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4. A CARITAS NA PERSPETIVA DO MAGISTÉRIO DE BENTO XVI

4.5. A solidariedade

O serviço caritativo e a solicitude pelo próximo, vividos nas primeiras

comunidades cristãs e amplamente mencionados por Bento XVI na Deus caritas est,

remetem para o sentido inevitável da solidariedade entre todos os povos, reconhecido

pelo Concílio Vaticano II, quando fala sobre a rapidez dos meios de comunicação: “Nos

dias de hoje, a ação caritativa pode e deve abranger integralmente as necessidades de

todos os homens”306

. Ao referir o Decreto Apostolicam Actuositatem, o Papa não só

evidencia a questão do avanço dos meios de comunicação como também indica o valor

da solidariedade na vivência do amor por parte da Igreja e de todos os homens e

304 Cf. Ibidem, 108. 305

Cf. BENTO XVI, Deus caritas est, nº 23-24.

306

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mulheres de boa vontade: “Superando as fronteiras das comunidades nacionais, a solicitude pelo próximo tende, assim, a alargar os seus horizontes ao mundo inteiro”307

.

Bento XVI aborda a solidariedade conjugando-a com a questão da justiça308. Ao fazê-lo, demonstra que a temática é mais do âmbito social. Este foi também o

pensamento de João Paulo II que, ao escrever a encíclica Sollicitudo rei socialis, de

1988, está ciente de que a palavra “solidariedade”, como virtude social, não nasce no

contexto da fé cristã. Contudo, como ficou acima esboçado, a sua praxis e compreensão

nunca esteve longe da comunidade eclesial como princípio para contrapor-se ao

individualismo. A compreensão cristã de solidariedade tem presente a resposta concreta

diante das necessidades e a criação de vínculos de pertença comunitária e de espaços de acolhimento, mas não se reduz a eles porque “é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos”309

.

A tese que confere ao conceito da solidariedade um cunho social é também

partilhada por Domingos Lourenço Vieira. Este autor considera que a expressão “solidariedade” foi, desde os primórdios das ciências sociais definida sob forma de uma ciência social e descrevia regras de conduta que os homens adoptariam no seu relacionamento mútuo; no contexto católico foi inspirado pela Questão social”310

. Foi a

partir daqui que muitos católicos socialmente preocupados, que, por um lado,

307 BENTO XVI, Deus caritas est, nº 30. 308 Cf. Ibidem, nº 30.

309 JOÃO PAULO II, Sollicitudo rei socialis, nº 38. 310

A “Questão social” foi discutida oficialmente pelo Papa Leão XIII na encíclica Rerum Novarum em 1891.

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desejavam melhorar a vida, o destino dos trabalhadores e, por outro, queriam aproximar

as massas trabalhadoras da Igreja, começaram a partilhar as formas de pensamento do

racionalismo laico e também os esquemas conceptuais dum socialismo utópico do

século XIX, cultivando, ao mesmo tempo, a ideia de que o cristianismo traria resposta

para as misérias sociais311. Apoiando-se no catolicismo alemão, representado pelo teólogo Heinrich Pesch, o autor considera ainda que a solidariedade aparece como um

princípio católico em resposta ao individualismo e ao socialismo312.

Como referiu Domingos Vieira Lourenço, o conceito da solidariedade na

doutrina social da Igreja ganhou uma evolução de sentido na história da Igreja. Na

perspetiva teológica ele aparece com a questão social discutida oficialmente por Leão

XIII na encíclica Rerum novarum de 1891. Nesta carta encíclica repudia-se tanto o

comunismo como o capitalismo e propõe-se a cooperação internacional como solução

viável para os problemas vigentes na altura.

No espírito de celebrar o quadragésimo aniversário da Rerum Novarum, Pio XI

discute, embora implicitamente, também a questão da solidariedade313. Na encíclica

Mater et magistra, de João XXIII, a ideia de solidariedade é explicitamente utilizada

como princípio regulador das relações entre empresários e operários, como forma de os

agricultores se organizarem em cooperativas para fomentar a entreajuda, para favorecer

311 Cf. Domingos Lourenço VIEIRA, La solidarité au cœur de l’éthique social. La notion de solidarité

dans l’enseignement social de l’Église catholique, Paris: Mare & Martin, 2006, 32-33 e 89.

312

Cf. Ibidem, 118.

313

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a partilha de bens que a solicitude humana e a fraternidade cristã pedem que seja

estabelecida entre os povos314.

