sauroit en avoir”.48

Com ambos igualmente educados para o pensar, é possível que cada um enxergue o momento certo de reivindicar os seus direitos, assim como o de ceder, quando se dá conta da necessidade de estar a serviço do outro. Rousseau mais uma vez chama-nos a atenção para a dependência que um passa a ter em relação ao outro, o que também acontece na sociedade em geral, uma vez que todos dependem de todos, mas, estando firmado o contrato segundo o que seja da vontade geral, todos obedecerão somente a si mesmos. O aprendizado que prepara o homem à cidadania começa, então, quando ele se faz namorado ou é aceito para uma relação a dois. Isso fica ilustrado quando Rousseau nos apresenta Emílio, agora adulto, aceito como namorado de Sofia:

Ainsi  diz ele  parvenu à se faire souffrir comme amant declare, Emile en fait valoir tous les droits; il parle, il presse, il sollcite, il importune. Qu’on lui parle durement, qu’on la maltraitte, peu lui importe pourvu qu’il se fasse écouter. Enfin il obtient non sans peine que Sophie de son cote veuille bien prendre ouvertement sur lui l’autorité d’une maitresse, qu’elle lui prescribe ce qu’il doit faire, qu’elle comande au lieu de prier, qu’elle accepte au lieu de remercier, qu’elle régle le nombre et le tems des visittes, qu’elle lui deffende de venir jusqu’à tel jour et de rester passe telle heure. Tout cela ne se fait point par jeu mais très sérieusement, et si elle accepta ces droits avec peine elle em use avec une rigueur qui réduit souvent le pauvre Emile au regret de les lui avoir donnés. Mais quoi qu’elle ordone il ne replique point, et souvent en partant pour obéir il me regarde avec des yeux pleins de joye qui me disent: vous voyez qu’elle a pris possession de moi. Cependant l’orgueilleuse l’observe en dessous, et sourit en secret de la fierté de son esclave.49

senão lisonjeá-los ou ameaça-los, torná-los insolentes ou medrosos; fará deles macacos alambicados ou moleques avoados, nunca bons espíritos nem crianças amáveis”. (Id. Ibid., p. 490)]

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Id. Ibid., V, IV, p. 768. [“Não convém portanto, a um homem que tem educação, tomar uma mulher que não tem, nem, por conseguinte, numa classe em que não a têm”. (Id. Ibid., p. 490)]

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Id. Ibid., V, IV, p. 789-790. [“Assim, tendo conseguido fazer-se aceitar como namorado declarado, Emílio faz valer todos os direitos; fala, insiste, solicita, importuna. Pouco importa que lhe falem duramente, que o maltratem, desde que se faça ouvir. Finalmente ele obtém, não sem esforço, que Sofia por seu lado queira outorgar-se a autoridade de uma namorada, que lhe prescreva o que ele deve fazer, que mande ao invés de pedir, que aceite ao invés de agradecer, que determine o número e o tempo das visitas, que lhe proíba vir até tal dia, ou ficar até tal hora. Tudo isso não se faz por jogo mais muito seriamente e, se ela aceitou tais direitos com relutância, ela os usa com um rigor que leva o pobre Emílio a lamentar ter-lhos dado. Mas o que quer que

Mas, será que já podemos falar disso como amor? Rousseau nos dá a entender que não. No momento em que se inicia esta preparação para a cidadania, que, na verdade, se trata de uma preparação para o casamento ou abertura para a possibilidade de uma família, os homens se embriagam com aquilo que lhes encantam. Mas, no amor, é preciso decantar este encanto. Por isso diz ele ser o amor verdadeiro uma outra coisa. Lembra-nos de ter mostrado no

Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens que o amor não

é um sentimento natural como pensam. De um lado, temos a paixão, que não passa de um ardor desenfreado que embriaga o homem diante daquele objeto que o encanta de tal forma que fica impossibilitado de ver o que de fato é, e, de outro lado, um doce sentimento que o habitua a afeiçoar-se a sua companheira. É, pois, pela paixão que o homem respira exclusões e preferências, tornando-se possível o ciúme. Assim sendo entendida a paixão, Rousseau nos diz do quanto ela se distingue do amor, bem como da semelhança com que se aproxima do que seja a vaidade.

Cette passion qui ne respire qu’exclusions et préférences ne différe em ceci de la vanité qu’en ce que la vanité exigeant tout et n’accordant rien est toujours inique, au lieu que l’amour donnant autant qu’il exige est par lui-même un sentiment rempli d’équité. D’ailleurs plus il est ´xigeantplus il est crédule: la même illusion qui le cause le rend facile à persuader. Si l’amour est inquiet l’estime est confiante, et jamais l’amour sans l’estime n’exista dans un cœur honnête, parce que nul n’aime dans ce qu’il aime que les qualités dont il fait cas.

Tout ceci bien eclairci l’on peut dire à coup sur de quelle sorte de jalousie Emile sera capable; car puisqu’à peine cette pasión a-t-elle un germe dans le c oà peine cette pasión a-t-elle un germe dans le cœur humain, sa forme est déterminée uniquement par l’éducation.50

Assim, se no estado de natureza são homens e mulheres impulsionados ao sexo oposto pelo instinto natural à espécie, no estado social é pelo instinto, bem como pela educação que eles tanto quanto elas são eleitos namorados ou namoradas para que se possam unir pelo amor que está além da paixão. Nisto entra a educação sem a qual não seria possível o amor e o ciúme, bem como a vaidade, por mais que cada uma dessas coisas difiram entre si. E nos fica clara a afirmação do amor como contrato, quando somos levados a compreender a

ela ordene, não o discute; e muitas vezes ao partir, para obedecer, olha-me com olhos cheios de alegria que me dizem: “Bem vedes que ela tomou posse de mim”. Entretanto, a orgulhosa observa disfarçadamente e sorri em segredo do orgulho de seu escravo”. (Id. Ibid., p. 510)]

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Id. Ibid., V, IV, p. 798. [“Essa paixão que só respira exclusões e preferências só difere nisso da vaidade pelo fato de que a vaidade, exigindo tudo e não concedendo nada, é sempre iníqua; ao passo que o amor, dando tanto quanto exige, é em si mesmo um sentimento cheio de eqüidade. De resto, quanto mais é exigente mais crédulo e: a mesma ilusão que o causa torna-o fácil de persuadir. Se o amor é inquieto, a estima é confiante; e nunca o amor sem estima existiu num coração honesto, porque ninguém ama no que ama senão as qualidades que aprecia. Esclarecido tudo isto, pode-se dizer, sem dúvida, de que espécie de ciúme Emílio será capaz, porquanto se essa paixão tem um germe no coração humano, sua forma se determina unicamente pela educação”. (Id. Ibid., p. 518-519)]

correspondência entre doação e exigência estabelecidas pelos pares amorosos. Vemos nisto um aprendizado para a necessidade de cumprimento de deveres como conseqüência do reconhecimento dos direitos. Isto é básico para qualquer relação social entre as pessoas. De uma certa forma, é possível pensar na necessidade de uma relação amorosa entre todos os que estabelecem um convívio social entre si, independente de ser ou não este convívio configurado como uma relação conjugal. Todavia, sendo o amor um estágio maior de todo envolvimento humano, quando de uma pura atração entre as pessoas, condicionadas pela necessidade de preservação de si mesmo e de sua espécie, passa-se à amizade que permite o diálogo inevitável entre as partes para que se estabeleçam regras de convivência como garantia de harmonia do relacionamento e bem-estar de todos.

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