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As colaborações compositor-performer no século XXI revelam experimentações intuitivas no processo secular de criação pautado na afinidade entre músicos contemporâneos. Tal fato pode ser observado, ao longo da história da música, em vários exemplos de compositores dedicados a escrever para seus intérpretes prediletos e que eram de sua convivên- cia. Na produção de música nas igrejas e nas cortes do Período Barroco essa colaboração não era tão expoente, pois era muito comum que compositores fossem também exímios intérpretes (a exemplo de J. S. Bach ao cravo e G. Ph.Telemann na flauta doce). Exemplos envolvendo colaborações são muitos, como o de J. Haydn e sua proximidade com o contrabaixista Pichelberg ou G. Crumb e sua relação com a mezzo-soprano Jan DeGaetani, que gravou toda a sua obra para voz. Compositores e intérpretes aprendem pela convivência em um território que é, por nature- za, do outro. Experiências em produções musicais mistas (como música, cenário, dança) em que a composição musical busca no

1 Texto originalmente publicado no 20º Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, realizado em Florianópolis, 2010, que segue aqui revisado pela autora. (Anais... ANPPOM, Florianópolis, 2010. p. 1310-1314.)

instrumentista fonte de recursos para inovações sonoras que possam ser apresentadas ao vivo na performance.

Ao mesmo tempo, colaborações cuidadosamente planeja- das e estudadas também revelam celeiros de criação envolvendo compositores e performers, particularmente no seio acadêmico. A ideia da academia abrigar um músico-pesquisador tem permi- tido aos compositores o desenvolvimento de suas propostas composicionais, bem como permitido ao performer inserido na academia experimentar novas possibilidades de execução. O encontro desses dois profissionais em grupos de estudo e de pesquisa tem propiciado criação de obras em colaboração, algu- mas delas já objeto de textos versando sobre colaboração compo- sitor-performer no Brasil a exemplo de Borém (1998, 1999); Ray (2001); Tokeshi e Copetti (2004). Em todos os três casos, as obras discutidas pelos pesquisadores-performers geraram material sobre técnica estendida no instrumento objeto do estudo, no caso contrabaixo e violino.

Entretanto, a visão do músico como um “cientista de labo- ratório”, amplamente defendida pelo compositor Milton Babbit (1984), é também amplamente combatida por compositores que defendem a necessidade da corroboração do público para que uma inovação seja de fato bem-sucedida. Babbit e seus seguidores não se preocupam com isso. Acreditam que o importante é desen- volver o processo criativo, como cientista acadêmico de fato. Se o ouvinte vai gostar ou entender não é parte de suas preocupações. Nesse sentido, o intérprete não pode deixar de se impor- tar com o público, pois são raras as carreiras como a do ilustre pianista Glenn Gould (1932-1982) que não atuava ao vivo e desen- volveu a maior parte de sua vida profissional gravando em estú- dios. Em uma abordagem bastante acadêmica, porém distante fisicamente dos compositores abordados, a pianista-pesquisadora

Luciane Cardassi discorreu com propriedade sobre o processo preparatório de duas obras com grande carga de técnicas não convencionais e de alto nível técnico dos compositores L. Berio e K. Stockhausen (CARDASSI, 2005, 2006). Ambos os textos estão centrados na execução voltada para uma plateia presente e deixam claro que os compositores escreveram idiomaticamente para o piano com contribuições significativas de intérpretes.

Uma ideia de trajetória

Um breve olhar sobre os últimos 60 anos permite a obser- vação de como a colaboração compositor-performer muda ao longo desse período. No período pós 2ª Grande Guerra, compo- sitores, como outros artistas, buscavam um elemento em seu trabalho que o identificasse com sua pátria. O remanejamento de profissionais no movimento de deixar a Europa nesse perío- do contribuiu decisivamente para estabelecer esse quadro. Nesse cenário, o papel do performer não passa muito da função de interpretar a obra após sua conclusão. O movimento em defe- sa do serialismo e os argumentos de Schoenberg e Stravinsky centralizaram as discussões científicas em música e o perfor- mer foi forçado a assumir o “lado” daqueles que não acreditas- sem na “total organization”, movimento que promoveu grande desenvolvimento da música eletrônica e minimizou, em parte, a função ou a importância do intérprete por um período.

Em meados da década de 1950, inovações na notação permitindo que compositores explorassem a grafia de sons não convencionais abriu um período extremamente criativo também para a busca de novas possiblidades de execução instru- mental. Tal mudança foi provocada, entre outras razões, pela

proximidade de compositores com outros artistas contemporâ- neos (pintores, arquitetos...), proximidade esta que estimulou a buscar outras formas de registrar sons imaginados. Os compo- sitores K. Penderecki (n.1933), I. Xenakis (1922-2001) e G. Crumb (n.1929) são exemplos clássicos dessa exploração de gráfica e sonora na década de 1960, como mostra a Figura 1 a seguir.

