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CAPÍTULO 2: AS RAÍZES DA DEPENDÊNCIA E A QUESTÃO AGRÁRIA

2.4 Subsunção formal, dependência e superexploração

No “Capítulo VI inédito” (2000) Marx destrincha a essência da categoria trabalho e expõe o movimento dialético de vários processos superpostos, anárquicos, inerentes à realização da lei do valor. A meu ver, as categorias subsunção formal e subsunção real inerentes ao desenvolvimento histórico do modo de produção capitalista, dão substância à cooperação antagônica entre colônia e metrópole, origem do movimento dialético entre desenvolvimento-subdesenvolvimento.

Por subsunção formal, Marx entende o processo de “direta subordinação do processo de trabalho, qualquer que seja, tecnologicamente falando, a forma que se leve a cabo o capital”. Sobre a subsunção real do trabalho ao capital, o autor alemão defende que a mesma “se desenvolve em todas aquelas formas que produzem mais valia relativa, a diferença da absoluta” (MARX, 2000, p. 72).

Minha tese, neste item, é de que a subsunção formal foi a forma de ser originária do desenvolvimento do capitalismo dependente da América Latina, enquanto nas economias

161 centrais, metropolitanas, transitava rumo à subsunção real. A primeira atrela-se à produção de mais valia absoluta como processo de expansão do capital comercial e usurário para a transição da mercadoria-valor-dinheiro em capital e combina, a produção-apropriação do valor que resultará em acumulação de capital no território e nos demais países que lhe dominam (América Latina). A segunda representa a face transitiva do verbo explorar, organizada em estruturas e superestruturas com outras peculiaridades na lógica da extração/produção do valor centrada na preponderância, via capital industrial, da mais valia relativa (economias centrais).

A transição da subsunção formal à real nas economias centrais teve como condição

sine qua non a permanência da subsunção formal nas economias latino-americanas, nos períodos subsequentes em que deixa de ser subordinada politicamente, mas economicamente segue na dinâmica de produção dependente do valor. Reforço este ponto: nas economias coloniais, por sua peculiaridade subalterna e submissa aos mandos das metrópoles, a subsunção formal do trabalho vinculado à terra, tende a gestar um mesmo movimento que, após as independências, reforça o caráter desigual e combinado: a lógica de produção de valor centrada no trabalho escravo do africano e do sujeito originário compõe o sentido histórico- social (de conformação do capitalismo em geral e do capitalismo dependente em particular) da superexploração da força de trabalho na periferia e da exploração da força de trabalho nos centros.

A subsunção real narra o desenvolvimento de mecanismos inerentes à produção de valor centrada no avanço tecnológico em umas partes e no avanço sobre a propriedade privada da terra em outras. Ainda quando não abre mão da expropriação na forma da ampliação da jornada de trabalho a intensifica ao incorporar máquinas e equipamentos ao longo dos diversos processos produtivos que a compõem. Este processo é mediado, no período colonial latino-americano, pelos negócios comerciais-bancários via oceano Atlântico, movimento que organiza, gesta, desenvolve de maneira conjunta, contínua e desigual a produção-realização do valor.

Vale a pena reiterar o duplo movimento da cooperação antagônica manifesto neste ponto: 1) a subsunção real nos centros é o resultado histórico da lógica geral de produção em tempos e ritmos distintos do capital no âmbito mundial, logo, está diretamente conformada por subsunções formais em outras partes; e 2) a subsunção formal, em sua forma particular que se desdobrará no capitalismo dependente, cumpre a função interna de gestação da acumulação de capital e externa de transição para formas mais avançadas de extração de

162 valor. A história do capitalismo periférico narra ontem e hoje a história do capitalismo central e vice-versa.

