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Não disse que o autor não existia; eu não disse e estou surpreso que meu discurso tenha sido usado para um tal contra-senso (FOUCAULT, 2001, p. 294).

A epígrafe que abre nossa reflexão sobre o autor é um recorte da fala de Foucault quando, após uma palestra proferida em 22 de Fevereiro de 1969, na Sociedade Francesa de Filosofia, ele, o palestrante, rebate a não compreensão do que havia dito sobre o tema da referida palestra: o autor. Foucault (2001) toma como equívoco grave o fato de a plateia ter entendido que ele estaria negando a existência do autor real. Pelo que se vê de sua conferência, publicada em formato de entrevista sobre o título “O que é o autor? (FOUCAULT, 2001)”, o pensador francês não nega – e isso seria, como ele diz, um contrassenso – a existência do escrevente, o que ele faz pensar é a existência imanente de uma função discursiva que age sobre o escrevente no ato escrita; ele faz pensar a existência do sujeito-autor, uma posição discursiva que é ocupada pelo indivíduo que escreve. Ratificando sua concepção do que seja o autor, Foucault (2001, p. 287) defende que se faça uma distinção:

Não mais colocar a questão: como liberdade de um sujeito poder se inserir na consistência das coisas e lhes dar sentido, como ela pode animar, no interior, as regras de uma linguagem e manifestar assim pretensões que lhes são próprias? Mas antes colocar essas questões: como, segundo que condições e sob que formas algumas coisas como um sujeito pode aparecer na ordem dos discursos? Que lugar ele pode ocupar em cada tipo de discurso, que funções exercer, e obedecendo a que regras? Trata-se, em suma, de retirar do sujeito (ou do seu substituto) seu papel de fundamento originário, e de analisá-lo como uma função variável e complexa do discurso.

A partir dessa distinção, o autor é então concebido como uma função do discurso, isto é, como uma das possibilidades de acontecimento do discurso que pode se metamorfosear em várias funções – formas discursivas: sujeito-professor, sujeito-religioso. Na causa defendida por Michael Foucault (2008, p. 26), o autor é entendido como “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência”. Nesse aspecto, o sujeito-autor é tomado como um dos mecanismos de controle do discurso.

O que talvez tenha levado a plateia de Foucault a interpretar que o sujeito real não existiria foi o fato de Foucault falar de uma das propriedades da escrita que, segundo ele, tende a apagar o autor real. Segundo o autor de “A ordem do Discurso”, a escrita não é um mero lugar da mecanicidade de organização de códigos linguísticos, é, ao contrário, um espaço da linguagem onde o efeito simbólico conduz o escrevente a adentrar na dimensão da funcionalidade do discurso. Nessa ótica, o autor real assume uma posição discursiva que por natureza é heterogênea e dinâmica – o sujeito transita entre as formações discursivas. Isso significando que desta posição o que se produz está atrelado às condições de produção que permitem um dizer e não outro. Para Foucault (2001, p. 268) “na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever; (...) trata-se da abertura de um espaço onde o sujeito que escreve não para de desaparecer”. Pela via teórica que estamos tratando em nossa pesquisa, sabemos que esse apagamento não é o ponto negativo da questão da relação do sujeito com a linguagem; bem ao contrário, é um evento de linguagem necessário para que o sujeito se coloque, para que produza discursos. É preciso que ele se veja como origem do que diz para poder dizer, é preciso que algo seja apagado – a sujeição do sujeito às condições de produção – para que o discurso retome como “novo”. “Em resumo: o apagamento faz parte das condições de produção do sujeito” (ORLANDI, 2012, p. 104).

No texto de sua conferência, Foucault esclarece que a noção de autor, como mecanismo de regulação do discurso, foi importante para a organização e validação dos saberes literários, filosóficos e científicos. A presença do autor para a validação de saberes já mostra um caráter específico do autor na visão de Foucault: a obrigatoriedade do autor em alguns discursos (literários, científicos), e em outros não. Esclarecendo a questão, o filósofo

francês afirma: “existem, ao nosso redor, muitos discursos que circulam, sem receber seu sentido ou sua eficácia de um autor ao qual seriam atribuídos: conversas cotidianas, logo apagadas; decretos ou contratos.” (FOUCAULT, 2008, p. 26). Ao contrário desses discursos sem autoria, os autorais possuem esse atributo porque circulam na ordem discursiva do jurídico institucional. Nessa ordem, a função-autor responde a uma demanda de funcionamento que se baseia na produção e na manutenção de “verdades”. Exemplos disso são as pesquisas acadêmicas que precisam estar abalizadas no cânone teórico disponível nos mais diferentes campos do saber.

