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3 OS ARTESÃOS DE MOCÓS NOS DISCURSOS DE MODERNZAÇÃO EM

3.1 O SUCESSO DE MOCÓS SERIA O SUCESSO DA DITADURA MILITAR?

3.1.2 A SUDENE em Mocós

Conforme a Superintendência110 é possível saber que “quanto ao equipamento urbano,

de infraestrutura e social, Mocós situa-se entre as zonas mais carentes de Timbaúba, sendo seu nível sanitário e habitacional de baixíssimo padrão”. O bairro de Mocós foi alvo da atenção da SUDENE por ser um bairro economicamente promissor haja vista o fato de que era naquele bairro onde moravam os artesãos de redes e tapetes.

Conforme já abordei no capítulo anterior, em Mocós havia 210 famílias. Desse total, 71% dedicavam-se a atividades artesanais. A diferença de quatro meses entre a realização da pesquisa feita pela SUDENE e o início da implementação do seu projeto naquele bairro não parece suficiente para alterar de modo significativo os números.

A quantidade de artesãos do bairro de Mocós naquele ano foi suficiente para não passar despercebida pelo governo naquele momento econômico. A despeito, contudo, de quase todo um bairro ser composto por artesãos ativos e economicamente promissores, a SUDENE relata algumas carências entre eles e que, segundo a instituição, poderiam ser óbices à produção artesanal e, portanto, ao desenvolvimento da região.

Dentre as carências apontadas, citam-se aspectos sanitários do bairro, no qual, das 226 casas, apenas 59 estavam ligadas à rede do Departamento de Saneamento e Esgoto - DSE, enquanto as demais utilizavam água do chafariz, do rio e de um açude localizados próximo ao bairro. Além de que o aspecto sanitário domiciliar era “desalentador”, pois 52% das moradias não possuíam privadas e as que possuíam, “algumas constam de um cubículo precário com uma calha coletora interna inclinada que conduz os dejetos para as vias públicas”.

Notem a descrição que a artesã Maria José faz a esse aspecto:

Isso aqui era aveloz... Um pé de aveloz, arrodeado aqui. Não tinha essas casas. Aqui, o banheiro da minha casa mesmo que eu morava quando eu era solteira era um pilazinho assim (ela tenta representar com os braços) com uma boquinha; as fezes Dep. Recursos Humanos. 1970, P.9. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, setor de impressos e manuscritos.

109 Habitação e Desenvolvimento. Revista SUDENE Informa. 7 (set./out.) de 1969. p. 25-27 110 Projeto de Melhoria da Comunidade Artesanal de Mocós em Timbaúba – PE. Janeiro de 1969.

desciam por aqui... não tinha rua aqui não. Aqui era tudo mato. Só tinha essa “rua da palha” e essa rua daqui quando eu vim morar aqui. Não tinha essa rua só tinha essa “rua da palha” essa rua daqui desse mercadinho; descia e era umas escadinhas pra ir lá pra baixo. Os carros passavam por aqui não tinha essa pista; essa pista bem dizer é nova e era tudo casa de taipa. Era muito diferente, muito diferente. Mocós já era...só você vendo, era diferente; agora tá uma avenida de barão, mas só vendo como era. Oxe, meu pai criava bicho aqui nesse galpão. Aí quando eu era solteira, era uma cocheira; isso aqui era tudo bananeira que ele plantava. Era uma cocheira ele tinha cavalo, tinha burro, tinha cavalo, porco, ele tinha um chiqueiro aqui mesmo. E tudo desciam por aqui. Aí foi depois de casar... Aí aqui era uma valetinha estreitinha, as fezes desciam tudo por aqui oh... A salgadeira ali quando trabalhava, ninguém aguentava. Era... era... Você ficava doido. Agora parou, né? Mas o que matava Mocós era a salgadeira era muito fedor, viu? Muito fedor mesmo. O lixo jogava atrás do quintal mesmo. 111

Os produtores de redes naquele bairro viviam em situação de pobreza e péssimas condições de moradias. Infere-se que não havia políticas públicas municipais que pudessem oferecer àquela parcela da população da cidade condições básicas e dignas para a sobrevivência. O Projeto também menciona o problema de abastecimento de água, falta de coleta diária do lixo, além da promiscuidade “entre as moradias e instalações para animais”. A situação se tornava ainda mais caótica devido à presença de uma salgadeira de couro que ao utilizar “processos primitivos” liberava um cheiro desagradável e prejudicial para a saúde dos moradores.

O quadro da situação habitacional de Mocós apresentado pelo referido projeto e o quanto aquilo dificultava a produção artesanal, serviu de justificativa para a SUDENE com o financiamento feito pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID, traçar alguns objetivos a fim de promover a “integração econômico-social da população marginalizada no processo desenvolvimentista regional…” Essa “população marginalizada” a que o texto se refere são os protagonistas desta história.

