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No universo católico, a partir da Idade Média, a música funcionou, por quatro séculos e meio, como um dos métodos mais bem sucedidos para a comunicação com o público letrado e iletrado. Sua notação convencional foi sistematizada e reproduzida a partir da apropriação dos textos em latim no que a historiografia musical ocidental chama de desenvolvimento da polifonia, a partir do canto gregoriano que foi registrado em um vasto calendário litúrgico com as seis horas canônicas para os 365 dias do ano sem se repetir (GROUT; PALISCA, 1997). Embora Lamim estivesse política e geograficamente conectada a Queluz como distrito, foi sob a égide da Sé marianense que se rotacionaram as práticas religiosas que demandaram funções cerimoniais, cujo apelo musical reivindicou composição e intérpretes que se ocupassem de tal trabalho.

A primeira forma da missa incluiu um grande número de peças cantadas e passou a ser conhecida também como missa solemnis. A Igreja Católica, no seu processo educativo religioso, justificou-se por meio da ortodoxia, do dogma como forma de se sustentar diante da passagem do tempo. Entre todas as transformações que a missa sofreu, o seu formato que mais nos interessa está no publicado no missal (livro que contém textos para missa), refletindo as decisões do Concílio de Trento em 1570, atendendo à liturgia tridentina. Foi inspirado no formato da missa tridentina que Leôncio Francisco das Chagas compôs cinco missas (identificadas até o momento), bem como a maioria dos compositores da primeira metade do século XVIII, até precisamente 1903, quando a Igreja publicou o motu próprio Tre saletudine, que definia o retorno às práticas do canto gregoriano, suspendendo a presença do coro e orquestra da Igreja.

QUADRO 5 - Lista de obras litúrgicas e paralitúrgicas de Leôncio Francisco das Chagas

Título da obra Código da cópia

Ave Maria - Saudação / Andante CDO.27.010 Antiphona por L[eoncio] Chagas CDO.27.023 Ladainha ao Sagrado Coração de Jesus CDO.27.039 Hymno a Nossa Senhora no dia 2 de fevereiro ao

sahir da procissão por LFC

CDO.27.009 C01 UM2

Hymno a Nossa Senhora no dia 2 de fevereiro ao entrar da procissão por LFC

CDO.27.009 C01 UM1

Solo ao pregador por Leoncio Francisco das Chagas

CDO.27.020 C01 UM1

Tantum ergo por LFC CDO.27.021 UM1

Te Deum por Leoncio Francisco das Chagas CDO.27.035 C01 Ladainha por Leoncio Francisco das Chagas CDO.27.037 C01 UM1 Ladainha segunda por Leoncio Francisco das

Chagas

CDO.27.040 C01

Missa primeira por LFC CDO.27.046 C01

Missa segunda por LFC CDO.27.043

Missa terceira por LFC CDO.27.045 C01

Missa quarta por LFC CDO.27.047 C01

Missa quinta por LFC CDO.27.044 C02

Fonte: Elaborado pelo autor

Segundo Eliane Lopes (1985, p. 18), “de maneira clara, mas não explicitada, a história e a historiografia vêm anunciando que há um processo educativo na história”. Em busca de respostas, valemo-nos da tentativa de apontar como essas instâncias religiosas emergiram no passado brasileiro e se reproduziram no tecido social com o passar do tempo. Historicamente, a música sacra, enquanto gênero, é um elemento forte e característico na história da música brasileira, não só como experiência performativo-religiosa, mas também com objetiva intenção de educar para além do que era próprio da Igreja. Nessa sociedade, onde uma estrutura organizacional é o primeiro passo em direção à civilidade, a Igreja é a instância com as bases administrativas mais fundamentadas e cumpre o papel do Estado.