Nas palavras do autor alemão (MARX, 2000):

A subsunção do processo de trabalho ao capital se opera sobre a base de um processo de trabalho pré-existente, anterior a esta subsunção sua no capital e configurado sobre a base de diversos processos de produção anteriores de outras condições de produção; o capital subsume determinado processo de trabalho existente, como por exemplo o trabalho artesanal ou o tipo de agricultura correspondente à pequena economia camponesa autônoma. Se nestes processos de trabalho tradicionais que ficaram sob a direção do capital se operam modificações, as mesmas somente podem ser consequência paulatina da previa subsunção de determinados processos de trabalho, tradicionais, no capital (Tradução própria). (MARX, 2000, p. 55)

A ocupação das “Índias Ocidentais”, como primeiramente os europeus denominaram a América, constituída por uma região central composta por aproximadamente 40 a 100 milhões de pessoas, segundo a utilização de autores maximalistas por Flamarion Cardoso (1985), e uma região sul pouco povoada, mas rica em terra, dão à América Latina uma centralidade na produção de valor muito maior do que Marx podia averiguar em seu tempo. A terra e o trabalho na América Latina, condicionados pela produção originária da forma valor, exprimem um conteúdo particular à categoria trabalho no continente e à subsunção formal.

A subsunção formal do trabalho na América Latina segue como a substância do desenvolvimento capitalista dependente e central. Corresponde no interior das economias do Continente a uma particularidade constitutiva-contínua, a tal ponto que, mesmo quando ocorra a industrialização, a agricultura e o trabalho vinculado a ela permanecem como a âncora do modelo de desenvolvimento desigual e combinado.

A continuidade da subsunção formal ao longo do desenvolvimento das forças produtivas no território latino-americano - a partir do século XIX no marco das independências - ao não deixar de existir, reveste de conteúdo o sentido do trabalho na invasão/conquista e imprime ao roubo da produção oriunda do trabalho do sujeito originário “livre” e do migrante africano escravo, particularidades históricas próprias (raízes) no sentido dado ao trabalho no capitalismo dependente - a superexploração. Forma especial do capitalismo dependente de um valor que se valoriza, sob a extração de sobretrabalho, em uma relação de composição dialética entre distintos mecanismos mundiais de exploração.

Os trabalhos - livre/escravo - do sujeito originário e do migrante forçado africano constituem uma natureza particular da subsunção formal no continente, submerso em uma

163 organização política e econômica externa em que a produção de mercadorias na América Latina tem como fim a circulação em outros territórios. A subsunção formal cinde, desde o nascimento da mercadoria e de seu embrião, o valor, os movimentos gerais de realização prévia do capital: a produção e a circulação.

Em outras palavras, o tempo-destempo da produção de mercadoria em geral conforma uma unidade dialética e complementar na transição da forma mais simples à mais ampliada do desenvolvimento particular do modo de produção capitalista. Nas economias metropolitanas a subsunção formal narra a pré-história do capitalismo, que se materializa como tal quando o movimento da subsunção real se materializa.

Na América Latina, a subsunção formal percorre caminhos distintos, mas que engendram a mesma gênese. Nesse continente, a subsunção formal foi/é responsável por compor a transição definitiva do modo de produção capitalista na Europa e definir a articulação via donatários de terra de uma herança colonial que não foi substituída até a chegada ao século XIX.

O monopólio absoluto da terra e do comércio, associado à expansão das fronteiras agrícolas, em que o trabalho livre ou escravo do índio juntamente com o trabalho escravo do africano, insere o dreno para a extração da riqueza, e sedimenta, ao mesmo tempo, as bases particulares de uma exploração peculiar – o trabalho assalariado livre - com tendência a lei universal. Reitera o autor (MARX, 2000):

Na subsunção formal do trabalho ao capital, a coerção que aponta à produção de mais valia [...] e à obtenção de tempo livre para o desenvolvimento com independência da produção material, essa coerção, dizíamos, recebe unicamente uma forma distinta da que tinha nos modos de produção anteriores, pois uma forma que acrescenta a continuidade e intensidade do trabalho, aumenta a produção, é mais propícia ao desenvolvimento das variações na capacidade do trabalho e com isso na diferenciação dos modos de trabalho e de aquisição e finalmente reduz a relação entre o possuidor das condições de trabalho e o trabalhador mesmo a uma simples relação de compra-venda ou relação monetária, eliminando da relação de exploração todas as excrescências patriarcais e políticas ou inclusive religiosas. Sem dúvida a relação de produção mesma gera uma nova relação de hegemonia e subordinação. (Tradução própria) (MARX, 2000, p. 62)

