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1.2 Principais ideias contemporâneas

1.2.1 Sociedade Civil Liberal

Sociedade civil e sociedade civil global são temas centrais na obra de Mary Kaldor. Contudo, seu texto que apresenta especificamente a tipologia das ideias contemporâneas de sociedade civil é o artigo “The idea of global civil society”, publicado na

International Affairs (2003b), mencionado várias vezes acima21. Nele Kaldor descreve a ideia

que denomina de sociedade civil global neoliberal22.

Nessa perspectiva, a sociedade civil global seria constituída por Organizações Não-Governamentais (ONGs) que atuam juntamente aos governos nacionais e às instituições globais. Tais ONGs podem ser consideradas como semi-governamentais pelo apoio financeiro que muitas recebem dos estados (direta ou indiretamente). Neste sentido, para a autora, as ONGs seriam prolongamentos institucionalizados de movimentos sociais de outrora, mas que se tornaram “amansados” ao serem incorporados no âmbito de ações governamentais e/ou de organizações internacionais. Essa sociedade civil seria capaz de proporcionar uma “oposição respeitável” e por isso seria tão importante na perspectiva da “new policy agenda” – a combinação de estratégia econômica neoliberal com uma ênfase em democracia parlamentar, que ganhou proeminência no final da guerra fria. Segundo a própria Kaldor (2003a, p. 88),

A „New Policy Agenda’ combinou estratégia econômica neoliberal com uma ênfase em democracia parlamentar. Já nos 1980s, o Banco Mundial havia estabelecido uma ONG - World Bank Committee. Mercado mais eleições tornou-se a fórmula ideológica nos 1990s. ONGs chegaram a ser vistas como um importante mecanismo para implementar essa agenda. Elas podem fornecer uma rede de segurança social sem estender o papel dos governos. Elas podem fornecer treinamento em democracia e cidadania. Elas podem policiar abusos do estado e más práticas dos governos. E elas podem pressionar corporações na direção de uma agenda de responsabilidade social (tradução e grifos nossos) 23.

Os argumentos de Kaldor a respeito da sociedade civil global de versão neoliberal podem ser sumarizados no quadro a seguir24.

21 Cf. seções 1.1, 1.1.1 e 1.2.

22 No original: neoliberal global civil society.

23No original: “The 'New Policy Agenda' combined neoliberal economic strategy with an emphasis on

parliamentary democracy. Already in the 1980s, the World Bank had established an NGO - World Bank Committee. Markets plus elections became the ideological formula on the 1990s. NGOs came to be seen as an important mechanism for implementing this agenda. They can provide a social safety net without extending the role of government. They can provide training in democracy and citizenship. They can check abuses of the state and poor government practices. And they can push corporations towards an agenda of social responsibility”.

Sociedade Civil Global Neoliberal

Atores veiculadores (1) ONGs. Veiculadores, mas fora da esfera da sociedade civil: (2) instituições globais e (3) governos ocidentais

Características do atores (1) Semi-governamentais pela fonte de financiamento e (2) parecidos com agentes de mercado por competirem entre si

Linguagem “oposição respeitável” Marcos importantes “new policy agenda”

Impactos Amansamento de movimentos sociais no escopo de estruturas globais Quadro 3 – Sociedade civil global na “versão neoliberal”, segundo atores veiculadores, linguagem, marcos importantes e impactos25.

Por sua vez, Marco Aurélio Nogueira desenvolve a descrição das ideias contemporâneas de sociedade civil ao longo de mais de um texto. Inicialmente, apresenta uma primeira versão em “As três ideias de sociedade civil, Estado e a politização” (2003a), publicado na coletânea “Ler Gramsci, entender a realidade”; contudo, sua versão mais elaborada aparece no artigo da Revista Brasileira de Ciências Sociais intitulado “Sociedade civil, entre o político-estatal e o universo gerencial” (2003b).

Observando o mesmo núcleo de ideias analisados por Kaldor, Nogueira nos apresenta uma descrição mais detalha para a versão contemporânea do conceito, o qual denomina sociedade civil liberal (2003a) 26. Para ele, sociedade civil liberal se refere ao uso do conceito de sociedade civil que se reveste de uma linguagem gerencial. Sociedade civil assume tal acepção quando o termo é usado por ONGs prestadoras de serviço (que muitas vezes utilizam trabalho voluntário) inseridas num universo que seguiria idealmente alguns padrões, como estímulo à competição entre atores, interesses particularizados e re- fragmentados e ações voltadas a um processo de desconstrução e desresponsabilização do Estado.

