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Soltando a voz: a palavra da mulher

A reconstrução do papel da mulher na história tem sido um desafio enfrentado pela teoria crítica feminista que busca resgatar a identidade feminina apagada dentro da cultura dominante marcada pelo paradigma masculino. A ascensão do movimento feminista possibilita que hoje se fale em um discurso da diferença, ou seja, o reconhecimento de que a escrita feminina é estruturada nas experiências e especificidades do ser-mulher, como coloca Rita Teresinha Schmidt:

...a literatura feita por mulheres hoje, se engaja num processo de reconstrução da categoria ‘mulher’, enquanto questão de sentido e lugar potencialmente privilegiado para a reconceptualização do feminino, para a recuperação de experiências emudecidas pela Tradição cultural dominante (1995, p.188).

Para a reconstrução dessa categoria, a crítica esclarece que a escrita feminina é marcada por um ponto de vista feminino e produzida no eixo da diferença. O conceito de diferença se fundamenta no reconhecimento que as mulheres são diferentes dos homens, pois possuem outros valores pertencentes ao universo feminino. Em Elogio da

diferença, Rosiska Darcy de Oliveira (1999) defende a possibilidade de uma cultura

feminina pelo reconhecimento da existência do universo feminino no qual se afirma o projeto da diferença.

A presença cada vez mais acentuada da mulher nos campos do saber e do poder, segundo Oliveira, é a possibilidade dessa cultura se fazer presente em todas as esferas da vida social. Nesta perspectiva, muitas escritoras problematizam o feminino em sua condição histórico-cultural. Maria Teresa Horta na poesia revela essa perspectiva feminina e, ao mesmo tempo, feminista de revelar o universo feminino e de dialogar com os valores da cultura dominante. Dar voz à mulher é uma forma de tirá-la do silêncio secular e pôr em evidência toda a ligação com a ancestralidade do feminino e sua maneira de colocar em questionamento os valores que definem o lugar da mulher e, sobretudo, da palavra da mulher ao longo de sua história.

“A história das mulheres é, de certa forma, a história do modo como tomam a palavra” (1990, p.10). Assim definem Georges Duby e Michelle Perrot na introdução da

mulheres começa a ser ouvida graças ao impulso feminista. Desde o século XIX, as feministas lutam para obstruir o silêncio em relação aos registros da fala feminina. Segundo Duby e Perrot; falar, ler, escrever e publicar são atos essenciais das relações dos sexos com a criação e com a cultura, porém nunca houve uma preocupação em preservar a história das mulheres. O que elas falaram, fizeram ou até mesmo escreveram, ficou no esquecimento.

A conservação dos vestígios não é menos problemática. No teatro da memória, as mulheres são leves sombras. Pouco espaço ocupam nas estantes dos arquivos públicos. Desaparecem na destruição generalizada dos arquivos privados. Quantos diários íntimos, quantas cartas queimadas por herdeiros indiferentes ou irônicos, ou mesmo pelas próprias mulheres que, no crepúsculo de uma vida magoada, remexem as cinzas das suas recordações, cuja divulgação temem (1990, p.11).

É verdade que as mulheres sempre estiveram presentes na história, mas trata-se de uma presença à margem, vista como objetos ilustrativos. Uma história, “À margem da história com vocação científica, afirma-se, e persiste ainda hoje, uma história das mulheres, edificante ou estupidificante, irritante ou lamuriente, que se exibe particularmente nas revistas femininas e satisfaz os gostos do grande público” (DUBY & PERROT, p.13). É a história apagada que vai se definindo no lento processo da tomada da palavra.

Com efeito, esse processo se inicia com os movimentos de libertação das mulheres iniciados por algumas pioneiras ainda no século XIX. As feministas dos anos setenta abriram o debate subversivo que ousava exigir da sociedade a sonhada igualdade de sexos. Esse foi o momento da tomada da palavra que forçou as mulheres a aderirem ao modo de vida dos homens para poderem disputar espaço na vida pública. Rosiska Darcy de Oliveira (1999) mostra que no final dos anos oitenta começa a nascer uma nova consciência, ou mesmo um amadurecimento do feminismo. A luta com objetivo de igualdade, porém sem a intenção de se assemelharem aos homens. É o que ela chama de feminismo da diferença.