Esse é o ponto nevrálgico das particularidades históricas que compõem, na

cooperação antagônica, a totalidade da gestação do modo de produção capitalista nesses dois tipos de economias: metropolitanas europeias e coloniais latino-americanas. A servidão e o escravismo, na Europa do século XV ao XVIII, são substituídos por uma forma ainda mais expressiva, na violência que engendra, do conteúdo que submete o trabalho: o assalariamento

164 e a suposta liberdade. Na América Latina, a servidão e o escravismo, em composição com várias formas de trabalho compulsório, constituem uma particularidade dentro do movimento geral e não têm como base processos de produção feudais, pois se conectam de forma indissociável ao novo que se gesta, ultramar, com tendências universais. Nos termos de Marx (2000):

Quando a relação da hegemonia e subordinação substituem a escravidão, a servidão e a vassalagem, as formas patriarcais, etc., da subordinação, tão somente se opera uma mudança na forma. A forma se torna mais livre porque é agora de natureza meramente material, formalmente voluntaria, puramente econômica. (Tradução própria) (MARX, 2000, p. 65)

A subsunção formal na Europa relata a forma de um conteúdo presente-futuro (transição mercantil), a subsunção real. Na América Latina, a subsunção formal denota a essência da terra e do trabalho vinculado a ela ao longo do desenvolvimento do capitalismo dependente no período seguinte: a função de produção para a circulação externa e de compensação interna de um mecanismo de produção de valor que contrarreste o saqueio.

O sentido da subsunção formal na América Latina não é de transição, e sim de perpetuação. Neste continente, o fundamento da utilização da terra e do trabalho (escravo, livre e compulsório) vinculado a ela, redimensiona a subsunção formal como o sentido inerente ao desenvolvimento capitalista latino-americano.

O que está por trás da leitura sobre o conteúdo, padrão de desenvolvimento do modo de produção capitalista, é a ideia de liberdade. Como argumenta Marx (2000, p.68), “o trabalhador livre, efetivamente, como qualquer outro vendedor de mercadoria é responsável pela mercadoria que administra, e que deve administrar a certo nível de qualidade se não quer ceder o campo a outros vendedores de mercadorias do mesmo gênero”.

Na Europa, a subsunção formal é o retrato da transição rumo ao modo de produção capitalista, em que velhos-novos processos se mesclam frente a uma nova estrutura violentamente mais avançada que os processos anteriores: Mercadoria-Valor-Dinheiro-Capital (M-V-D-C). Na América Latina, a subsunção formal é o espelho do seu desenvolvimento dependente, desigual e combinado. A tal ponto que na dinâmica da produção agrícola do século XIX, é ela (a subsunção formal) a que conforma a particularidade do capitalismo dependente.

No “velho mundo”, a subsunção formal expõe a existência da mais-valia, mas ainda não de forma hegemônica, o que caracteriza a fase inicial do desenvolvimento capitalista. Os capitais, comercial e usurário, são porta-vozes da nascente lei do valor-trabalho. Na América

165 Latina, a subsunção formal compõe a história e permanência da superexploração da força de trabalho, categoria fundante do capitalismo dependente, ou da dependência na perspectiva marxista de análise sobre a América Latina.

Novamente pensando didaticamente em termos dos diferentes contextos do processo de gênese e desenvolvimento do capital na América Latina, no caso da centralidade do trabalho, temos:

1) Fase mercantil-colonial (XV-XVIII): a subsunção formal na Europa condiciona o trabalhador camponês a migrar rumo a outras estruturas produtivas ou a estender a jornada de trabalho no limite de seu esgotamento. Na América Latina, a subsunção formal nasce vinculada ao sentido mercantil do trabalho escravo do africano migrante, do trabalho livre do sujeito originário e se perpetua frente aos desdobramentos particulares do capital no continente.

