• Nenhum resultado encontrado

As relações entre a classe média e as formas de conservação de seus privilégios é um recorte fundamental para o seu pleno entendimento. As duas pontas das classes sociais, os abastados e os desprovidos têm em sua formação um aspecto de liberdade de ação, mesmo que diferentes, sendo o primeiro bem mais livre e o segundo caso voltado para uma autenticidade de escolhas e comportamentos próprios aos outsiders, como nos diz o sociólogo Jessé Souza (2003). As classes médias não têm esse privilégio, uma vez que vivem através do balanço e do contrabalanço de uma illusio baseada em uma equação de necessidade tanto econômica, como simbólica, a primeira sendo necessária por bens materiais óbvios e a segunda a partir de uma imagem de privilégio, de status. Essa relação se torna complicada uma vez que a capitalização simbólica é dada através do desinteresse econômico mais prático.

A partir desse ponto é necessária a organização de uma conservação como característica central dessa classe como forma de estabilidade social e simbólica. Esse é o caso da nossa entrevistada Patrícia, uma jovem de 28 anos que tenta os concursos públicos como forma de alcance de um duplo objetivo: a sua estabilidade financeira e a sua busca por uma autonomia e autossatisfação.

Patrícia: Na verdade quando eu decidi fazer concurso... eu sou muito de... sei lá, protestar as coisas, e eu disse que por causa disso eu ia ser policial federal, e aí não podia ser delegada por não ter o curso de direito, aí dentro do cursinho no primeiro contato com as matérias de direito, tive contato com esse cargo que eu não conhecia, pensava que auditor fiscal era da Receita Federal, que mexia com contas e é uma coisa que eu não curto de jeito nenhum, mesmo passando em concurso de banco não assumiria por que não é uma coisa... acho que você tem que escolher um cargo pra vida toda, né? Tem que encontrar coisas dentro que façam você gostar. (...) É uma forma de estar fazendo alguma coisa, estar ganhando um valor que eu acho justo, que eu me planejei, que eu gostaria, algo que seria muito difícil de alcançar se eu continuasse em publicidade. (...) Eu acho que é muito frustrante você entrar em um concurso que pague muito bem e chegar lá e você não esteja gostando, entendeu? Não

ser tão imediatista e dizer: eu vou pelo dinheiro, eu vou pela estabilidade. Não! Você tem que saber que é pro resto de sua vida.

Para darmos entrada em sua história é necessário pensarmos a sua experiência em oposição ao caso anteriormente mencionado no capítulo, uma vez que a sua escolha se dá a partir de um mecanismo inverso: uma hysteresis negativa. Ao contrário de Gabriel, o seu caso é organizado a partir de um choque com o mundo através de uma queda de expectativas, um deslocamento clássico do habitus e dos objetivos e expectativas que esperava poder conseguir em um momento da sua vida. É importante mencionar neste momento que o fator negativo deste conceito não está ligado a um juízo de valor, mas a uma queda das expectativas, relembrando que a reflexividade que advém da hysteresis tem uma capacidade reformadora dentro do indivíduo.

A nossa entrevistada percebe ao chegar no limiar da sua vida escolar a sua falta de preparo para o destino que tinha traçado até então, o sonho de cursar Medicina. Vemos assim que ocorre nela uma percepção da não adaptação do seu habitus às demandas de suas expectativas centrais no domínio profissional. Vejam a diferença: enquanto que no primeiro caso há a abertura a criação de expectativas e objetivos além do imaginado, nesse caso há um sentido inverso.

Patrícia: Eu me formei em publicidade. Foi muito doido porque eu pensava que queria medicina, na verdade eu comecei... se eu quisesse medicina eu deveria ter me preparado muito antes, né? E ai publicidade começou a vir na minha na minha cabeça muito isso, eu fiz um testinho vocacional com a psicóloga e deu exatamente isso: na área de saúde medicina e humanas publicidade. Acabou que eu optei por publicidade, que eu apesar de ter largado a área achei muito legal, ainda. Não me arrependo. Eu fiz o curso muito bem, nunca reprovei cadeira nenhuma, fui uma excelente aluna, daquelas bem chatas que ficavam na frente anotando tudo, sabia de tudo que estava acontecendo, eu fui muito presente na faculdade.

É importante perceber que o seu processo de reflexividade não se completa neste momento de sua vida, uma vez que ainda é muito jovem e que ainda guia seus atos através de vínculos de expectativas voltadas a uma lógica de mercado, que se demonstram em dissonância com a sua perspectiva atual. Há neste momento um processo de reflexividade quanto aos meios, uma percepção que o esforço contínuo pode trazer. Sua percepção reflexiva sobre a finalidade desse esforço é dado após na fase intermediária do curso: a sua escolha para o mercado público de trabalho, como uma maneira de construção da sua estabilidade. A partir deste ponto, ela

poupa uma certa quantia de dinheiro e resolve investir seu tempo para o estudos para aquisição do cargo de Auditora Fiscal do Trabalho, um concurso federal que é bastante competitivo, abdicando assim do lazer em diversos momentos e se dedicando exclusivamente à sua preparação. Esse momento é interessante para percebermos a questão do capital cultural como um acúmulo de tempo, que é uma perspectiva central da disponibilidade de uma classe média, o tempo para estudar é necessário e não é de graça. Outra forma interessante para pensar a questão do capital cultural e de sua relação com o tempo é a perspectiva da renúncia, da privação, ou como Bourdieu se refere, uma “forma socialmente constitutiva de libido, da libido sciendi” (BOURDIEU, 1986, p. 18), a vontade pelo conhecimento.

