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Sociedade Bem Ordenada e Opressão Sistemática

2. Ações Afirmativas e Teoria Ideal

2.4. Sociedade Bem Ordenada e Opressão Sistemática

Dentro das limitações evidentes que o tema impõe, pretende-se aqui vislumbrar a aparência de uma sociedade bem ordenada. Mais especificamente, procura-se compreender se ainda haveria estigmas sociais opressores em tais circunstâncias: por exemplo, para além da tonalidade da pele, quais as possíveis implicações de ser negro em uma sociedade bem ordenada.

Ao discutir ações afirmativas, Taylor argumenta que, em uma sociedade bem ordenada, há uma superação da leitura preconceituosa que as sociedades atuais

atribuem aos negros. Sendo assim, a possível superação da opressão sistemática é o argumento do autor para banir quaisquer tipos de cotas (AA 4-5) da teoria ideal:

Sob condições ideais, no entanto, tais legados [v.g. do racismo] foram superados, e nenhuma desvantagem nos domínios de raça e gênero precisa ser corrigida pela EO [igualdade de oportunidades] substancial; a discriminação pode ainda ocorrer, como observei acima, embora será não sistemática, mas sim idiossincrática, como a discriminação contra os ruivos ou contra aqueles que possuem olhos cinzentos, podendo ser remediada apenas pela simples aplicação de leis antidiscriminatórias. (TAYLOR, 2009, p. 482)99

Desse modo, o trecho acima é bastante claro ao afirmar que a boa ordenação dissolve estigmas sociais contra, por exemplo, negros. Assim, uma sociedade bem ordenada teria extirpado não apenas a opressão, mas também seus legados. Por sua vez, há motivos para crer que Taylor tenha mudado de opinião. Três anos após a publicação de “Rawlsian Affirmative Action” (TAYLOR, 2009), o autor publicou um artigo endereçado ao discurso de ódio (TAYLOR, 2012). Em linhas gerais, sua proposta ali é de que liberais que defendem a prioridade das liberdades básicas enfrentam um dilema ao defenderem a restrição da liberdade de expressão no caso de discurso de ódio. Esse dilema se caracteriza, portanto, quando se defende ao mesmo tampo que a liberdade de expressão seja uma liberdade básica, mas se admite seu “trade-off” com a igualdade equitativa de oportunidades no caso do discurso de ódio (TAYLOR, 2012, p. 353).

Não se pretende aqui demonstrar se Taylor tem razão ao apresentar o dilema – acredita-se que não, dada sua leitura absolutista da prioridade das liberdades básicas, conforme se demonstrou anteriormente. O que importa neste momento é que, em certo ponto do texto sobre discurso de ódio, Taylor enfrenta a objeção de que não haveria opressão estrutural em uma sociedade bem ordenada e que, portanto, não seria necessário se falar em discurso de ódio em tais condições ideais. Contra essa objeção, ele afirma a inevitabilidade de certo nível opressão, tomando como exemplo a não superação completa do sexismo nos países nórdicos.

99 Tradução livre de: “Under ideal conditions, however, such legacies [v.g. racism] have been overcome, and no disadvantages in the domains of race and gender remain to be corrected by substantive EO [equality of opportunity]; discrimination might still occur, as I noted above, but it will be unsystematic and idiosyncratic, like discrimination against the red-haired or gray-eyed, and can be remedied by the enforcement of antidiscrimination laws alone.”

O ponto do autor é de que, mesmo em sociedades que são modelos igualitários no mundo contemporâneo e que têm investido em políticas para emancipação feminina há algumas décadas, não se verifica que houve ou mesmo que há a perspectiva de superação completa da opressão sexual e a realização da verdadeira igualdade entre os sexos:

(…) a história dos países nórdicos em relação à igualdade entre os sexos não é encorajadora: mesmo depois de muitas décadas de intervenção estatal extensiva em nome das mulheres (por exemplo, provisão pública de cuidados a crianças e idosos, cotas para mulheres em órgãos políticos, iniciativas educacionais, etc.) ainda existe um legado considerável de sexismo, como indiquei acima, e esse legado provavelmente permanecerá intacto no futuro próximo. (TAYLOR, 2012, p. 361)100

Ora, se esta é a posição mais consolidada no atual pensamento de Robert S. Taylor, fica evidente que ele mudou de opinião, pois, quando o assunto foi discurso de ódio, ele afirmou que continuaria havendo algum tipo de opressão na sociedade bem ordenada; já no caso de ações afirmativas, ele disse o contrário (TAYLOR, 2009, p. 482). Se o próprio autor mudou de opinião sobre o tema, pode-se perceber não apenas a complexidade do assunto, mas, especialmente, que seu argumento contra as ações afirmativas perde força.