Na carta encíclica Pacem in terris, também de João XXIII, a solidariedade

encontra-se estreitamente relacionada com a caridade315, embora num pano de fundo mais jurídico, nomeadamente a relação entre os países, na página dedicada às

migrações316.

Na Gaudium et Spes o termo é usado para expressar formalmente a relação da

Igreja com o mundo e aparece sete vezes naquele documento do Concílio Vaticano II.

Entre eles, os nºs 1 e 32 são aqueles que se revelam mais congruentes com este

estudo317. É, contudo, em Apostolicam Actuositatem que o sentido teológico da solidariedade é consideravelmente destacado e onde a sua interação com a caridade

encontra fundamento sobrenatural318.

Na Populorum Progressio, de Paulo VI, o conceito da solidariedade é discutido

não apenas como princípio do qual derivam outros, nomeadamente, direitos e deveres,

mas também como um dever319. A solidariedade como dever é a chave para o

314 Cf. JOÃO XXIII, Mater et magistral, nºs 22, 143, 152, 154 e 155. 315 Cf. JOÃO XXIII, Pacem in terris, nº 107.

316 Cf. Ibidem, nº 98.

317 Cf. Gaudium et Spes, nº 1, 32. 318

Cf. Apostolicam Actuositatem, nº 8.

319

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desenvolvimento das nações320, deve impulsionar as que são ricas a ajudar as pobres321 e deve permitir que todos os homens se tornem artífices do seu destino322.

Na Octogesima Adveniens, também de Paulo VI, o termo solidariedade é usado

quase sempre (cerca de dez vezes) em oposição ao individualismo323. E na exortação apostólica Evangelii Nuntianti, o mesmo Papa, além da evangelização, evidencia a

necessidade de uma educação para a solidariedade, a fim de que todos os homens

saibam desenvolver o senso para o bem comum324.

A Laborem Exercens, de João Paulo II, é aquela que tratou a solidariedade em

termos teológico e que manifesta uma preocupação com os movimentos de organização

no mundo do trabalho. Das doze (12) vezes que o termo é referido na encíclica, seis estão no nº 8 que leva o título: “Solidariedade dos homens do trabalho”.

Na Sollicitudo rei socialis, define-se a solidariedade como uma virtude cristã325. Isto significa que a solidariedade é pessoal, comunitária e também política, negando o

imperialismo do sujeito individual. O termo solidariedade é usado vinte e sete vezes.

Ao considerar a solidariedade como virtude cristã, João Paulo II admite que ela é

um dever e não uma simples opção; vivida por um cristão, torna-se um “sinal distintivo

seu”326

, tal como a caridade. Estabelece-se aqui uma relação intrínseca entre as duas na

320 Cf. Ibidem, nº 48. 321 Cf. Ibidem, nº 44. 322 Cf. Ibidem, nº 65. 323 Cf. Ibidem, nº 23.

324 Cf. PAULO VI, Evangelii nuntianti, nº 23. 325

Cf. JOÃO PAULO II, Sollicitudo rei socialis, nº 40.

326

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medida em que a primeira, “à luz da fé, tende a superar-se a si mesma, a revestir as dimensões especificamente cristãs da gratuidade total, do perdão e da reconciliação”327

.

Na Centesimus annus, João Paulo II, ao se referir os seus antecessores,

nomeadamente Leão III, Pio XI e Paulo VI328, para debruçar-se da solidariedade como princípio cristão, faz notar que a temática é importante no plano do magistério romano.

No documento Congresso eucarístico da Arquidiocese de Benevento (Itália), eucaristia,

comunhão e solidariedade, o cardeal Joseph Ratzinger constata que foi graças ao

magistério estudos do Papa João Paulo II que o conceito de solidariedade foi lentamente

transformado e cristianizado, “de forma que agora nós o podemos justamente aproximar aos termos eucaristia e comunhão”329

. Neste sentido, solidariedade significa sentir-se

responsável pelos outros: os sãos pelos doentes, os ricos pelos pobres, os do Norte pelos

do Sul, “conscientes da responsabilidade recíproca e por conseguinte, conscientes de que, quando damos, nós recebemos, e de que podemos dar sempre e só daquilo que nos

foi dado e por isso não nos pertence unicamente a nós próprios”330

.

