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Capítulo 3 SUJEITO/USUÁRIO: A BUSCA DA IDENTIDADE NA MODERNIDADE

3.2 Sujeito e poder

Diante de um sujeito descentralizado/deslocado na modernidade tardia a partir de um ponto de vista do que a sociedade e a cultura consideram o centro, Hall

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trabalha com cinco pontos de descentramento do sujeito. Todos igualmente importantes para linha de pensamento que ele desenvolve, e neste caso, destaca-se um deles que dialoga mais de perto com esta pesquisa que é o sujeito moderno descentrado a partir do que Michel Foucault chama de “poder disciplinar” que se desenvolve no século 19 quando da formação também do Observador, e atinge um ápice no século 20 em que o Espectador se formará. Mesmo que Foucault não tenha conhecido os Usuários, o poder sobre um Sujeito se estende durante o século 21.

O poder disciplinar ao qual Foucault se refere

“está preocupado, em primeiro lugar, com a regulação, a vigilância é o governo da espécie humana ou de populações inteiras e, em segundo lugar, do indivíduo e do corpo. Seus locais são aquelas novas instituições que se desenvolveram ao longo do século XIX e que "policiam" e disciplinam as populações modernas — oficinas, quartéis, escolas, prisões, hospitais, clínicas e assim por diante”. (HALL, 1992. P. 42)

A manutenção das atividades socioeconômicas, incluindo também as subjetividades como desejos e prazeres, além da saúde física e moral, as práticas sexuais e a vida familiar estão no escopo do poder disciplinar estudado por Foucault. E Dreyfus e Rabinow completam que o objetivo básico deste poder é produzir "um ser humano que possa ser tratado como um corpo dócil" (Dreyfus e Rabinow, 1982, p. 135).

Hall também explora este ponto de vista a partir da história do sujeito moderno quando a individualização do sujeito aumenta provocada pela aplicação do poder e do saber e “envolve mais intensamente seu corpo”. Diz que “quanto mais coletiva e organizada a natureza das instituições da modernidade tardia, maior o isolamento, a vigilância e a individualização do sujeito individual”. Foucault complementa a ideia da individualização, do isolamento e da docilidade:

O poder não apenas traz a individualidade para o campo da observação, mas também fixa aquela individualidade objetiva no campo da escrita. Um imenso e meticuloso aparato documentário torna-se um componente essencial do crescimento do poder [nas sociedades modernas]. Essa acumulação de documentação individual num ordenamento sistemático torna "possível a medição de fenômenos globais, a descrição de grupos, a caracterização de fatos coletivos, o cálculo de distâncias entre os indivíduos, sua distribuição numa dada população" (FOUCUALT in DREYFUS et RABINOW, 1982, p. 159).

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Foucault trata do assunto também no texto O Sujeito e o Poder, que merece um olhar mais aprofundado nesta pesquisa. Além de perceber modos pelos quais o sujeito se estabelece, ele destaca que dentro de uma forma de poder que faz dos indivíduos sujeitos, há dois significados para a palavra sujeito: “sujeito a alguém pelo controle e dependência, e preso à própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento”. (FOUCAULT, 1995, p. 235). Segundo ele, seriam três os tipos de luta das quais o sujeito irá ou precisará lançar mão em algum momento:

“contra as formas de dominação (étnica, social e religiosa); contra as formas de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; ou contra aquilo que liga o indivíduo a si mesmo e o submete, deste modo, aos outros (lutas contra a sujeição. Contra as formas de subjetivação e submissão)”. (Idem)

A nova forma de organização de poder que se delineia no século XVIII traz uma matriz moderna da individualização, como fala Foucault, ou o que chama de “uma nova forma do poder pastoral”. E descreve este tipo de poder em três etapas: a salvação e suas formas; a administração do poder pastoral e a multiplicação o dos objetivos e dos agentes do poder.34