É comum que, na historiografia, que remontemos os fatos a partir de uma narrativa que tem como ponto de partida o ensino proposto pela Companhia de Jesus, conduzida por Inácio de Loyola, em sua gradativa capilarização e atuação pelo interior do

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Brasil, a partir do século XVI23. Um dos trabalhos mais substanciais na história das primeiras iniciativas musicais educativas para o campo da Musicologia foi realizado pelo pesquisador Marcos Holler (2005). Em sua pesquisa, foi feito um levantamento de documentos jesuíticos do século XVI ao XVIII, com o objetivo de recolher informações sobre a prática e o ensino musical nos estabelecimentos jesuíticos da América Portuguesa. Esse sistema de ensino deflagra um processo educativo religioso que, em sua origem, está em sintonia com um sentimento bastante ativo. A tradição ou transmissão oral da fé tinha repouso sobre um ensinamento feito da boca para a orelha. João Adolfo Hansen (2015, p. 21) afirma que,

nos séculos XVI e XVII, as missões jesuíticas no Brasil e no Maranhão e Grão Pará, a iniciativa de fazer da pregação oral, o instrumento privilegiado da divulgação da palavra divina pressupunha que a luz natural da graça incita, ilumina a mente dos gentios, objeto de catequese, tornando-os predispostos à conversão.

A prática musical oferece, como estratégia, excelentes possibilidades para esse tipo de transmissão, mas não só aos gentios. O trabalho de Holler (2005) é esclarecedor em muitos aspectos relativos às instâncias da transmissão das práticas musicais, entre eles, demonstrar que a atuação educativo-musical dos jesuítas, bem como de outras ordens primeiras, no decorrer da história, não se deu de maneira exclusivamente relacionada à catequização, mas teve seus contornos próprios na educação da população dos centros urbanos emergentes, sobretudo em escolas. O ensino musical religioso, envolvendo diversas culturas, esteve presente na criação consolidação do espaço urbano brasileiro, e muitas são as situações em que os fiéis repetem os cânticos em latim sem conhecer seu significado. Mesmo que os Jesuítas não tenham estado oficialmente presentes em Minas Gerais como ordem primeira, vale ressaltar esta condição referencial de sua atuação.

Os padres liam e interpretavam, à sua maneira, os ensinos sagrados. Nesse período, o que a Igreja pregava tinha peso igual ou maior ao que a Bíblia dizia. Dessa estratégia decorre um jogo de empoderamento do clero ao restringir, a determinadas classes intelectuais, o significado da “palavra”, restando àqueles que não conheciam latim, convencionarem ao seu modo as finalidades dessa língua, reforçando-a cada vez mais como sonoridade musical nas funções cerimoniais da Igreja. Leôncio Chagas foi um compositor- chave que criou traduções da semântica das partes fixas da missa em afetos contidos na

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Vale aqui ressaltar que embora seja emblemática a atuação dos Jesuítas, não houve presença e atuação “institucional” em Minas Gerais.

sonoridade do coro e orquestra, bem como participou de suas versões em vernáculo, como veremos adiante.

FIGURA 11 - Parte cavada24 Tenor primeira missa por Leôncio Francisco das Chagas

Fonte: Fac-símile digital da missa primeira de Leôncio Chagas CDO.27.046 C01

A música religiosa católica de todos os tempos tem se fundado na riqueza semântica e ontológica do seu calendário de textos litúrgicos e de festas específicas em termos de caráter, variantes de conteúdo e abrangência semântica, nas quais se verifica uma variedade exuberante de sequências textuais significativas; cada frase, no latim ou no vernáculo, é carregada de sentido denso e sugestivo que desafia a imaginação e a criatividade do compositor para explorar os recursos musicais disponíveis, parafrasear os textos, tratados com grande liberdade de temas no repertório literário religioso suscitando vasto campo de exploração para ideias musicais, tanto tópicas quanto para a grande sintaxe dos discursos (DUPRAT, 2012, p. 287).

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Partitura é a unidade documental que contém, superpostas, todas as vozes e instrumentos de uma determinada composição, enquanto parte cavada é a unidade documental que contém a música de uma determinada voz, instrumento ou naipe.

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Trata-se da visão em que o exercício do entendimento histórico é evocado do presente, com recortes que podem ser diferentes para as mesmas fontes, de acordo com o interesse de quem busca a escuta. Onde há performance, há educação musical.