Maria de Lourdes Pintasilgo em Os novos feminismos (1981) afirma que a luta pela libertação da palavra de todas as mulheres nasce num momento histórico e em um contexto determinado em que elas se sentiram mudas. Segundo Pintasilgo, a tomada da palavra é a possibilidade de se dizer eu e: “...retomar a história de maneira única porque profundamente pessoal. A mulheres passam a falar sem constrangimentos. As mulheres dizem-se. As mulheres contam-se, na sua realidade e no seu imaginário” (1981, p.44).

A palavra que diz eu carrega dois traços culturais assumidos e proclamados: a recusa do anonimato das generalizações e a constatação de que a consciência é sempre histórica. No primeiro traço, a palavra das mulheres se afirma singular, pois traça o percurso de sua própria história. Já o outro traço faz com que se desvendem séculos da cultura do silêncio.

Sendo a palavra das mulheres singular, ela traz uma experiência pessoal que pode representar uma experiência comum a um grupo oprimido. Pintasilgo defende que a partir das experiências pessoais é possível atingir níveis de universalidade insuspeitada, ou seja, a palavra singular se torna eco universal. É o processo de conscientização atingido pelo movimento das mulheres. Essa universalidade da palavra é uma das armas mais importantes das mulheres, pois os poderes institucionalizados consideram uma ameaça a experiência e a palavra que ecoam fora de seu lugar de origem.

Pintasilgo argumenta que as mulheres sempre mantiveram uma relação muito especial com a palavra em praticamente todas as civilizações. Ela coloca que há três modalidades de usar a palavra que são associadas às mulheres: o mutismo, a tagarelice e o grito histérico. A força expressiva do silêncio esconde as palavras guardadas que esperam o momento de se revelarem ou rebelarem: “...é um silêncio contido ... . Atrás dele, escondem-se muitas vezes a perseverança obstinada, a recusa violenta do que se vive ou do que se vê. Sem palavras, a mulher fala (1981, p.48).

Já a tagalice, para além do estereótipo social que representa, marca a oposição ao silêncio, trazendo a espontaneidade. Pintasilgo alega que o tagarelismo das mulheres é arma poderosa que faz a palavra passar de boca em boca, facilitando que se atinja seu objeto mais rapidamente. A tagarelice é o lugar de refúgio, ao contrário do mutismo que é o lugar da recusa. É a exibição da palavra.

A palavra da mulher, no entanto, desde os tempos remotos, é identificada com o grito histérico: “Palavra que não sabe como dizer-se, faz-se grito, faz-se queixa dolorosa. Diz não, reivindica o direito de ser ouvida, sem quase saber em que consiste, sem mesmo dar conta de que está reclamando o que lhe é devido” (1981, p.52). Para além de estereótipo, de mutismo e de refúgio, o grito seria a grande revolta, como questiona a crítica.

Marcada pela diferença, a palavra da mulher é insólita porque quebra as conveniências estabelecidas, conclui a crítica. A diferença dessa palavra é a crença de uma fala-de-mulher. Para Pintasilgo essa fala traz três elementos distintos: o discurso em espiral, a inequívoca ruptura da unidade de estilos e a integração entre o real e o

imaginário. É certo que são características questionáveis para definir uma escrita feminina, embora sejam muito presentes. A palavra da mulher se legitima como prática feminina de escrita quando desafia o sistema falocêntrico e se afirma no eixo da diferença, como define Rita Teresinha Schmidt. A palavra então ganha um corpo que é história: “Tão importante como o conteúdo do que se transmite, é o que o corpo diz, a forma como se revela, no gesto, no tom de voz, no olhar” (PINTASILGO, 1981, p.54)