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A SOCIEDADE DISCIPLINAR DE FOUCAULT

No documento O Sistema SAEB e as relações de poder (páginas 64-68)

Considerando que neste trabalho se discute sobre os possíveis efeitos do SAEB para a educação brasileira e que ele é um mecanismo de disciplinarização, abordam-se, aqui, aspectos da obra Vigiar e Punir (2008). Optou pelo estudo da terceira parte desse livro, no qual Faucault discute sobre assuntos importantes para esta pesquisa. O autor mostra que existem duas maneiras de disciplinar os indivíduos: os quarteis e os colégios (escola); outro aspecto que ele considera importante são os recursos do bom adestramento, entre eles a disciplina. Entretanto tais recursos carecem de uma sanção normalizadora. Essa sanção normalizadora se efetiva pelo exame, classificação e promoção dos indivíduos. Por efeito disso, nos subitens que seguem procurou-se fazer uma abordagem simples desses itens à luz do estudioso em questão.

2.4.1 Escola

Segundo Foucault, a escola é idêntica à pedagogia cristã. A partir do séc. XVIII, o espaço escolar se caracteriza por uma classe homogênea, indivíduos enfileirados de frente para o mestre, dispostos numa ordem de acordo com a nota que se obtinha nas provas

(semanais). Segundo ele: ―[...] a escola torna-se uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que acompanha em todo o seu comprimento a operação do ensino‖ (FOUCAULT, 2008, p. 210). Ao mesmo tempo em que ela controla através da disciplina, recompensando apenas pelo jogo das promoções, também permite hierarquias e lugares. A escola pune rebaixando os considerados medíocres.

Essa punição a que a escola submete os sujeitos distribui os alunos segundo suas aptidões e seu comportamento. Igualmente, é ela que determina o que os sujeitos serão capazes de fazer quando saírem dela. Dessa forma, exerce sobre eles uma pressão constante, a fim de submetê-los ao mesmo modelo subordinativo. Justificam-se, desse modo, exigências relativas à atenção nos estudos e nos exercícios, à prática dos deveres. Em suma, a escola enquadra todos de forma ―igual‖ (todos os normais e bons alunos se parecem/os medíocres também). Ela é responsável pela reprodução de modelo único de pensar. Daí um ensino padronizado, regulador, cujo resultado é comparável à produção em série de uma grande indústria. A escola forma cidadãos idênticos, subjugados às necessidades da manutenção das relações de poder.

2.4.2 Disciplina

Diferente da escravidão, que consiste na apropriação dos corpos pela violência, para Foucault (2008), a disciplina não se compara a nenhuma outra forma de dominação. Ela é uma forma de dominação geral, que visa ao domínio do corpo e da mente. Esse domínio é de uma ordem muito mais abrangente porque implica o treinamento dos corpos. Como bem explica Foucault (2008, p. 164):

[...] não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‗dóceis‘.

A escola é um dos lugares em que se podem operar a prática desse sofisticado processo de mecanização dos corpos. Ela, à medida que concebe um sistema de avaliação para mensurar a qualidade do ensino no Brasil, por exemplo, enquadra os sujeitos, disciplinarizando-os e os tornando obedientes, submissos e úteis ao sistema capitalista. É nessa perspectiva, que o SAEB pode ser visto como um dos recursos disciplinares contínuos a que Foucault (2008) se referia. O SAEB corrobora a disciplinarização dos corpos, pelo fato de

que condiciona todos os que se submetem a uma maneira similar de entender e de elaborar o pensamento.

2.4.3 Exame

Para Foucault (2008), na essência de qualquer sistema disciplinar há um mecanismo penal, subjacente à manutenção das relações de poder. A disciplina seria o mecanismo de enquadramento dos sujeitos em uma esfera social. Por meio dela os sujeitos são alinhados, imobilizados e silenciados, preenchendo os espaços vazios determinados pela lei e subjugando-os ao conjunto de restrições que lhes são impostas. A escola tem como principal mecanismo de controle, seleção e classificação o exame. O SAEB, para o ensino básico, é um sistema de controle que se caracteriza pelo exame.

