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O sujeito e sua interdependência do contexto social: contribuições de Vigotski e seus seguidores

2. O SUJEITO E O (RE)ENCONTRO COM OS SEUS TEMPOS E ESPAÇOS DE FORMAÇÃO

2.1 O sujeito e sua interdependência do contexto social: contribuições de Vigotski e seus seguidores

Vigotski (1896-1934) foi o primeiro psicólogo, entre os modernos, a olhar os meios pelos quais a cultura constitui-se como parte da natureza da pessoa, relacionando a história com a natureza, o externo com o interno no desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Ao estudar a memória e o pensamento Vigotski propôs uma psicologia que dialoga com a filosofia marxista, traçou analogias, sinalizou a interação mediada por signos, exercitou um método de trabalho voltado para os processos e não a produtos, priorizou a explicação em detrimento da descrição, minimizando a percepção de linearidade histórica, pois sempre considerou a dinâmica presente nos processos sociais e individuais. As bases norteadoras de seu pensamento englobam desde as funções psicológicas com suporte biológico, produtos da atividade cerebral, até as funções psicológicas pautadas pelas relações sociais que se desenvolvem em um processo histórico, pois as funções psicológicas não são descontextualizadas, abstratas, mas sim perpassadas pela mediação a partir do uso de sistemas simbólicos.

Nas discussões sobre os domínios entre a memória e o pensamento Vigotski definiu dois tipos de memória, que são: a memória natural – “surge como consequência da influência direta dos estímulos externos sobre os seres humanos” (VIGOTSKI, 2007, p. 32) e é dependente direta do ambiente que envolve o sujeito; e a memória indireta – mediada por signos, estímulos artificiais, ou autogerados “que se tornam a causa imediata do comportamento” (Ib., p. 33). O signo na psicologia vigotiskiana é um estímulo externo

51 construído socialmente pela comunidade e culturalmente aceito; a linguagem utilizada pelos sujeitos e suas comunidades são signos sociais comuns em seu interior e são incrementados por novos sentidos produzidos pelos sujeitos que a compõe. Admitindo que o processo de aprendizagem é não linear, que a passagem entre estímulo (língua, escrita) – signo (linguagem, modos específicos de cada comunidade) – resposta é mediado pelo signo, este pode ser considerado como um mediador de resposta, pois

[...] na medida em que esse estímulo auxiliar possui a função específica de ação reversa [sai do estímulo, passa pelo signo e volta ao estímulo], ele confere à operação psicológica formas qualitativamente novas e superiores, permitindo aos seres humanos, com o auxílio de estímulos extrínsecos, controlar seu próprio comportamento. O uso de signos conduz os seres humanos a uma estrutura específica de comportamento que se destaca do desenvolvimento biológico e cria novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura (VIGOTSKI, 2007, p. 34).

Em um certo momento do processo de desenvolvimento da relação pensamento e linguagem na infância os signos são internalizados de modo que o contato com os estímulos acontece de forma sutil, velada, socialmente natural, o que não elimina a interação indireta (mediada) entre estímulo-signo-resposta, haja vista que “a verdadeira essência da memória humana está no fato de os seres humanos serem capazes de lembrar ativamente com a ajuda de signos” (Id., p. 50).

Importa sinalizar que o signo não pode ser reduzido ou igualado ao instrumento de acepção marxista. Para Vigotski “a analogia básica entre signo e instrumento repousa na função mediadora que os caracteriza” (Id., p. 53), pois o instrumento altera os objetos aos quais é direcionado, é orientado externamente, deve em sua essência levar mudanças aos objetos; já o signo não muda em nada o objeto psicológico, ele “constitui um meio da atividade interna dirigido para o controle do próprio indivíduo; o signo é orientado internamente (Ib., p. 55)”. O uso de signos nas relações mediadas é fundamental para o desenvolvimento das funções18 psicológicas superiores, voluntárias, controladas pelo próprio indivíduo.

Os signos são observados por Vigotski como “instrumentos psicológicos” que

18- Há diferentes traduções para функции (funções), como: funções psicológicas superiores (Wertsch, 1995), atividades psicológicas superiores (Oliveira, 1997), processos psicológicos superiores (Baquero, 1996, 1998), funções psíquicas superiores (Bezerra, 2010). No presente texto utilizo o termo “funções psicológicas superiores” seguindo a forma utilizada no quarto capítulo (Internalização das funções psicológicas superiores) da seguinte tradução: VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores; organizadores Michael Cole... [et al]; tradução José Cipolla Neto, Luis Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. – 7° ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007.