Figura 1 – Metastaseis (1953-54), de Iannis Xenakis, c. 139-147. Ao contrário do que se pode pensar, a busca pelo “total controle” do som perde força no início da década de 1970, quando compositores começam a se dar conta de que uma parte importante das possibilidades de criação estava sendo negligenciada. Essa parte trazia a instabilidade, a variedade e outras variáveis enriquecedoras e diferenciadoras da realiza- ção musical: o performer. Por instabilidade, entende-se a falta de controle, de precisão exata por parte do compositor sobre o que o intérprete vai realizar no momento da performance. Obras totalmente executadas com suporte eletrônico (ou digi- tal) garantem tal precisão. Entretanto, perdem a possibilidade de recriação, de intervenção da visão do performer.

Comentando a facilidade com que certas obras eram conce- bidas ao computador, Elliot Carter afirmou que, num momento em que o computador faz tanto do trabalho [do compositor] “há tanto mais o que se fazer!”. Na verdade, ele é um exemplo de compositor que seguiu fazendo muito e continua ativo e em colaborações com intérpretes dos mais diversos instrumentos. Em comemoração ao seu centésimo aniversário, a New York Philharmonic organizou um concerto com suas obras inéditas e mais recentes, em 18 de janeiro de 2008, no Lincohn Center. Nesse concerto, foi apresentada, entre outras, a obra Figment III para contrabaixo solo que Carter escreveu “para o brilhante perfor- mer Don Palma”, evidenciando a ativa influência do performer na produção do compositor (CARTER apud KELLER, 2008).

No século XXI, o performer toma a frente dessa colabo- ração. As iniciativas de encomenda de obras partem de instru- mentistas que querem ver escrito para seu instrumento uma obra na linguagem de “x” compositor, o que valorizaria seu instrumento. Atitude bem diferente da busca por novos timbres que dominou a música “contemporânea” do início do século XX. A colaboração do performer então era ainda de executante “experimentador” de iniciativas composicioniais. O século XXI apresenta um performer, líder, parceiro por vezes na criação, interessado não somente numa autopromoção artística mas também no compromisso em ampliar qualitativamente o reper- tório para seu instrumento para fins artísticos e pedagógicos.

Algumas perspectivas

As perspectivas para as próximas décadas do século XXI são de que a música composta esteja cada vez mais em relação

com a realidade à sua volta. Não falo neste estudo de música “engajada”, mas sim de música em contexto. Contexto este que deve envolver função musical, mas não ser definido por ela. Contexto que deve determinar uma instrumentação, mas não se limitar a ela. Ou seja, a colaboração compositor-intérprete tende a ser mais informada e sofisticada.

Muito dessa sofisticação está relacionado ao fato de que performers têm se aprofundado nas especificidades de seus instrumentos. Superaram o tradicional domínio técnico do instrumento expandindo a noção de “domínio” para englobar aspectos cognitivos, físicos, históricos, sociais e obviamente todos os aspectos técnicos que permitem uma execução musi- cal de alto nível.

Não se quer defender a visão do músico “cientista de labo- ratório” que investiga à exaustão as possibilidades de compo- sição e ou de performance e divulga os resultados como uma descoberta de vacina (visão parcialmente defendida por Babbit e seus seguidores nos anos 1980); muito menos ignorar a impor- tância que tal visão tem para as pesquisas aprofundadas sobre idiomatismo de instrumento e possibilidades composicionais sob o abrigo de uma universidade. Apenas se acredita que a criação artística não deva se perder no pragmatismo acadêmi- co nem na informalidade das produções culturais que buscam resultados imediatos para os anseios de uma comunidade, em grande parte, conformada com seu cotidiano.

O desenvolvimento de técnicas estendidas e até a criação de novas propostas de excução instrumental estão diretamente ligadas à relação próxima de compositores especializados em compor e intérpretes especializados em executar. Nos dias de hoje, o fato de os músicos raramente deterem o domínio desses dois processos artísticos, praticamente demanda que inovações

dependam dessa colaboração. Observa-se uma relação entre o aumento de obras e a ampliação das possibilidades técnicas de execução no repertório de instrumentos muito solicitados por compositores que trabalham em colaboração com instrumen- tistas. Esse é o caso do contrabaixo, estendido em recursos em colaborações como Bértola/Borém (1998), Estércio Cunha/Ray (2001), por exemplo. Frans Büggen, flautista holandês, mante- ve colaborações com renomados compositores que dedicaram obras a ele, a exemplo de Luciano Berio (Figura 2 a seguir) e Makoto Shinohara, ambos responsáveis por obras com técnicas estendidas para flauta doce.

Figura 2 – Início de Gesti (1966), de Luciano Berio.

Além disso, pode-se ainda citar Sofia Gubaidulina (n.1931), que apresentou em suas obras Pantomime (1966) e Sonata (1975) aplicações estendidas das técnicas de ricochet con legno e de pizzicatti, inspirada pela colaboração com o contrabaixista russo B. Artemiev (RAY, 2008).

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