Aliás, trazer outros autores para a discussão, mostra como a questão é difícil e controversa. Jeremy Waldron, por exemplo, ao discutir também o discurso de ódio, propõe-se exatamente a pergunta “What Does a Well-Ordered Society Look Like?” (WALDRON, 2009, p. 1). Ele reconhece, evidentemente, que uma sociedade bem ordenada não é uma “república de anjos.” Nesse sentido, esclarece a importância do direito não apenas para se atingir esse nível de organização social, o que é trabalho da teoria não ideal, mas também como mecanismo de estabilização da cooperação social quando se atinge a obediência estrita em teoria ideal (WALDRON, 2009, p. 9). Ainda assim, o autor ressalta que uma sociedade bem ordenada não é racista:

Uma sociedade bem ordenada definitivamente não parecerá racista (…) isso não será porque existem leis contra esse tipo de coisa. Será porque os

100 Tradução livre de: “(…) the history of the Nordic countries with respect to gender equality is not encouraging: even after many decades of extensive state intervention there on behalf of women (e.g., public provision of child and elder care, quotas for female membership in political bodies, educational initiatives, etc.) there is still a considerable legacy of sexism, as I pointed out above, and that legacy will likely remain intact for the foreseeable future.”

cidadãos – sendo cidadãos de uma sociedade bem ordenada – não têm desejo ou motivação para se expressar nesses termos. (WALDRON, 2009, p. 8)101

Neste ponto, Waldron faz menção a uma mudança atitudinal dos cidadãos em tal sociedade. Interessante que, em relação às atitudes individuais em uma sociedade bem ordenada, o professor D. C. Matthew sustenta visão diametralmente oposta. Nesse sentido, contra o argumento de Taylor segundo o qual AA 3-5 seriam supérfluas em uma sociedade bem ordenada devido à inexistência de racismo, Matthew entende que, do ponto de vista da postura das instituições que compõe a estrutura básica, AA 3-5 de fato seriam desnecessárias.

Por outro lado, o autor acredita que, ainda assim, há espaço para essas ações afirmativas, porque em uma sociedade bem ordenada ainda haveria discriminação privada “(...) não por organizações privadas (como empresas), mas por indivíduos nas escolhas que fazem sobre onde morar, com quem fazer amizade e como tratam as pessoas informalmente” (MATTHEW, 2015, p. 328).102

A análise dos comportamentos individuais em uma sociedade bem ordenada é parte importante de uma das críticas mais influentes feitas a Rawls, notadamente a crítica de Gerald Allan Cohen (COHEN, 2008, pp. 69-74). Trata-se de argumento sensivelmente sofisticado cuja essência, basicamente, é afirmar que aplicar o princípio da diferença apenas à estrutura básica torna justos os comportamentos dos indivíduos no mercado, os quais, analisados em conjunto, geram desigualdades moralmente inaceitáveis. Com efeito, para Cohen, o princípio da diferença alega ser justo um mero ótimo de Pareto.

Assim, o autor acredita que a justiça só é acessível com um ethos igualitário: “(…) o conjunto de sentimentos e atitudes em virtude do qual as práticas normais e pressões informais dos cidadãos são o que são” (COHEN, 2008, p. 144).103 Em

linhas gerais, esse ethos exige que atitudes individuais também sejam guiadas pelo princípio da diferença.

101 Tradução livre de: “A well-ordered society will definitely not look racist (…) this will not be because there are laws against that sort of thing. It will be because the citizens — being citizens of a well- ordered society — have no wish or motivation to express themselves in these terms.”

102 Tradução livre de: “(...) not by private organizations (like businesses), but by individuals in the choices they make about where to live, whom to befriend and how they treat people informally.” 103 Tradução livre de: “(…) the set of sentiments and attitudes in virtue of which its normal practices and informal pressures are what they are.”

Tamanho o impacto dessa crítica, pode-se dizer que ela dividiu a literatura entre aqueles que afirmam as vantagens e a suficiência da restrição da estrutura básica – não aplicando, portanto, o princípio da diferença diretamente a comportamentos individuais (v.g. POGGE, 2000, pp. 137-169) – e aqueles que veem a importância de explicitar as demandas da equidade a comportamentos individuais (v.g. MURPHY, 1998, pp. 251-291).104

Não há fôlego nem pertinência para se adentrar a esse debate agora. Basta dizer que D. C. Matthew parece fazer uma leitura estrita dos princípios de justiça de Rawls, como se o foco na estrutura básica viesse sem deveres individuais de justiça (SCHEFFLER, 2006, p. 103) ou sem um correlato ethos rawlsiano pleno (TITELBAUM, 2008, p. 302). Independentemente se Matthew está certo quanto a isso, o ponto é ressaltar seu desacordo com Waldron na forma de compreender atitudes individuais em uma sociedade bem ordenada e as implicações que isso tem para a existência ou não de racismo em tal sociedade.

Aqui também vale trazer para a discussão Moisés Paniagua, que, ao estudar a importância de um princípio de retificação a injustiças históricas na teoria ideal de Rawls, descredita visões como a de Taylor, para quem uma tal sociedade está imunizada contra qualquer tipo de injustiça racial. Ao contrário, Paniagua afirma que é sim papel da teoria ideal prevenir que injustiças surjam em uma sociedade bem ordenada (PANIAGUA, 2012, p. 65).