Para Foucault (2001):

a função-autor não se exerce uniformemente e da mesma maneira sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; ela não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; ela não remete pura e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias posições- sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar (FOUCAULT, 2001, p. 279).

O discurso, na ótica de Foucault, não é um simples ato pragmático de linguagem, mas um produtor e canalizador de vontades de verdade. Um exemplo desse caráter constitutivo do discurso para a construção de “verdade” pode ser visto no bordão popular “a mulher é a rainha do lar”. Nesse texto, a titularidade dada à mulher – rainha – parece enobrecer seu papel na relação familiar. Todavia, por um olhar discursivo, rainha faz emergir a memória discursiva da mulher do período medieval que vivia sob a tutela de um discurso religioso cuja máxima era ratificar a vontade de verdade de que a mulher deveria ser submissa ao seu marido e cuidadora zelosa do seu lar. Desta feita, a expressão “a mulher é a rainha do lar”, resgata um regime de poder que determina os papéis sociais dicotômicos entre homens e mulheres. Uma dicotomia que beneficia o homem – sujeito provedor, da vida pública –, e limita a ascensão feminina – sujeito provido, da vida privada. Esse discurso patriarcal, que se faz presente na expressão “mulher é a rainha do lar” quase sempre reaparece nas práticas discursivas midiáticas. Isso evidencia uma solidificação, uma repetibilidade, desse discurso que, aceito no senso comum, não é percebido como uma ameaça direta à mulher, embora o seja no campo do simbólico. Bem ao contrário das músicas de protesto do regime militar no Brasil que muitas vezes tiveram que ser metamorfoseadas para serem publicadas. Nesse ponto, o discurso presente nas letras de Geraldo Vandré era tido pelo regime político como algo perigoso que precisava ser vigiado, controlado. Como exemplo desse discurso vigiado, apresentamos um trecho da música “Para não dizer que não falei das flores”:

Caminhando e cantando e seguindo a canção Somos todos iguais braços dados ou não Nas escolas, nas ruas, campos, construções Caminhando e cantando e seguindo a canção Vem, vamos embora, que esperar não é saber, Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

As sociedades, segundo Foucault, criaram um sistema de monitoramento e gerenciamento dos discursos. Segundo a obra “A ordem do Discurso” (FOUCAULT, 2008), há mecanismos externos (interdição, segregação, vontade de verdade) e internos (comentário, autor, disciplina) de controle do discurso. No caso da função autor, o gerenciamento do discurso se dá pelo caráter aglutinador e unificador do autor que é compreendido como lugar de uniformização do discurso. Negando essa soberania do autor, Foucault (2001, p. 288) afirma que ele “não é uma fonte infinita de significações que viriam preencher a obra, o autor não precede às obras. Ele é um certo princípio funcional pelo qual, em nossa cultura, delimita- se, exclui-se ou seleciona-se”. Como princípio funcional, “o nome do autor não é, pois, exatamente um nome próprio como os outros” (FOUCAULT, 2001, p. 273). Há uma carga de significado, de “vontades de verdade”, de validação no nome de um autor. É esse caráter validador que coloca o autor como um dos mecanismos de controle do discurso.