34 1. “Podemos observar uma mudança em seu objetivo. Já não se trata mais de uma questão de dirigir o povo para a sua salvação no outro mundo. Mas antes, assegurá-Ia neste mundo. E. neste contexto, a palavra salvação tem diversos significados: saúde, bem-estar (isto é, riqueza suficiente, padrão de vida). Segurança, proteção contra acidentes. Uma série de objetivos "mundanos" surgiu dos objetivos religiosos da pastoral tradicional, e com mais facilidade. Porque esta última, por várias razões, atribuiu-se alguns destes objetivos como acessório; temos apenas que pensar no papel da medicina e sua função de bem-estar assegurados, por muito tempo, pelas Igrejas católica e protestante.

2. Concomitantemente, houve um reforço da administração do poder pastoral. Às vezes, esta forma de poder era exercida pelo aparelho do Estado ou, pelo menos, por uma instituição pública como a polícia. (Não nos esqueçamos de que a força policial não foi inventada, no século XVDI, apenas para manter a lei e a ordem, nem para assistir os governos em sua luta contra seus inimigos, mas para assegurar a manutenção, a higiene, a saúde e os padrões urbanos, considerados necessários para o artesanato e o comércio) Outras vezes, o poder se exercia através de empreendimentos privados, sociedades para o bem-estar, de benfeitores e, de um modo geral, de filantropos: Porém, as instituições antigas como a família eram igualmente mobilizadas, nesta época para assumir funções pastorais. Também era exercido por estruturas complexas como a medicina, que incluíam as iniciativas privadas, com venda de serviços com base na economia de mercado. Mas que incluíam instituições públicas como os hospitais.

3. Finalmente, a multiplicação dos objetivos e agentes do poderpastoral enfocava o desenvolvimento do saber sobre o homem em torno de dois polos: um, globalizador e quantitativo, concernente à população; o outro, analítico, concernente ao indivíduo.

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O Usuário parece fazer uso de um poder praticamente “pastoral” dentro da rede e de comum acordo com a manutenção de uma estabilidade necessária para realização pessoal. A internet se projeta com um poder de Estado sobre a vida contemporânea transformando individualidades em fenômenos de massa sob a égide da visibilidade e do pertencimento. É um acordo comum o fato de acessar a rede e atuar nela e com causas e consequências, exaustivamente estudadas por autores que dedicaram seus trabalhos exclusivamente ao assunto. Alguns deles serão vistos mais adiante nesta pesquisa. Mas por enquanto, este texto pretende entender a relação do sujeito e do poder e quais os acordos que estão em jogo para que ele continue conectado e ativo na rede.

A visibilidade e a inclusão estão sempre em jogo quando o Usuário atua na rede. As mídias utilizadas para obter esta visibilidade que, por sua vez significa também inclusão, não necessariamente exercem poder sobre os Usuários mas neles e com eles, principalmente se pensarmos que comunicar é, de uma certa forma, agir sobre os outros, como diz Foucault. O que está em jogo neste ponto é uma circulação de informações e de elementos significantes dentro da economia comunicacional e também a relação entre indivíduos e o seu senso de Nação, de local cultural. É esclarecedor quando ele diz que a palavra ‘poder’ determina uma relação “entre ‘parceiros’” e que, de maneira geral, é constituída por “um conjunto de ações que se induzem e se respondem umas às outras”. (FOUCAULT, 1995, p.240) porque afasta uma ideia conspiratória de poder como uma via de mão única onde cabe apenas a opressão e traz à luz a ideia que o poder funciona como um jogo em que há uma disposição das partes para que se estabeleça. Não está pressuposto com isso que o poder não seja opressivo e opressor e que não haja desigualdade nas relações. Mas é necessário compreender que mesmo que o sujeito não tenha uma noção crítica a esse respeito, desconheça outros tipos de realidades e que tenha sido condicionado para o exercício de tal relação, o que interessa a este trabalho é compreender que o poder nos meios de comunicação não acontece de maneira isolada, mas a partir de um conjunção entre poder/interesse/necessidade E isto implica que o poder do tipo pastoral, que durante séculos - por mais de um milênio - foi associado a uma instituição religiosa definida, ampliou-se subitamente por todo o corpo social; encontrou apoio numa multiplicidade de instituições. E, em vez de um poder pastoral e de um poder político, mais ou menos ligados um ao outro. Mais ou menos rivais, havia uma “tática” individualizante que caracterizava uma série de poderes: da família, da medicina, da psiquiatria; da educação e dos empregadores.” (O Sujeito e o Poder - FOUCAULT, p.238)