A ação do Projeto visava a elevar o nível da “comunidade de Mocós” ao melhorar as condições sanitárias das moradias e do bairro e também ao aumento da produtividade do trabalho artesanal – “principalmente economicamente”.

Convém frisar que a implementação dessas melhorias não mirava dotar os artesãos imediatamente de “nível ótimo”, mas adotar uma “solução de melhoria progressiva”, pois esse projeto:

111 Entrevista realizada com Maria José da Silva. Realizada em Timbaúba em 14 de maio de 2019.Entrevistador: Janilton Gonçalves. Transcrição: Allany Freitas Souza.

trata-se de uma experiência de aplicação de métodos de ajuda financeira e técnica, utilizando a própria capacidade de ação da comunidade, que assim estimulada, participará ativamente na execução dos melhoramentos propostos por êste (sic) projeto… impedindo a ação de intermediários e possibilitando o exercício de uma profissão rentável capaz de recompensar todo o esforço dispendido.112

Conquanto a ação de melhoria proposta por aquele projeto concentrasse grande parte de suas medidas na infraestrutura do bairro e das moradias, foi na criação de uma cooperativa, “o órgão de promoção dos artesãos”, em que provavelmente a ação da SUDENE lograria alguma mudança na prática artesanal daqueles moradores. Embora não mencionado no

projeto, mas com base em outras leituras113, a cooperativa estaria vinculada ao Artesanato do

Nordeste S/A - ARTENE, uma sociedade de economia mista, subsidiária da SUDENE, que a partir da Resolução 381 de 4 de abril de 1962, se tornaria responsável por comercializar os produtos confeccionados nas cooperativas artesanais do Nordeste, ofertar assistência técnica e promover capacitação aos artesãos.

Na sua obra Serrinha, Waldemar Valente aborda rapidamente uma crise em torno da ARTENE e como isso impactou negativamente o desenvolvimento artesanal daquela pequena cidade até 1967. Ele também aborda que, segundo o chefe da Divisão de Artesanato, a qual fazia parte a ARTENE, o Dr. Edésio Rangel, a ARTENE estava em vias de desaparecer. Chegou a ser considerada fora dos propósitos da SUDENE. Fase essa superada, Waldemar Valente afirma que:

Dando curso ao seu novo programa de ação, que inclui o cooperativismo, a ARTENE começou a atuar, a partir de 1968, em moldes objetivos, na cidade de Serrinha, com a fundação de uma cooperativa artesanal... O sistema cooperativista compreende o financiamento, evitando, tanto quanto possível, o intermediário, com encomendas certas, com lucro razoável e depósito de 10% para o fundo cooperativista, para efeito de investimento e futura independência comercial.114 Com a nova política de cooperativismo da ARTENE, a produção artesanal do Nordeste e, portanto, do bairro de Mocós em Timbaúba, receberiam novo fôlego, incentivo e aprendizado de novas técnicas para se inserirem no desenvolvimento regional; assim, os objetivos de criação dessa cooperativa alterariam a lógica de produção e comercialização das redes. Previa-se tal fato a partir de alguns objetivos específicos do projeto dos quais três especificamente chamaram minha atenção:

112 Projeto de Melhoria da Comunidade Artesanal de Mocós em Timbaúba – PE. Janeiro de 1969. p. 8.

113 A revista SUDENE Informa e o Diário Oficial de Pernambuco publicados durante a década de 1970 fazem menção à relação entre a ARTENE e as cooperativas artesanais. Bastante elucidativo dessa relação é também a obra VALENTE, Waldemar. Serrinha. Aspectos Antropossociais de uma comunidade nordestina. Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Recife, 1971.

114 VALENTE, Waldemar. Serrinha. Aspectos Antropossociais de uma comunidade nordestina. Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais. Recife, 1971. p. 11.

3.2 – treinamento da diretoria em cursos específicos de artesanato e cooperativismo através da AR/CETRA (Centro de Treinamento Artesanal)

3.3 – treinamento de artesãos através de estágio na Oficina Modêlo e no Centro de Treinamento Artesanal

3.4 – introdução de novas técnicas, métodos e processos produtivos e diversificação da produção com assistência da AR/CENTRA115.

A leitura desses pontos destacados, ao mesmo tempo em que pode soar como a inauguração de uma nova era para os artesãos do bairro de Mocós em 1969, suscita ao historiador questões relativas ao desdobramento do encontro de diferentes saberes e diferentes técnicas. Ou seja, de um lado a proposta governamental em modernizar a produção de redes com “a introdução de novas técnicas, métodos e processos produtivos”; do outro, os artesãos, suas tradições artesanais e suas experiências com seus múltiplos signos e significações diversos.