52 auxiliam os processos de mediação ao longo de todo o desenvolvimento do indivíduo, e quando organizados em estruturas complexas formam os sistemas simbólicos. Deve-se considerar que as relações com os signos mudam de acordo com o desenvolvimento do sujeito. Se inicialmente os signos são marcas externas, objetos, varetas para contar, palavras associadas aos objetos, no decorrer do desenvolvimento humano estes perdem a referência material/objeto, constituindo o processo de internalização dos signos a partir de representações mentais dos objetos; a internalização, na percepção de Wertsch (1995), é o processo de controle dos signos externo.

Essa capacidade de lidar com representações que substituem o próprio real é que possibilita ao homem libertar-se do espaço e do tempo presentes, fazer relações mentais na ausência das próprias coisas, imaginar, fazer planos e intenções. ... essas possibilidades de operação mental não constituem uma relação direta com o mundo real fisicamente presente; a relação é mediada pelos signos internalizados que representam os elementos do mundo, libertando o homem da necessidade de interação concreta com os objetos de seu pensamento (OLIVEIRA, 1997, p 35).

De acordo com Oliveira (1997) e dentre a infinidade de signos e de representações da realidade que há em nosso cotidiano a linguagem é a mais elementar; é o “sistema simbólico básico” e atravessa todas as fases do desenvolvimento humano. Vigotski atribui duas funções principais à linguagem, a de intercâmbio social e a de pensamento generalizante; esta se destaca porque transforma a linguagem em instrumento do pensamento e também tem função organizativa do social, agrupa objetos e situações em grupos conceituais que possibilitam a percepção geral e simplificada do real. A linguagem e pensamento não se desenvolvem juntas; seu desenvolvimento acontece de forma dissociada ao longo do desenvolvimento filogenético humano, e na dimensão ontogenética a união acontece quando o pensamento se torna verbal e a linguagem racional desenvolvendo as funções psicológicas superiores. O que promove a síntese de sujeito biológico a sujeito sóciohistórico.

A relação entre o pensamento verbal e a linguagem racional – cuja representação real é a palavra –, é fundamental para compreendermos a produção de sentidos que permeiam nosso cotidiano, pois juntamente com a palavra há o significado. Vigotski a partir dos trabalhos de Paulham acerca da semântica da linguagem, distingue sentido de significado, sendo que

[...] o sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa consciência. Assim, o sentido é sempre uma

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formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas de sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata. Como se sabe, em contextos diferentes a palavra muda facilmente seu sentido. O significado, ao contrário, é um ponto imóvel e imutável que permanece estável em todas as mudanças de sentido da palavra em diferentes contextos (VIGOTSKI, 2009, p. 465).

Nesta acepção, o sentido de uma palavra tem maior potência interna no pensamento que o seu significado. O significado medeia a relação pensamento e palavra, mostrando que o caminho percorrido pelo pensamento é indireto, não sendo o pensamento uma tradução de situações em palavras, mas sim uma complexa rede de produção de sentidos que começa do externo (situações reais) para o interno (sentidos) e ao retornar ao externo passa pelo filtro dos significados (mediação). Para Baquero (1998, p. 62) “o sentido da palavra é instável, mutante de acordo com os contextos em que o termo em questão se situe”, já o significado “alude ao uso convencional”, expressão convencionada que possibilita a descontextualização dos instrumentos de mediação (palavra). A partir desta percepção é possível atribuir ao significado uma função generalizante e ao sentido uma função de retomada ao contexto espaço-temporal que suscitou o uso inicial.

Para Vigotski (2007) o enriquecimento das palavras a partir dos múltiplos sentidos atribuídos pelo contexto é a lei fundamental da dinâmica dos significados das palavras. Nesta perspectiva, a palavra absorve e incorpora todo o contexto com a qual está envolvida incluindo seus conteúdos intelectuais e afetivos. E é nessa direção que o autor afirma que o pensamento nunca é igual ao significado direto das palavras e que para conhecê-lo, precisa-se descobrir o que o fez nascer, o que orientou seu fluxo ou seja suas motivações, que Vigotski compreende como sua causa profunda afetivo-volitiva.

