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Nas Sombras da Loucura Roberta Spindler

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— Ele deve ter feito uma sujeirada lá dentro de novo. Entenderei se quiser adiar o encontro.

O outro negou, colocando a mão pesada sobre o ombro dele.

— De jeito nenhum. Eu consigo prender a res-piração por um bom tempo — forçou um sorriso.

Pereira sentiu um arrepio com aquele toque e se apressou em abrir a porta. Se ele queria cheirar merda durante meia hora, não iria questionar.

— Tome cuidado — falou antes de girar a maça-neta. — Levy é um homem doente.

O quarto, que na verdade não passava de um cubículo apertado sem janelas, estava tomado pela escuridão. Assim que colocou os pés lá dentro, o homem sentiu as marcas escondidas pelas mangas do seu paletó arderem. Retirou um cigarro do bolso e o acendeu, soltando uma baforada satisfeita.

A sombra sentada sobre a cama virou em sua di-reção. Olhos grandes que o fitavam com receio.

— Você não pode fumar aqui — a voz era trê-mula, fraca como um sopro. — Os doutores não vão gostar.

— Eu não ligo — o homem tragou mais uma vez, como prova de seu descaso.

Aos poucos foi se acostumando com a penum-bra e conseguiu ver o homem esquelético que lu-tava para manter a coluna ereta. Seus cabelos, que na foto de referência eram vastos e encaracolados, agora não passavam de fiapos espaçados por uma careca manchada. Os olhos encovados moviam-se sem parar, como se procurassem por mais alguém.

As mãos estavam imundas, tomadas por algo escu-ro e fedorento que também se espalhava por todas as paredes.

— Quem é você? — perguntou, encolhendo os ombros. — Já disse que não quero mais conversar com ninguém!

— Eu não estou aqui para conversar com você, Wesley — o homem falou, saboreando o pânico do olhar que recebeu. — Será que poderia chamar sua companheira de cela? Tenho um pouco de pressa.

A reação do paciente foi extrema. Ele caiu de joe-lhos, tremendo. Levou as mãos aos ouvidos e come-çou a falar com rapidez. Seu tom era desesperado, implorava por salvação. O homem o observou com frieza, estava cansado daqueles seres fracos que se deixavam dominar. Jogou a pasta e a jaqueta no chão, levantando as mangas da camisa branca. Em seus braços, as marcas feitas com brasa brilharam, atraindo a atenção de Levy.

— Onde ela está, Wesley?

Com olhos vermelhos e o nariz escorrendo, o resto de homem apoiou-se na cama, as pernas finas já tinham perdido a estabilidade há muito tempo.

— Eu tentei explicar — lamentou. — Tentei di-zer que não estava sozinho aqui, que meus sonhos eram reais. Eles não acreditaram, dobraram minha medicação, me fizeram dormir ainda mais. Você pode me ajudar? Pode acabar com essa doença que me persegue?

O cigarro já pela metade descansava no canto es-querdo dos lábios do homem. Quando estava pron-to para falar, a luz do quarpron-to se acendeu de repen-te. A claridade cegou os dois por alguns instantes.

Wesley gemeu baixinho e voltou ao chão.

— Ela está aqui — ficou repetindo, como um mantra macabro.

Sem transparecer emoção, o homem ergueu o olhar e encontrou uma mulher nua sentada na cama. Ela era deslumbrante. A pele morena parecia brilhar sob a luz fluorescente, os cabelos negros e vastos chegavam até a cintura. Os seios eram fartos e o rosto guardava traços simétricos, com olhos ver-melhos como o fogo que ardia em seu interior.

— Ora, enfim me encontrei com o famoso in-terrogador — ela falava num tom melodioso, uma canção que ao mesmo tempo assustava e excitava.

Percorreu a silhueta do visitante com seus olhos ru-bros, analisando-o sem pudor. — É mais bonito do que eu imaginava... Podemos nos divertir se quiser.

O sorriso que lançou abalaria qualquer homem desprevenido. O interrogador, porém, há muito aprendera a encarcerar seus desejos. Era um profis-sional, o melhor do ramo, não se deixaria abalar por um flerte despropositado de uma súcubo. Escondeu

Nas Sombras da Loucura Roberta Spindler as mãos no bolso, fazendo questão de que a mulher

visse as marcas de poder em seus antebraços.

— Depois do que você fez com esse pobre coi-tado? — lançou um olhar para o decrépito Levy. — Não, acho que vou recusar o convite.

A súcubo fez beicinho, fingindo mágoa. Levou o pé até as costas de Wesley Levy, esmagando-o con-tra o chão com uma força que o corpo delicado não parecia possuir.

— Quem irá sentir falta deste traste? Você, in-terrogador? É por isso que veio? Para me punir por roubar a energia vital de perturbados?

— Eu não sou juiz — o interrogador falou com frieza. — Só quero as informações que meus clien-tes necessitam.

A mulher deu uma risadinha, divertindo-se com a dor que causava a Wesley.