Em Deus caritas est percebe-se que Bento XVI se posiciona nos mesmos

quadrantes do magistério católico. A sua novidade reside no modo como aponta a

imagem do bom samaritano como modelo da caridade e da solidariedade. Aquele relato

mostra claramente que a caridade tem de ser uma resposta livre. A caridade social é uma

327 JOÃO PAULO II, Sollicitudo rei socialis, nº 40. 328 Cf. JOÃO PAULO II, Centesimus annus, nº 10.

329 J. RATZINGER, Congresso eucarístico da Arquidiocese de Benevento (Itália): eucaristia, comunhão

e solidariedade, nº 3.

330

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resposta moralmente obrigante perante a pessoa que está em necessidade331. Pelo anteriormente exposto, conclui-se que, embora o conceito de solidariedade seja do

âmbito das ciências sociais, o pensamento católico assume-o e desenvolve-o

teologicamente.

Discursando na 14ª Sessão Plenária da Pontifícia Academia das Ciências Sociais

que teve lugar no Vaticano nos dias 2-6 de Maio de 2008, Bento XVI definiu a

“Solidariedade” como uma virtude que permite à família humana compartilhar em plenitude o tesouro dos bens materiais e espirituais332. No discurso em referência, o Papa aborda o conceito da “Subsidiariedade” e definindo-o como a coordenação das

atividades da sociedade em apoio da vida interna das comunidades locais. Para Bento

XVI, os dois aspetos, a solidariedade que une à família humana e os níveis de

subsidiariedade que a reforçam desde dentro devem situar-se sempre no horizonte da

vida misteriosa do Deus Uno e Trino (Jo 5, 26; 6, 57), em que se percebe um amor

inefável compartilhado por pessoas iguais, ainda que distintas não só no sentido de que

os princípios de solidariedade e subsidiariedade sejam sem dúvida enriquecidos pela fé

na Trindade, mas em particular no sentido de que tais princípios têm a potencialidade de

situar os homens e as mulheres no caminho que conduz à descoberta do seu destino

último e sobrenatural333.

No documento acima referido, Bento XVI deixa entrever que os princípios de

solidariedade e subsidiariedade vistos à luz do Evangelho não são simplesmente

331 Cf. BENTO XVI, Deus caritas est, nº 32. 332

Cf. L’Osservatore Romano 18, (1947) 5/05/2008, 6-7.

333

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“horizontais”: ambos possuem uma essencial dimensão vertical: Jesus nos exorta a fazer aos demais o que gostaríamos que fizessem a nós (Lc 6, 31), a amar a nosso próximo

como a nós mesmos (Mt 22, 35). Estes mandamentos estão inscritos pelo Criador na

própria natureza humana. Isto significa que o cristão deve dedicar a vida ao bem dos

demais (Jo 15, 12-13). Assim, continua o Papa, a solidariedade autêntica, ainda que

comece com o reconhecimento do “igual” valor do outro, realiza-se só quando a vida se

coloca voluntariamente ao serviço do outro (Ef 6, 21). Esta é a dimensão “vertical” da

solidariedade: “sou impulsionado a tornar-me ‘menos’ que o outro para satisfazer as suas necessidades (Jo 13, 14-15), precisamente como Jesus se humilhou para permitir

aos homens e às mulheres que participassem de sua vida divina com o Pai e o Espírito

(Fl 2, 8; Mt 23, 12)”334.

Na sequência do que ficou referido em relação à solidariedade, Bento XVI

observa que, a subsidiariedade, que alenta homens e mulheres a instaurar livremente

relações duradouras de vida com quem está mais próximo e dos que dependem mais

diretamente, e que exige das mais elevadas autoridades o respeito de tais relações, manifesta uma dimensão “vertical” orientada ao Criador da ordem social (Rm 12, 16, 18).

Bento XVI vai buscar o pensamento contido na encíclica Quadragesimo anno

para inferir que uma sociedade que honra o princípio da subsidiariedade liberta as

pessoas da sensação de desconsolo e de desespero, garantindo-lhes a liberdade de

comprometer-se reciprocamente nos âmbitos do comércio, da política e da cultura335.

334

Ibidem.

335

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Quando os responsáveis do bem comum respeitam o desejo humano natural de auto-

governo baseado na subsidiariedade, deixam espaço à responsabilidade e à iniciativa

individual, mas sobretudo deixam espaço ao amor (Rm 13, 8); que continua sendo

sempre «a melhor via de todas» (1Cor 12, 31)336.