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DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO: DA NEGAÇÃO DA PESSOA

54 cf SUESS, Paulo A Conquista Espiritual Op Cit, p.782 55 cf idem, Ibidem, p 692.

56 Provisão de Granada, de 17 de novembro de 1526, cf. Idem, Ibidem, p. 694. 57 HANKE. Humanidad es Una... Op. Cit., p.37.

Naquele mesmo ano, no Peru, por reagir ao Requerimiento de Francisco Pizarro (1474 -1541)58, o Inca Atahualpa (1502-1533) era preso e condenado à fogueira. Mas, ao aceitar o batismo, obteve o “benefício” da comutação de pena: morreria estrangulado59. Francisco de VITÓRIA (1492-1546), renomado jurista e professor da Universidade de Salamanca, comentando as guerras contra os Incas, teria declarado: “Yo no entiendo la justicia de esta guerra... En verdad, si los indios no son hombres e sino monos, non sunt capaces iniuriae”.60

A controvérsia sobre a capacidade dos índios chega então a Roma, e em 1537 Paulo III (1534-1549) edita a Bula Sublimis Deus declarando enfim a sua humanidade:

Os ditos índios e todos os demais povos que no futuro vierem ao conhecimento dos cristãos, embora vivam fora da fé de Cristo, não são nem deverão ser privados de liberdade e de propriedade de bens. Pelo contrário, podem livre e licitamente usar, possuir, e gozar de tal liberdade e propriedade, e não poderão ser reduzidos à escravidão (...). 61

Segundo SUESS as implicações da Bula seriam tão sérias para os interesses da Espanha no Novo Mundo, que a Coroa só precariamente a teria divulgado em seus domínios.

Aqui, um parêntesis na narrativa histórica. Ao discorrer sobre a importância do conceito de pessoa humana na modernidade, J. C. Moreira da SILVA FILHO observa que é “no marco da conquista da América”, diante da abundância das riquezas naturais encontradas e da discussão em torno do status dos índios, que se estabelece a ruptura com o paradigma anterior, que atribuía não apenas aos homens mas também a animais e objetos a condição de pessoa. Diz ainda o autor que:

Ao prevalecer a noção de que os índios eram homens, ainda que selvagens, vislumbra-se com clareza a idéia de que algo une todos os seres humanos e constitui a humanidade. Algo que vai além da identidade grupal, tribal ou comunitária (antigamente teto máximo da identidade dos indivíduos), e que esboça a pertença do indivíduo à espécie humana. A base teórica para esta afirmação se consolida na filosofia moderna, que dá uma feição secularizada ao universalismo cristão. Deste modo, percebe-se que a palavra pessoa aponta para uma verdadeira construção cultural e que, tal qual ela chegou

58 Vide Anexo A – Figura 2.

59 cf. SUESS, Paulo. A Conquista Espiritual… Op. Cit., p. 147-158. Vide Anexo A – Figura 3. 60 cf. HANKE, Humanidad es Una... Op. Cit., p.41.

aos dias presentes, indica muito mais do que apenas um ser biológico.62

(grifamos)

Retomemos o percurso histórico. Em 1542 e 1543, Carlos V promulgou as “Leyes

Nuevas” que reafirmavam a liberdade dos índios, proibiam que contra eles se fizessem

guerras, que se lhes impusesse trabalho gratuito, penoso, ou perigoso para a sua saúde, determinavam o respeito às suas propriedades e proteção às suas famílias. A posição dos índios como vassalos da Coroa Espanhola, e, portanto, como homens livres, foi afirmada por Carlos V em várias de suas passagens63. As Leis Novas acirraram mais ainda os debates sobre a questão da verdadeira natureza da capacidade dos índios.