Não posso me furtar a escrever a respeito da convergência de fomento financeiro de outras instituições direcionados à cooperativa que a SUDENE implementou em Mocós: a

Legião Brasileira de Assistência - LBA116, por meio do Departamento de Educação para o

Trabalho, assinou convênio com várias cooperativas de produção industrial e artesanal. Dentre essas, esteve inclusa a cooperativa de Mocós, a qual, segundo o texto, recebeu (-ria) recursos financeiros e materiais. Também nesse mesmo ano, o Banco Nacional de Crédito Cooperativo – BNCC, concedeu “fortes linhas de crédito”, à cooperativa de Mocós, bem

como a outras duas cooperativas.117

115 Projeto de Melhoria da Comunidade Artesanal de Mocós em Timbaúba – PE. Janeiro de 1969 p. 11.

116 Diário Oficial de Pernambuco, janeiro de 1969, p. 56. No que concerne ao LBA (Legião Brasileira de Assistência), ao leitor é possível se aprofundar em TORRES, Iraildes Caldas. As primeiras-damas e a

assistência social: relações de gênero e de poder. São Paulo: Cortez, 2002.

Figura 15 - Rua da Palha. A rua onde foi instalada a cooperativa.

Fonte: SUDENE, 1969.

Figura 17 - Esquema da cooperativa instalada em Mocós segundo o Projeto. (conclusão) Fonte: SUDENE, 1969. Lê-se: 1- Matéria-prima. 2- Escritório 3- Urdideira. 4- Apto. e Wc

5- Secagem dos Fios. 6- Pátio 7- Depósito 8- Acabamento e Espulas. 9- Teares manuais. 10- Teares Mecânicos. 11- Tingimento 12- Estufa 13- Homens. 14- Mulheres.

O nível da organização espacial da cooperativa proposto pelo esquema das páginas anteriores aproxima-se da sofisticação. Digo, os artesãos estavam habituados, conforme o Projeto, a trabalharem diariamente dentro de suas próprias residências, as quais a SUDENE

denomina “mocambos118”, isto é, casas materialmente pobres e, portanto, de poucos recursos.

Atentar-nos para a análise que Gilberto Freyre faz sobre a existência dos Mocambos no Brasil, força-nos a refletir sobre o abandono político ao qual os artesãos do bairro de Mocós foram colocados. Assim como os negros recém-libertos da escravidão, àqueles artesãos eram dispensados o desprezo político e as péssimas condições de habitação.

Isto posto, a oficina modelo sugerida não parece se adequar ao que os artesãos estavam acostumados ou, de que, urgentemente, eles necessitavam naquele momento. Não estou, contudo, alegando que a cooperativa implantada em Mocós em 1969 foi a materialização fiel do que estava no Projeto, entretanto, posso afirmar que os supostos teares mecânicos que o esquema sugere jamais foram inclusos na produção em Mocós, conforme o leitor perceberá no capítulo seguinte.

Ainda assim, questiono que recepção deram os artesãos a essa empreitada governamental de inseri-los no processo ao qual o poder vigente chamava de modernização do país. A compreensão dessa situação perpassa as imbricações do campo da memória dos artesãos, suas temporalidades e o discurso oficial,

pois uma das maiores potencialidades da metodologia da história oral refere-se ao seu caráter heterogêneo e essencialmente dinâmico de captação do que passou, segundo a visão de diferentes narradores. Trata-se de uma operação bastante complexa de produção de documentos, que envolve simultaneamente intersubjetividades e a busca de construção de evidências históricas.119

Nesse sentido utilizei como fontes os relatos dos artesãos sobre as rememorações de

suas experiências, confrontei-os com o discurso oficial para, assim, narrar como o cotidiano daqueles produtores de redes foi impactado a partir de 1969 com a implantação da cooperativa.

118 “Os mocambos de moradias a trabalho caracterizam-se por sua pequena estrutura que se apoia diretamente ao solo, sem qualquer baseamento, ao mesmo nível da rua. Nestas mesmas condições encontram-se quase todas as construções locais, salvo aquelas que envolvem a praça central.” Projeto de Melhoria da Comunidade Artesanal de Mocós em Timbaúba. P. 2. Sobre mocambos, Gilberto Freyre escreveu: “Também no interior, as senzalas foram diminuindo; e engrossando a população das palhoças, das cafuas ou dos mucambos: trabalhadores livres quase sem remédio, sem assistência e sem amparo das casas-grandes”. FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. São Paulo: Global, 2013. p. 169.

119 DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História Oral – Memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p.50.