Nogueira (2003a, 2003b) não mantém o foco de sua exposição somente nas proposições normativas contidas nas ideias de sociedade civil, mas busca identificar os elementos analíticos que tais versões contemporâneas tentam sustentar – aqueles que as diferenciariam das outras versões modernas que as antecedem. Em outras palavras, o autor procura captar o tipo de interpretação de sociedade subjacente a cada ideia contemporânea de sociedade civil – aquilo que cada ideia nos diz a respeito da dinâmica social entre as esferas e

25 Fonte: adaptado de Kaldor (2003b, p.589).

qual tipo de “sistema” social se configura desta forma. Outra característica importante da descrição de Nogueira é o esforço em mensurar criticamente as consequências do emprego dessas ideias para o universo da política, i. e., que tipo de conduta político-estratégica tais ideias sugerem e quais são seus impactos políticos mais amplos.

Para Nogueira, a ideia de sociedade civil liberal sugere uma dinâmica sócio- sistêmica na qual o mercado é a esfera predominante – aquela que transmite sua lógica virtuosa às demais esferas. Seus atores típicos (ONGs) operam em prol do “sistema”, pois não esboçam tentativas de conquista do Estado. Mesmo que as ações desses atores assumam características por vezes anti-estatais; e estas ações podem ser bem-vindas no escopo da ideia de sociedade civil liberal, já que o Estado idealmente desejado é um Estado mínimo, aquele que deveria assegurar o funcionamento das leis e a segurança dos indivíduos. As ONGs até poderiam constituir um núcleo de oposição aos governos, mas nunca de maneira a contestá- los frontalmente – na verdade, atuam geralmente mais como “parceiras” dos governos, com propósito de cooperar, gerenciar crises e implementar políticas públicas.

Em termos da dinâmica político-estratégica que esta ideia corrobora, Nogueira avalia seus efeitos como deletérios. Aos atores, a sociedade civil liberal sugere modos de organização restritos, egoísticos e desinstitucionalizados, nega estratégias de poder (lutas por hegemonia) e coloca a maximização de interesses particulares em seu lugar, reitera a ruptura do vínculo orgânico entre sociedade e Estado e atenua o fervor ético que poderia existir na sociedade civil. A seguir (quadro 4) sintetizo a exposição de Nogueira para a ideia de Sociedade Civil Liberal.

Sociedade Civil Liberal Caracterização

Atores Típicos Organizações não-governamentais (ONGs)

Linguagem Planejamento; gestão; neutralidade; desinteresse (ou interesse público); Configuração típico-

ideal

Produz incentivos competitivos: re-fragmentação, interesses corporativos e despolitização; valoriza interesses particulares; atende demandas sociais; fiscaliza governos; desconstrói e desresponsabiliza o Estado; desregula relações pré-estabelecidas entre atores sociais.

Dinâmica sócio-sistêmica Relacionamento com o Estado

Não há tentativa de conquista do Estado; ações anti-Estatais ou não-Estatais Estado idealmente

desejado

Estado mínimo (guarda da lei e segurança); ênfase nos aspectos liberais e representativos sob prejuízo dos democráticos e participativos

Relacionamento com governos

Hostilidade é possível; não pode estruturar governos alternativos ou movimentos de recomposição social; Pode haver oposição, mas não contestação; participação convertida em cooperação, gerenciamento de crises e implementação de políticas públicas

Relacionamento com o Sistema

Dinâmica geral pró-sistêmica (“não anti-sistêmica”) Esfera socialmente

proeminente

Mercado (característica positiva) Dinâmica político-estratégica

Organização dos

atores Restrita; Egoística; Desinstitucionalizada (ex.: voluntariado e assistencialismo tradicional) Estratégia de poder

(luta por hegemonia)

Não há; existe, entretanto, maximização de interesses particulares Efeitos políticos Reiteração da ruptura do vínculo orgânico entre sociedade e Estado;

Atenuação do fervor ético

Afinidades teóricas “Terceiro Setor” como instância capacitada para substituir o Estado em muitas funções

Quadro 4 – Sociedade civil liberal segundo elementos de caracterização, dinâmica sócio-sistêmica e dinâmica político-estratégica27.