Para Foucault (2008), o exame cumpre uma espécie de ritual reunindo quatro itens, a saber: a cerimônia do poder que, no caso do SAEB, consiste na publicação do conjunto de documentos que a ele se referem ou mesmo lhes conferem legitimidade; a experiência refere- se à revelação dos resultados obtidos com as avaliações. Eles simulam uma aparente positividade decorrente das ações do SAEB; a demonstração de força diz respeito à sanção e à punição que um município pode sofrer por causa dos resultados das avaliações do SAEB; o estabelecimento da verdade, este último item é relativo à generalização de uma verdade: o

SAEB contribui para construção de uma educação inclusiva. Em outras palavras, o exame

é de importância capital para a manutenção das relações de poder, uma vez que, a partir dele, é possível combinar as técnicas da hierarquia e as da sanção que normalizam, determinando o que é legítimo ou não dentro de uma estrutura social.

A escola com seu sistema disciplinar enquadrante constitui o principal meio de manipulação dos saberes que delegam poder às instâncias das esferas sociais. O sistema SAEB pode ser entendido como um dos objetos de que o Estado faz uso para enquadrar os sujeitos da maneira que lhe é mais útil. Nesse sentido, tal qual Foucault (2008) argumentava sobre o exame, o SAEB inverte a economia da visibilidade no exercício do poder do Estado pela manifestação mais discreta de um controle social. Faz também a individualidade entrar no campo documentário, através do arquivo que delineia o perfil do sujeito dentro de um sistema de controle que exclui os menos hábeis. Por causa dessa ordem de sentido, Foucault (2008) resume o exame como algo que está no cerne dos processos formadores do indivíduo. Simultaneamente, ele tanto o transforma em efeito e objeto de poder como efeito e objeto de saber. Enfim, articulando a vigilância hierárquica e a sanção normalizadora, o exame

consolida a disciplina, promove a repartição e a classificação. Isso é condição básica para a

divisão da sociedade em segmentos.

2.4.4 Classificação e promoção

Para Foucault (2008), a classificação pode servir de recompensa (à classe dos bons) ou como punição (à classe dos medíocres). Dentro de um sistema de ensino, sua função principal é hierarquizar as qualidades, as competências e aptidões a fim de premiar ou castigar os indivíduos. Então, valendo-se da norma regularizadora, o Estado impõe certos limites para determinar o grau de competência e habilidades necessárias para a classificação e inclusão dos sujeitos dentro de uma categoria específica. Trata-se de uma escala vertical, na qual os que aparecem no topo são classificados positivamente e os que estão na base, classificados negativamente.

Para o SAEB, os bons são representados pelos indivíduos que se encaixam nos NSEs 4 e 5 (classificação positiva) e os medíocres seriam representados pelos indivíduos que se encaixam nos NSEs 1, 2 e 3 (classificação negativa).

Foucault (2008) compreende a classificação negativa como o reflexo ou resultado de um processo de punição, que consiste em cinco operações, quais sejam:Relacionar desempenho e comportamento, comparando-os dentro de espaço de diferenciação, levando em conta uma regra a seguir. Caracterizar os indivíduos, diferenciando-os em relação ao conjunto que se deve fazer funcionar como base mínima, como média a respeitar ou como o ótimo de que se deve chegar perto. Medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor a capacidade, o nível, a ‗natureza‘ dos indivíduos. Fazer funcionar, através dessa medida ‗valorizadora‘, a coação de uma conformidade a realizar. Traçar um limite que definirá as diferenças entre as fronteiras externas do anormal. Anormal seria a ―classe vergonhosa‖ da Escola Militar. Desse resultado depende a promoção.

Destarte, a promoção social do estudante brasileiro poderá ocorrer a partir do nível de desempenho destes na classificação da escala do MEC. Entretanto, é interessante observar que esse ritual da classificação, ao tempo que nivela os sujeitos como iguais dentro de certa ordem discursiva (aptos a exercerem determinada função), também os individualiza, especificando suas particularidades, ou seja, as competências que o indivíduo tem.

Diante do exposto até agora, no próximo tópico, tomando como objeto de discursão a escala do MEC, traçou-se um paralelo entre o SAEB, os PCNs e à perspectiva de Foucault.

No documento O Sistema SAEB e as relações de poder (páginas 64-68)