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3.2– Subsídios da literatura para o retrato do real e para a angolanidade: o caso de Pepetela

A ideia de que a literatura se resume apenas ao campo do fictício e da imaginação é uma noção incompleta. Apesar das personagens, de alguns lugares e dos acontecimentos que analisámos nas obras pepetelianas serem fictícios, não faz de Pepetela um autor desligado da realidade. A ficção romanesca pepeteliana está, como vimos, intimamente interrelacionada com a realidade, na medida em que o seu conteúdo e o seu reflexo fazem parte de um retrato corrosivo da sociedade angolana pós- revolucionária ou, no caso da fábula, um retrato pepeteliano do mundo moderno, narrando os caminhos sinuosos da Humanidade.

Pepetela não se limita atribuir ócios e defeitos de personalidade ou virtudes às suas personagens. O autor caracteriza-os, criticando-os, através de um olhar atento da sociedade angolana pós-independência e do Homem. Aliás, a própria formação de Pepetela permite esse olhar crítico de quem estuda, vigiando, o Homem e a sociedade. A formação de Pepetela em Sociologia ajudou-o aperceber e a analisar a importância das influências sociais, políticas, económicas no Homem: “Eu estudei Sociologia para ter instrumentos de análise da sociedade e poder basear a minha literatura nisso. Foi uma escolha consciente em que o objetivo último era a literatura. Portanto, contribui e muito. Alguns dizem que demasiado”416

.

Para os intelectuais “a denúncia da corrupção tornou-se uma necessidade imperiosa e foi ganhando expressão crescente”417

.Os livros pepetelianos estão comprometidos com uma realidade impossível de escapar ou conviver. Segundo Ana Maria Frade, Pepetela utiliza o instrumento que é literatura para acionar mecanismos críticos e retóricos como a utopia e a crítica irónica, denunciando e desmascarando a corrupção que move a sociedade decadente pós-colonial418. Como referido anteriormente, Horácio (66 a.C – 8 a.C), um poeta romano cuja obra é constituída por sátiras, odes e epístolas, escreveu que a literatura tem, para além do prazer, uma função

416

Cf. Anexo, Entrevista a Pepetela por Fernanda Castro, p.149.

417 FRADE, Ana Maria Duarte (2007), A Corrupção no Estado Pós-Colonial em África: duas visões

literárias, Porto: Edições Eletrónicas CEAUP – Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto in

http://www.africanos.eu/ceaup/uploads/EB002.pdf, p.16.

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didática: “Arrebata todos os sufrágios quem mistura o útil ao agradável, deleitando e ao mesmo tempo instruindo o leitor”419

. Da mesma opinião, Pepetela afirma que

“Sim, a literatura tem a obrigação de, pelo menos, dar umas pinceladas realistas da sociedade, na época em que se insere, para conhecimento dos leitores. Com isso, leva as pessoas a pensar nos problemas. Já a resolução dos problemas é da obrigação de outros sectores da sociedade, nem a literatura deve tentar entrar nessa onda. O escritor pode e deve apontar problemas, divulgar contradições, mas não tem de ser um actor social. Como cidadão poderá, mas que isso não afecte a sua obra como criador”420.

As obras de Pepetela coincidem em diversos aspetos temáticos com o da situação calamitosa do pós-guerra, a corrupção remanescente, a usurpação descarada a que o povo angolano e moçambicano é submetido, injustiça, desrespeito pelos valores tradicionais, etc. Neste contexto, consideramos as obras de Pepetela textos de autorreflexividade e de crítica perante uma ordem social real não desejada.

De acordo com a estudiosa Margarida Calafate Ribeiro, a literatura pós- independência reflete o descontentamento das elites intelectuais perante a situação política e apocalíptica dos seus países, na medida em que o governo, muitas vezes dominado por elites corruptas e oligárquicas, não contribuiu para o desenvolvimento e para a verdadeira libertação colonial421.

É neste sentido que Pepetela, um crítico social, contribui, decisivamente, para a construção do sentimento de angolanidade que se procura já antes da independência, tecendo severas críticas aos vícios da sociedade angolana responsáveis pela desilusão face a uma revolução desorganizada e fracassada. Para além disso, Pepetela escreve os silêncios e os ‘não-ditos’ da História oficial, através de estórias. Por conseguinte, as obras pepetelianas constituem contributos que saem dos escombros dos pós-guerras e que conciliam, de forma brilhante, a História com a ficção, (re)construindo uma nova Angola baseada na crítica dos costumes, na tentativa de criar sonhos utópicos, ainda que sejam, por agora, de impossível realização.

419

“Arte Poética: Epistula ad Pisones” in ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO (1997), A Poética

Clássica, São Paulo: Cultrix, p.65.

420 Cf. Anexo, Entrevista a Pepetela por Fernanda Castro, p.141.

421 (2004), Uma História de regressos: império, guerra colonial e pós-colonialismo, Porto: Edições

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A produção literária pepeteliana que estudámos caracteriza-se por um olhar sério, crítico e interventivo sobre a História e realidade angolana, recriando o que ficou por dizer da revolução. Os seus romances dessacralizam o continuum histórico de uma Angola-El Dorado pós-colonial, que a História conta educadamente. Vemos, indubitavelmente, Pepetela como um autor que subsidia a História de Angola com verdades estóricas e historiográficas que só a literatura é capaz de conceder através da sua miscigenação com a ficção.

Pepetela assume nas suas obras o papel de contador de estórias que busca incansavelmente a utopia, através da resistência à opressão. Estórias essas que contam uma diferente versão divergente da História, mas que não integram totalmente o campo da fantasia. Aliás, o leitor é confrontado ao longo das suas leituras com a quase certeza de que as estórias narradas têm um fundo de verdade, tendo dificuldade em distinguir a ficção e a realidade.

Arriscamo-nos a afirmar que a construção da angolanidade por Pepetela é brilhantemente realizada através da visão crítica implacável que estabelece com o contexto social, económico e político do seu próprio país. A tentativa de fazer das suas obras romances de tese exprime a vontade que o autor demonstra em moralizar os seus compatriotas, despertando-lhes a mentalidade, com o intuito de eliminar comportamentos parasitários pós-coloniais. A respeito da angolanidade Pepetela afirma que

“No fundo, todos procuramos isso. O que é isso? Um conceito abstrato. Tenho a impressão que ninguém sabe muito bem o que é. No fundo, não conseguimos até hoje teorizar, definir o que é isso de angolanidade. Isto, embora esteja patente na obra dos escritores angolanos, claro. Creio que é um conceito que se vai procurar ainda durante muito tempo.”422

Concluímos que Pepetela, como crítico social, utiliza a literatura como exercício pleno da sua cidadania, refletindo o que muitos não têm coragem de dizer: olhar criticamente para os sonhos libertários pré-coloniais que se despenharam com os seus mandatários, como Ícaros cadentes num céu estrelado chamado Angola.

422 apud CHAVES, Rita, MACEDO, Tânia (Org.), Portanto…Pepetela, 2002, Luanda, Edições Chá de

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