Como já apontamos, o controle do discurso se dá porque há nele um princípio de desconforto, de desestabilização do estado posto como estável, verdadeiro e ordenado. Refletindo sobre esse caráter do discurso, Foucault (2001, p. 275) diz que “o discurso foi historicamente um gesto carregado de riscos antes de ser um bem extraído de um circuito de propriedades”. O autor surge em meio a essa órbita de perigo do discurso. Dizer é sempre algo perigoso porque sempre há uma ordem à qual o discurso terá que se adequar, caso contrário, ser-lhe-á negada a publicação. A essa relação de causa e efeito entre dizer o que se quer e ser punido por isso, Foucault (2008) dá o nome de apropriação penal. Sobre esse aspecto da censura do discurso, Chartier (2009, p. 23) afirma:

a cultura escrita é inseparável dos gestos violentos que a reprimem. Antes mesmo que fosse reconhecido o direito do autor sobre sua obra, a primeira afirmação de usa identidade esteve ligada à censura e à interdição dos textos tidos como subversivos pelas autoridades religiosas ou políticas.

Esse rito do silenciamento da palavra desautorizada foi tomando corpo no rumo da história. Segundo Chartier (2009), no século XVI surgiu a primeira sistematização alfabética dos autores considerados subversivos para a igreja. Essa observância sobre o discurso de ameaça ficou mais evidente quando no final do século XVIII e início do XIX foi instaurado, segundo Foucault (2001, p. 275), “um regime de propriedade para os textos, quando se

editoram regras estritas sobre os direitos do autor, sobre as relações autores editores, sobre os direitos de reprodução”.

Essas novas práticas discursivas colocaram o autor como um lugar institucional passivo de regulação e controle. Outra evidência do controle do discurso pode ser vista na história recente do Brasil; especificamente, no período da ditadura militar que instaurou uma série de arbitrariedades, como se pode ver no trecho da lei n.1.077/70.

Art. 1° Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação;

Art. 2° Caberá ao Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal verificar, quando julgar necessário, antes da divulgação de livros e periódicos, a existência de matéria infringente da proibição enunciada no artigo anterior.

Art. 3° Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares. [...] Art. 5° A distribuição, venda ou exposição de livros e periódicos que não hajam sido liberados ou que tenham sido proibidos, após a verificação prevista neste Decreto-lei, sujeita os infratores, independentemente da responsabilidade criminal.

A citação acima nos dá uma amostra do que Foucault compreende como mecanismos de controle do discurso. No caso do período da ditadura, havia os departamentos de censura que viraram verdadeiros caçadores de discurso tidos como subversivos.

Pelo até agora visto, o autor, na ótica de Foucault não pode se limitar ao sujeito- escrevente porque ele – o autor – é, antes de tudo, uma função discursiva que organiza e valida, sob um regime de poder, de saber e de vontades de verdade. Em outras palavras, há mais responsabilidade sobre o sujeito-autor do que se possa imaginar. Todavia, não estamos aqui negando a existência do indivíduo escrevente, mas colocando-o como aquele que ocupa lugares discursivos que o tornam ora sujeito-leitor, ora sujeito-autor.

Nesse aspecto do sujeito-autor, é relevante a reflexão de Orlandi (2012) sobre a responsabilidade da escola no que diz respeito a criar as condições de produção para que o estudante passe da condição de enunciador para a de autor. Para Orlandi (2012), o professor deve compreender o autor como um papel social que precisa ser vivenciado pelo aluno, isto é, o aluno precisa ser orientado quanto à natureza do ser-autor, com todas as suas exigências “coerência, respeito aos padrões estabelecidos, tanto quanto à forma do discurso como às formas gramaticais; clareza; conhecimento das regras textuais; originalidade (...) “unidade”, “não contradição”, “progressão”, e “duração do discurso”” (ORLANDI, 2012, p. 105).

Uma vez compreendido, por parte do professor e do aluno, esse caráter pragmático do autor, o que se espera é que ele – professor – ofereça ao aluno as condições para que ele possa

representar o papel de quem, assumindo um lugar discursivo – a função-autor – possa fazer um competente uso da língua nos seus mais diversos gêneros. Ratificando esse papel da escola no que diz respeito ao desenvolvimento da modalidade escrita do aluno, Orlandi (Id., p.106) afirma: “aprender a se colocar (...) como autor é assumir, diante da instituição-escola e fora dela (nas outras instâncias sociais), esse papel social, na sua relação com a linguagem: constituir-se e mostrar-se autor”. É a partir dessa reflexão sobre a assunção do autor por parte do aluno que, ainda pensando o papel da escola, adentramos no nosso último tema do tópico de leitura: a formação do leitor.