Parcialmente ilustrada a relação entre sistemas simbólicos sociais, institucionais, culturais, formativos e os sujeitos, proponho pensarmos a intersecção entre as marcas significativas de formação presentes nas histórias de formação – aqui iniciado com a minha história, e a seguir dialogando com a questão dos ensinamentos implícitos discutidos por Philip W. Jackson. Para Jackson (1999) a nossa formação profissional não está restrita aos elementos formativos nítidos ao processo, como conteúdo científico, pedagógico, formas de avaliação, etc., mas extrapola este espaço-tempo reconhecido social e institucionalmente, chegando a um conhecimento implícito, que deixa marcas indeléveis em nossa atuação profissional, na construção de nossa subjetividade, de modo que

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[...] en la raiz de mi incertidumbre sobre como interpretar mi persistente recuerdo de la señora Henzi19 y los sentimentos mesclados que lo

acompañan, subyace la profunda sospecha de que lo que aprendíamos em su classe no se limitaba en modo alguno al álgebra. Al mismo tiempo, sin embargo, como ya lo reconoci, no puedo describir ese aprendizaje adicional (si es que se lo puede llamar así), del mismo modo en que puedo describir mi conocimiento de álgebra, como tampouco puedo afirmar con seguridad que em realidade existió (Id., p. 4).

Seguindo os caminhos incertos do rememorar admitidos por Philip Jackson percebo que se hoje escrevo sobre a minha formação e tento estudá-la em diálogo com outras experiências de formação e teorias é porque a ‘aprendizagem adicional’ foi a de fazer pesquisa. Interessante, que em nenhum momento essa vontade me causou estranheza ou mesmo vontade de desistir – tanto que voltei para o curso de Mestrado em Educação, mas ainda não voltei para a Educação Básica –. Muitos podem considerar que é questão de orgulho, mas não é isso (na Educação Básica eu tinha salário e só ficava na escola durante 3 manhãs no decorrer da semana e o valor do salário era maior que o da bolsa de mestrado), é mais uma questão do que eu sei que consigo fazer e também porque gosto.

Outro detalhe interessante é quando escrevo no primeiro capítulo... eram três dias da semana, segunda, quarta e sexta, cada manhã em uma escola... dois tempos de aula para rever os alunos, conversar com eles sobre avaliação, conteúdo, sobre a vida, escutar suas experiências com professores de Física antigos, escutar que não sabiam nada de Física e que era difícil, responder sobre o que fiz no cabelo, onde comprei a sandália nova, se tinha namorado, se eu ia participar da semana cultural, etc. e fazer a chamada de cinquenta e cinco nomes, pulando vários devido à ausência informada pelos alunos... quando eu chegava à Física, eu só tinha um tempo de aula, e aí era tudo corrido. Não consegui encontrar o equilíbrio e se encontrei não percebi... Por que esse tempo inicial sem conteúdo de física me causou estranheza? Fazia anos (desde o Ensino Médio que ele não acontecia). Os alunos criaram e construíram esse tempo e eu vivi tentando substituir esse constructo com a física... não teve equilíbrio, pois eu tentava fazer ali o que tinha vivido: dar aula expositiva de física, independente de quem estivesse ali. Os tempos eram para a aula de física e ela não acontecia nos dois tempos, ficando a sensação de que a docência era tentar e não conseguir. Percebo que a professora que sou é uma composição de outros professores e também de outros modos de ser professor; é na interação entre

19- Professora de álgebra de Philip Jackson.

55 sujeitos e espaços de formação que nos tornamos os profissionais que somos. Mas, quais profissionais? Em quais espaços somos esses profissionais? Os sentidos implícitos que perpassam a minha formação são produzidos por essa permanente mediação entre e com os contextos sociais, institucionais, familiares que me atravessam, sendo a constituição da docente que sou uma construção historicamente construída e aberta a reflexão/ alteração.

Assumindo os imbricamentos entre o eu, o social e o institucional nos processos de formação que vivemos, manifesta-se de forma concomitante a necessidade de ampliarmos o olhar sobre essa construção lapidável pelos espaços-tempos que passamos; os traços do imbricar são latentes ao nosso cotidiano e para enxergamos estes é necessário olharmos para o nós que fomos e somos, é revisitar as nossas histórias de vida. Uma forma – moderna – de fazer este retorno, considerando o contexto das pesquisas qualitativas, em especial as pesquisas educacionais cuja temática é formação de adultos, é via o diálogo com as abordagens (auto)biográficas; estas, que ora são chamadas de investigação (auto)biográfica, ora de pesquisa narrativa, outras reconhecidas como histórias de vida. A diversidade é seu núcleo e por isso procuro no próximo item conhecer ele melhor...

2.2 O método (auto)biográfico e as histórias de vida: novos olhares para a formação