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PARTE I O TEATRO DO ATOR, O TEATRO DE PESQUISA E A AÇÃO FÍSICA

CAPÍTULO 2 TEATRO DE PESQUISA

2.3 Experiências para um teatro com base no ator

2.3.1 Stanislávski

O primeiro e, sem dúvida alguma, o mais importante renovador das artes cênicas do século XX foi Constantin Stanislávski (1863-1938). Preocupado em criar uma nova forma de atuação capaz de materializar cenicamente a dramaturgia de “estados de alma” de Anton Tchekhov e de levar o ideal realista ao seu grau máximo de perfectibilidade, elabora, como observa Odete Aslan21, um sofisticado sistema de interpretação e criação

baseado na disciplina (como propunha as teorias dos Meininger), na naturalidade (segundo o exemplo dos atores italianos Salvini e Rossi), na sobriedade (segundo as ideias de Puschkin, Gogol e Ostrovski) e em uma ética de trabalho (a partir das convicções do co-diretor do Teatro de Arte de Moscou, Nemirovitch-Dantchenko).

Com sua teoria do ator, Stanislávski é o primeiro pesquisador a estabelecer um método preciso e elaborado para o trabalho do ator no século XX. Seu sistema se difundiu por toda a Europa a alcançou a América, de forma que se tornou a principal referência

para os renovadores teatrais que a ele sucederam. Neste sentido, pode ser considerado como o grande precursor do Teatro de Pesquisa no século XX.

Para fins didáticos, seu trabalho pode ser dividido em dois momentos: o “trabalho do ator sobre si mesmo” e o “trabalho do ator sobre a personagem”. Neste ponto vale notar que, como para Stanislávski o ator deveria construir o seu papel a partir de sua própria pessoa (procurando em sua biografia de vida uma situação equivalente à da personagem), o “trabalho sobre si mesmo” pode ser tomado como a condição básica para o “trabalho sobre a personagem”.

Como observa Renato Ferracini,

Se pensarmos que o ator cria a partir de si mesmo, então Stanislávski propõe um sistema que independe da estética naturalista ou realista. Na verdade, esse “sistema” proposto por Stanislávski refere- se a um nível pré-expressivo do ator e independe das escolhas poéticas e/ou estéticas do diretor. Pensando sem preconceito, não se trata de realismo ou naturalismo, mas de um processo indispensável para a natureza criadora, que é o corpo-mente- orgânico.22 Dessa forma, o ator torna-se independente da direção e

também, principalmente, dos ismos que tentam definir as várias estéticas. O ator passa a ser uma potência criadora em si23.

Para a criação deste corpo-mente-orgânico, Stanislávski elege inicialmente o “inconsciente” como fonte criativa do ator e elabora um sofisticado método de trabalho para ativar a “memória emotiva” do ator. Nesta fase, a ênfase recai sobre os “processos interiores” (o “se” mágico, as circunstâncias dadas, a imaginação, a concentração da atenção, os objetivos, a adaptação, a comunhão, a fé, o sentimento da verdade e o elemento mais importante deste momento: a memória emotiva).

Mais próximo do fim de sua vida, Stanislávski, talvez consciente de que o inconsciente fosse por demais abstrato para ser controlado de forma objetiva pelo ator, afasta-se dos estados emotivos como meio de expressão do ator e busca algo mais concreto para alicerçar o seu método. A “ação” passa então à frente do processo criativo do ator e seu foco de atenção é deslocado para os “processos exteriores” da criação, notadamente o ritmo e o impulso. Nesta segunda fase, passa a chamar a memória

22 Eugenio Barba e Nicola Savarese, A Arte Secreta do Ator: Dicionário de Antropologia Teatral. São Paulo:

Hucitec; Campinas: Editora da Unicamp, 1995. (Cf. nota do autor)

23 Renato Ferracini. A Arte de não Interpretar como Poesia Corpórea do Ator. São Paulo: FAPESP e Imprensa

emotiva de “memória corporal”, indicando claramente uma mudança de abordagem e de concepção sobre o trabalho do ator.

Outra importante contribuição de Stanislávski para o desenvolvimento da arte do ator e para a consolidação de seu ofício no século XX foi incorporar à rotina de trabalho do seu teatro um momento, independente dos ensaios, exclusivo para o “treinamento dos atores”. Durante anos, Stanislávski desenvolveu toda uma sofisticada pedagogia para formar e aprimorar tecnicamente o seu ator através de exercícios que o capacitavam para poder captar e transformar em corpo os impulsos mais sutis criados durante o trabalho de ensaio. Esta noção de que um ator não tem “talentos natos”, mas que desenvolve habilidades específicas quando treinado para tal, significará uma importante mudança de paradigma na formação do ator.

Foi também com Stanislávski que se consolidou a ideia da necessidade de se trabalhar com grupos estáveis, ou seja, com elencos fixos de atores e técnicos. Como observa Roubine, “mais uma vez, um fenômeno que pode parecer natural é, na verdade, o resultado de uma evolução histórica de primordial importância”24. Ainda sobre a

importância da contribuição de Stanislávski para a consolidação da noção “trabalho de grupo”, Grotowski observa que:

Quando falo de “companhia teatral” quero dizer teatro de ensemble, o trabalho a longo prazo de um grupo. Um trabalho que não é ligado de algum modo específico a concepções de vanguarda e que constitui a base do teatro profissional do nosso século, cujos inícios remontam ao final do século XIX. Mas também podemos dizer que foi Stanislávski que desenvolveu essa noção moderna de companhia como fundamento do trabalho profissional. Penso que começar por Stanislávski seja correto porque qualquer que seja a nossa orientação estética no âmbito do teatro, compreendemos de algum modo quem tenha sido Stanislávski. Não fazia teatro experimental ou de vanguarda; conduzia um trabalho sólido e sistemático sobre o ofício.25

Por fim, vale ressaltar, como observa Ferracini, suas contribuições para a consolidação de uma verdadeira arte do ator:

24 J.J.Roubine, idem, p.173

25 Jerzy Grotowski. In FLASZEN, Ludwik e POLLASTRELLI, Carla (orgs). O Teatro Laboratório de Jerzy

Grotowski 1959-1969. São Paulo: Perspectiva e SESC; Pontedera, It: Fundazione Pontedera Teatro, 2007,

Stanislávski buscou, no trabalho do ator, uma organicidade, uma vida e uma ética, colocando-o novamente em patamar privilegiado dentro de sua própria arte. Trabalhou baseado no texto, sim, mas também e, principalmente, preocupou-se em fazer com que o ator buscasse, dentro de si mesmo, as ferramentas necessárias para a articulação de sua própria arte.26