2) Fase do capitalismo originário/tardio-transição para as independências na América Latina (XVIII-XIX): a subsunção formal transita para a subsunção real, forma explícita do conteúdo de extração de riqueza na era do capitalismo nas economias europeias e estadunidense. Na América Latina, a subsunção formal segue sendo hegemônica e dando a dinâmica da produção da riqueza a ser drenada para o exterior. As guerras de independências dão a tônica do nascimento posterior da dependência capitalista e a subsunção formal apresenta-se como a tônica do trabalho “livre” no continente cuja centralidade demarca sua função na divisão internacional do trabalho: economia exportadora.

3) Fase de transição ao capitalismo monopolista-nascimento do capitalismo dependente na América Latina (XIX-XX): Em que na Europa e nos Estados Unidos a subsunção real define nos marcos do tempo de trabalho socialmente necessário, a diferença entre trabalho qualificado e não qualificado e exprime ritmos mais intensos de exploração no âmbito mundial. Cabe destacar que esse período é marcado por guerras mundiais cuja compreensão sobre a ideia de “civilizatório” é explicitamente colocada em questão, tamanha a capacidade de destruição massiva aberta pelas revoluções tecnológicas.

Na América Latina, os Estados Nacionais52 são consolidados e o capitalismo dependente aparece na superfície das relações comerciais internacionais originado na essência da formação histórico social – na terra e no trabalho que a dimensionam - como o carro chefe do processo de produção de capital no continente. Sob o discurso da construção mundial da

52 Sobre o tema da constituição dos Estados nacionais na América Latina, vale a pena a leitura do texto de

Claudia Wasserman - “A formação do Estado nacional na América Latina: as emancipações políticas e o intricado ordenamento dos novos países” - na coletânea de artigos coordenada por ela sob o título: História da América Latina:Cinco Séculos, 1996.

166 paz, numa sociedade mediada pela guerra em nome da expansão do capital, consolidam-se e apresentam-se no âmbito internacional organismos multilaterais com aparente autonomia frente aos Estados das grandes potências hegemônicas como forma de organizar a política que dá vida, ao mesmo tempo em que é conformada pelo capital. Criados na derivação do discurso de paz do Pós Segunda Guerra Mundial, após os anos de 1950 apresentam-se como centro formal das decisões políticas, em um ambiente real de materialização do poder hegemônico do capital nas instituições (Organização das Nações Unidas, ONU; Fundo Monetário Internacional, FMI; Banco Mundial, BIRD), mas sua força potência decorreu de processos muito anteriores.

4) Fase do imperialismo contemporâneo – intensificação do capitalismo dependente na América Latina (1970 em diante): Após os anos dourados do capitalismo monopolista financeiro aberto pela sociedade do consumo em que a hegemonia capitalista atrela-se a três grandes potências com patamares distintos de produção e realização do valor entre elas – Estados Unidos, Japão e Alemanha -, a guerra por recursos naturais e minerais torna-se explicita com múltiplas determinações sobre o seu teor. No caso do Oriente Médio, a centralidade do petróleo define as lógicas de ocupação direta e indireta dos Estados Unidos no continente. Tema impossível de ser resolvido nos marcos da produção de mercadorias no capitalismo contemporâneo. O Oriente torna-se um inimigo real tamanho seu potencial histórico de contenção da ordem burguesa, para além de outros temas historicamente relevantes. Na América Latina, a economia industrial não substituiu a hegemonia da produção primário-exportadora centrada no latifúndio-monocultivo e a subsunção formal, ainda quando viu brotar a subsunção real oriunda dos processos de industrialização, não perdeu seu trono de potência hegemônica na produção de valor no continente. A superexploração da força de trabalho é composta por esses dois tipos inseparáveis de subsunção formal-real no continente.

Mas o que define, após as independências e constituições dos Estados Nacionais na América Latina (séculos XIX e XXI), uma questão agrária? Que questões estão abertas no decorrer histórico na forma-conteúdo do capital na América Latina, que validam o estudo da agricultura como um espaço-tempo concreto de produção de múltiplas e violentas contradições?

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2.5 A terra e o trabalho na América Latina: da subordinação colonial à dependência