As pressões contrárias às Leis, como era de esperar, foram imensas a exemplo dos depoimentos prestados à Junta Eclesiástica Mexicana (1544), que concluiu que sendo o trabalho forçado dos índios nas “a principal riqueza de que se sustentam os espanhóis”, sua abolição seria desastrosa para os interesses da Coroa, do clero e dos particulares.64

Com a oposição às Leis Novas intensificaram-se as pressões pela perpetuidade das encomiendas. As Leis Novas sucumbiram rapidamente às pressões, sendo revogadas em 1545. Mas o tema da capacidade indígena continuaria mobilizando as opiniões na metrópole, onde as duas posições possuíram, é claro, os seus representantes.

Para Antônio de VILLASANTE os índios não sabiam governar-se adequadamente. O explorador Lucas Vasques de AYLLÓN (1475-1526) concluiu que “seria melhor deixá-los servir aos espanhóis como escravos (‘hombres siervos’) do que permanecer como livres bestas (‘bestias libres’)”. O franciscano Juan de QUEVEDO (?- 1519) – 1.º bispo da América

62 SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Pessoa Humana e Boa-Fé Objetiva nas Relações Contratuais: a alteridade que emerge da ipseidade. In: COPETTI, SEVERO & STRECK, (Orgs.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito – 2005, n.º 2. Porto Alegre, Livraria do Advogado Ed., 2006. pp.116-117.

63 Leis e Ordenanças novamente feitas por S. M. para o Governo das Índias e o Bom Tratamento e Conservação dos Índios - Leyes Nuevas de 1542-1543, cf. SUESS, Paulo. A Conquista... Op. Cit., pp.727-741.

64 cf. SUESS, Paulo. A Conquista Espiritual... Op. Cit., pp.291-292, e HANKE, Lewis. El Prejuicio Racial en el Nuevo Mundo: Aristóteles y los Índios de Hispanoamérica. Colección America Nuestra. Santiago de Chile : Editorial Universitaria, 1958, p.43.

em Santa Maria de la Antigua, mencionando Aristóteles via os índios como “siervos a natura”, enquanto para o seu irmão de ordem Francisco RUIZ (1476-1528) – bispo de Ávila, eram sem capacidade “ni de juicio natural para recibir la fe, ni otras virtudes de criança necessárias para su conversión y salvación”, precisando, “así como um caballo o bestia, ser regidos e gubernados por cristianos”.65

O dominicano Tomás ORTIZ os descrevia como “estúpidos e tontos”, “incapazes de receber lições”, e “mais idiotas do que os asnos”66, enquanto o também dominicano Domingo de BETANZOS, polemizava ao afirmar em 1533 perante o Conselho das Índias, a incapacidade dos índios para aceitar a fé cristã e se autogovernar, e que estariam fadados ao desaparecimento. Por seu turno, o historiador Gonzalo OVIEDO Y VALDEZ (1478-1557) os via como “reduzidos ao nível do cavalo ou do asno (ou mesmo logo abaixo)”.67

Enquanto isso, alinhados à defesa da capacidade indígena e de sua natureza humana, e contrários ao seu cativeiro, continuava o próprio MONTESINOS que após o sermão de 1511 continuou suas atividades em defesa dos índios. Também o franciscano Jacobo de TESTERA que protestando em carta a Carlos V contra a atitude de Betanzos, pergunta: “cómo se sufre ser yncapaces con tanta sumptuosidad de edificios, con tanto primor en obrar de manos cosas subtiles, ... , arte em presidir, ..., suceciones por elección, punición de crímenes y excesos.” Igualmente reagindo a Betanzos o também franciscano Luis de FUENSALIDA (? – 1545) classificou a posição depreciativa do frei sobre os índios como “errorem intolerabilem”. O dominicano Antônio VALDIVIESO (?-1550) – bispo de León Viejo (Nicarágua), por suas posições contra a escravização e massacres dos índios acabou sendo assassinado pelo filho do governador da Nicarágua. Juan del VALLE (? – 1562) – formado em Ius Civilis na Universidade de Salamanca e Bispo de Popayan (Colômbia), pelos mesmos motivos teve