— E quem seriam esses clientes? — levantou uma das sobrancelhas.

O interrogador apanhou a mala, abriu os lacres e retirou de lá um cartão negro com uma rosa ver-melha estampada em alto relevo. Entregou o papel à mulher, observando as feições dela se contraírem.

— Você está andando em péssima companhia — qualquer traço de diversão na voz dela foi apagado.

Deixou de brincar com o paciente no chão. — O que a Rosa Vermelha poderia querer com um de-mônio classe baixa como eu?

Pisando na bituca queimada de seu cigarro, o in-terrogador deu um sorriso cínico.

— Pare de me tratar como um amador — reti-rou algumas fotos também guardadas na mala. Elas mostravam por vários ângulos um homem gordo, com mais de sessenta anos de idade, morto sobre uma cama de motel. Ele estava nu, sua barriga pro-eminente repleta de profundos arranhões. — Reco-nhece este renomado cidadão? Fui informado de que era um político importante. Parece que morreu com as calças na mão.

— Eu nunca o vi na minha vida — a súcubo sibi-lou por entre os dentes.

O interrogador negou.

— Pare de mentir.

A mulher olhou para os lados, encurralada. Cru-zou os braços sobre os seios, encarando o interroga-dor sem qualquer máscara de sedução.

— O que quer?

— Você roubou algo deste homem e o entre-gou para que um íncubo engravidasse uma mulher qualquer. Não sei qual era o plano e nem me inte-ressa, mas a criança deve ter nascido alguns meses atrás. Quero que me diga onde ela está.

A raiva tomou as feições dela, enquanto as luzes do quarto começavam a piscar. Wesley gritou, de-sesperado. O interrogador achou que ouviu a voz do Dr. Pereira, mas não se deu ao trabalho de res-ponder. Ninguém entraria ou deixaria o quarto até que o interrogatório terminasse.

— Não saberá nada de mim! — a mulher vocife-rou. — Diga àquela desgraçada que se ela quer ban-car a mãe que tenha sua própria cria! A minha ela não irá roubar!

O interrogador acendeu um novo cigarro.

— Helena torcia para que sua resposta fosse essa.

Bem, não posso dizer que não tentei dialogar.

Ele levantou os braços, que emanavam uma in-tensa luz avermelhada. A mulher estremeceu, mas quando tentou escapar, foi segura pelo braço. Mes-mo se debatendo, não pôde impedir que as mãos fortes do interrogador agarrassem sua cabeça. Se não conseguia seduzi-lo, não tinha poderes sobre ele. Seus gritos de dor ecoaram por todo o sanató-rio. Os pacientes e funcionários nunca se esquece-riam daquele lamento.

O Doutor Pereira já tinha se cansado de bater na porta. Dois enfermeiros tentaram sem sucesso arrombá-la. Suando e com uma dor de cabeça terrí-vel, ele estava pronto para chamar a polícia quando ouviu o leve clique da trava. Avistou o médico mis-terioso que ajeitava a jaqueta e o colarinho.

— Já terminei a verificação. Não precisa me acompanhar até a saída, sei bem qual é meu cami-nho.

Sem explicações, ele sumiu nos corredores. Pe-reira passou um lenço sobre a testa molhada e deu

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59 passos receosos na direção do quarto de Wesley. En-controu o paciente sentado na cama com os olhos vermelhos de tanto chorar, mas com uma calma que há muito não se via nas suas feições.

— O que aconteceu? — perguntou, torcendo o nariz para o cheiro que tomava o lugar. — O que aquele homem fez com você, Levy?

— Ele me curou — a resposta veio num tom mo-nocórdio. — Matou o demônio que vivia dentro de mim. Agora vai procurar pelo filho das trevas.

O médico meneou a cabeça, como se estivesse compreendendo, mas lançou um olhar significativo para seus enfermeiros. Os dois homens agarraram Levy e lhe aplicaram uma injeção sedativa.

Enquanto ajeitava o paciente sobre a cama, Pe-reira pisou num amontoado de cinzas. Um fedor ainda mais terrível tomou o ar, embrulhando seu estômago. O que mais o alarmou, porém, foi o for-mato peculiar do pó cinzento. Uma silhueta femi-nina.

Trancou a porta do quarto com rapidez, disposto a pedir demissão assim que o diretor do sanatório chegasse.

Roberta Spindler nasceu em Belém do Pará, em 1985. Graduada em publicida-de, também trabalha como editora de vídeos. Nerd confessa, adora quadrinhos, games e RPG. Escreve desde a adolescên-cia e é apaixonada por literatura fantás-tica. Tem contos publicados em diversas antologias e é coautora de Contos de Meigan – A Fúria dos Cártagos. A Torre Acima do Véu é seu segundo romance.

Twitter: @robertaspindler

Fan page: www.facebook.com/robertaspindlerautora Blog: www.ruidocriativo.wordpress.com

H O M E N A G E M