Patrícia: Como você vai planejar sua vida sem ganhar? Zero! Tipo, muito complicado, né? Eu ainda tenho sorte porque meus pais são aposentados, não houve nenhuma opinião contrária, tipo: meu, você vai trabalhar e você vai ficar estudando e trabalhando. Não. Eu dei meu jeito, guardei um dinheirinho, o primeiro cursinho e paguei, o segundo eu falei com a minha avó. E agora eu tô estudando, pro meu pai não está tanto custo assim, é mais de prova, que é alto. Mas por exemplo esse ano e o ano passado eu não fiz nenhuma prova, não gastei inscrição. Não é fácil você financeiramente ficar bancando esses anos de estudo, de cursinho.

Filha de funcionários públicos, ela não reconhece esta consonância dentro das suas expectativas, ela nos diz que nunca foi uma escolha externa a sua vontade, nunca houve uma coação, tendo ela a liberdade de escolha de uma carreira profissional própria.

Patrícia: Não acho que influenciou não, na verdade painho deixou a gente com muita liberdade para escolher o curso, escolher onde quer trabalhar, se quer empresa privada... Meu pai nunca disse: porque você não faz concurso público? Nunca teve essa... nunca induziu dessa forma não. Mas ai ele é concursado, né? (Risos) Eu sempre soube os benefícios do servidor, sempre soube por meu pai: sempre tem um mês de férias, e tem as paralisações, tem feriado e tal, tem os direitos todos certinhos, décimo terceiro e tal e tal e tal. E acho que foi naturalmente. Eu escolhi e já tava no meio da faculdade quando eu mentalmente já sabia que eu ia trabalhar um tempo com publicidade, ia juntar uma grana, viajar e depois dedicar 100% do meu tempo para concurso, assim, até passar.

Ao falar da competição em si, a nossa entrevistada coloca o debate descrito pela antropóloga Lívia Barbosa sobre a questão do mérito baseado no “eu e as minhas circunstâncias”, relacionado diretamente a uma perspectiva brasileira. A entrevistada se coloca contra as cotas raciais em concursos de nível superior, uma vez que o título universitário

serviria, de acordo com a sua visão, como uma equiparação entre os indivíduos, uma organização igualitária. Ao mesmo tempo, ela se coloca contra uma meritocracia de mérito discriminatório, baseado em uma análise anterior do currículo do aplicante, defendendo assim uma meritocracia de limites mínimos, baseado em provas específicas.

Patrícia: Não tem muito isso de: ah, ele é inferior porque teve uma base tão boa. Você se forma na faculdade... É isso que eu te falei, por isso que acho injusto a cota racial para concurso público em nível superior, saiu na faculdade você nivelou ali, a partir dali você arrumar um emprego, estudar para concurso é seu esforço sim, 100%. O que eu concordo é... quer ajudar alguém que saiu de uma faculdade e não tem... sei lá, veio já de cotas e tudo, propõe um cursinho a ele, dá uma bolsa de cursinho, agora, tipo, pegar a vaga e dizer: não, 30% vai para negro, até porque quantas amigas minhas são negras e têm uma situação muito melhor que a minha? Assim, muito melhor que a minha. Então, não é nem por classe social é por cor da pele, acho uma coisa assim... fiquei muito revoltada com isso, não porque me atinge... atinge no fato que tô fazendo e querendo ou não diminui minhas chances, mas é porque não faz sentido, não tem coerência pra mim. (...) (sobre possibilidade de pedir experiência prévia) Acho que não ajude, pode ser que ajude quando entrar lá e através da experiência dele consiga uma notoriedade, consiga realizar a tarefa com mais perfeição. Acho um pouco inviável pedir experiência, juiz tem que ter experiência, mas um cargo em qualquer área? Acho que ajudaria na hora de trabalhar, mas muito inviável cobrar isso na hora do edital. Quem garante que aquele cara que já trabalhou vai ser melhor do que eu executando, entendeu?

Vemos, assim, uma organização do seu discurso para um afastamento de organizações econômicas, baseando o seu pensamento em uma ótica claramente estruturada em um desempenho relacional simples. Há uma exclusão tanto de políticas de inclusão, como do enfoque em experiências passadas, organizando assim toda a estrutura de contratação do estado no tal desempenho relacional simples. Esse esquecimento do cerne das relações econômicas na sociedade é essencial para uma reprodução de uma ideia que as organizações de poder são baseadas em um desinteresse. Como nos diz o sociólogo Jessé Souza:

A ideologia mais bem-sucedida é precisamente aquela que não precisa de palavras e que se mantém a partir do silêncio cúmplice e sistemas auto- regulados que produzem, sob máscaras de igualdade formal e da ideologia do talento meritocrático, a “sociodicéia dos próprios privilégios” das classes dominantes. (SOUZA, 2003, p.50)

A forte relação com essa sociediceia do mérito é entendida como uma maneira de busca por uma conservação dos seus privilégios de classe. Nada mais justo, dentro desta linha de

pensamento, do que cobrar unicamente de provas objetivas a ascensão ao cargo público, uma vez que as classes médias e dominantes são as maiores detentoras de tempo livre como forma de investimento e capitalização cultural. A raiz econômica da distinção social se torna invisível, sendo pensadas por critérios baseados somente em desempenho (SOUZA, 2003). O merecimento baseado em critérios duramente objetivos acaba por deslocar uma série de conhecimentos e experiência de uma parcela da sociedade que poderiam ser ressignificados em um ambiente de trabalho público. O habitus é uma “virtude feita necessidade”, porém, dentro de nossa sociedade, existem virtudes e virtudes. A virtude dos dominados é sempre rodeada de um caráter de ambiguidade (SOUZA, 2003), que não pode ser contemplada por um sistema meritocrático do serviço público nacional.