Desse modo, não é que o autor sustente que a teoria ideal tenha como objeto uma sociedade permanentemente imaculada de injustiças sistemáticas, mas sim que, dentre outras funções, a teoria ideal procura evitar a deterioração de uma sociedade bem ordenada (PANIAGUA, 2012, p. 77). Esse, aliás, é argumento que D. C. Matthew utiliza para defender a possibilidade de AA 4-5 em condições ideais, isto é, as cotas em uma sociedade bem ordenada teriam a função de manter a boa ordenação social (MATTHEW, 2015, pp. 329-30).

Diante de toda essa gama de posições diversas, é preciso reconhecer a dificuldade de se argumentar sobre como será (ou seria) uma sociedade bem ordenada. Parece que Paniagua tem razão ao dizer que sociedades bem ordenadas

104 Pela introdução a esse debate, agradece-se ao professor Leandro Zanitelli pela disciplina “Temas de Teoria da Justiça - A crítica de G. A. Cohen a Rawls,” ministrada no segundo semestre de 2017, junto ao programa de pós-graduação em direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

não surgem do nada (PANIAGUA, 2012, p. 72). Sendo assim, pode-se observar que, se qualquer uma das sociedades ocidentais contemporâneas se bem ordenar, estar- se-á diante de uma sociedade bem ordenada com um passado repleto de injustiças históricas. Todavia, fica a questão de como, ou mesmo, se essas injustiças reverberam na sociedade bem ordenada – e, como dito, trata-se de exercício teórico bastante desafiador.

Soma-se a isso, a ideia de que, como argumenta Goff, ações afirmativas não são dispositivos meramente teóricos, mas sim mecanismos sensíveis a dados empíricos para demonstrar sua justificação (GOFF, 1976, p. 53). Por exemplo, nesta Universidade Federal de Minas Gerais, ainda que tais políticas tenham seus problemas, elas se mostram mecanismos bastante efetivos e interessantes.105 O

problema é levantar esses dados em uma sociedade bem ordenada.

Em suma, portanto, pode-se afirmar que, enfrentados os argumentos de Taylor, eles não se mantêm. Essa não parece ser uma conclusão trivial, diante da relevância e da influência o trabalho de Taylor ele teve no debate contemporâneo sobre justiça. Essa conclusão permite, ainda, que se sustente a posição, acompanhando Goff, de que, em teoria ideal, não há incompatibilidade essencial entre AA 3-5 e os princípios de justiça de John Rawls (GOFF, 1976, p. 44-5).

Desse modo, conclui-se que o aparato teórico proposto por Rawls tem recursos para justificar ações afirmativas em teoria ideal. Em outras palavras, é evidente que AA 1 têm seu lugar, pois apenas garantem a mais básica não discriminação. Por sua vez, mesmo a necessidade de AA 2 fica difícil de estipular, pois há um desacordo teórico profundo a respeito da existência de estigmas sociais na sociedade bem ordenada. Do mesmo modo, também não se conclui pela necessidade das demais AA 3-5 nesse tipo de sociedade.

Em contrapartida, o que se pode sustentar argumentativamente é que a teoria ideal de Rawls não impossibilita a existência de qualquer uma das categorias de

105 Pelo menos do ponto de vista do desempenho dos alunos cotistas da graduação, a política tem mostrado bons resultados segundo a profa. dra. Carolina Silva Pena, coordenadora do setor de estatística da pró-reitoria de graduação da Universidade Federal de Minas Gerais. Ao apresentar o relatório do desempenho dos cotistas na universidade em 2015, ela esclarece que “(…) o desempenho acadêmico desses alunos é bastante similar e, em vários momentos ao longo desse período, superior ao de candidatos que ingressaram na Universidade nas modalidades de ampla concorrência.” (UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2015, on-line).

ações afirmativas em uma sociedade bem ordenada, pelas razões expostas ao longo do capítulo. Essa permissão, aliás, ainda se torna mais palatável ao se pensar em cotas sociais, uma vez que, bem compreendida a prioridade dos princípios, pode-se afirmar o compromisso de Rawls com a igualdade na competição por cargos e posições sociais e com a priorização de renda e riqueza dos que recebem a menor parcela distributiva. Sendo assim, sustenta-se não haver um entrave teórico para AA 4-5 que se baseiam em critérios socioeconômicos.

A questão fica, de fato, mais difícil para cotas que adotem outro critério, como raça, embora haja vozes citadas neste trabalho (v.g. PANIAGUA, 2012, passim) para as quais uma sociedade bem ordenada tem que lidar com injustiças raciais e que a justiça como equidade, ainda que com leves reformas internas, tenha os mecanismos para combatê-las. O que não se pode afirmar, todavia, é que em uma sociedade bem ordenada, via de regra, haverá a necessidade de ações afirmativas mais robustas (AA 2-5). Feitas essas observações, passa-se para o próximo capítulo, que se encarrega da teoria não ideal.