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que atua sobre as subjetividades do Usuário criando para ele um ambiente favorável para a “assinatura” de um acordo afetivo de trocas, inclusão e visibilidade.

As relações de comunicação implicam em atividades finalizadas e comprovam os efeitos de poder quando modificam o que Foucault chama de “campo de informação dos parceiros”. O ato comunicacional do poder se dá na produção e troca de signos num ambiente de fluxo de informação dentro deste acordo orgânico que não está dissociado “das atividades finalizadas, seja daquelas que permitem exercer este poder (como as técnicas de adestramento, os procedimentos de dominação, as maneiras de obter obediência), seja daquelas que recorrem para se desdobrarem, a relações de poder (assim na divisão do trabalho e na hierarquia das tarefas”. (FOUCAULT, 1995, p.241)

Levando-se em conta que “o poder só existe em ato”, o poder precisa do outro para que as reações e respostas se tornem plenas e para ser exercido. O poder age sobre as ações e sobre a atividade. Necessita de pessoas livres e disponíveis. Portanto, “ele não é, em si mesmo, renúncia, uma liberdade, transferência de direito, poder de todos e de cada um delegado a alguns” (FOUCAULT, 1995, p.241). É uma ação sobre ações presentes ou futuras, como coloca o pesquisador francês.

Dentro da perspectiva do Usuário uma reflexão que se coloca é a de que se o poder opera diferenciações para ser exercido, não seriam as próprias diferenças identitárias formas de combater o poder? O fato de que o Usuário entende o seu local cultural não torna a identidade uma forma de liberdade e de resistência ao poder?

Quando Foucault argumenta que a sociedade moderna fixa uma individualidade para o sujeito ele não demonstra que esta seja uma individualidade positiva, mas que se trata de uma determinação necessária para o funcionamento de um establishment e que busca um volume de informação infinito para o pleno exercício do poder. A individualidade estabelecida é se mostra também como um modelo de controle no qual o sujeito é despido de contornos subjetivos para se tornar o coletivo e aceito na massa. O sujeito aceito coletivamente já não parece guardar individualidades.

O Usuário torna-se então um indivíduo/coletivo, visível e aceito no ambiente frequentado de grupo/comunidade. Quanto mais indivíduo, mais dentro de uma ideia

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de coletivo ele está. E é o coletivo que dita a individualização do sujeito ‘permitindo’ que ele se veja como individualizado a partir de conceitos de normatização, como em Canguilhem quando se refere às origens da normatização e da noção de normalidade criadas nas sociedades ocidentais. Para ele “o normal é, ao mesmo tempo, a extensão e a exibição da norma”. (CANGUILHEM, 2009, p.108). A norma que unifica o diverso e institui um estado de coisas satisfatório: “uma norma se propõe como um modo possível de unificar um diverso, de reabsorver uma diferença, de resolver uma desavença”. (Idem, p. 109).

Dentro de um universo de circulação intensa de informações é necessário estabelecer contratos afetivos de atuação e Williams fornece algumas bases para compreender a emergência da noções e relações de individualidade na modernidade:

“...pode ser relacionada ao colapso da ordem social, econômica e religiosa medieval. No movimento geral contra o feudalismo houve uma nova ênfase na existência pessoal dos homens, acima e além de seu lugar e sua função numa rígida sociedade hierárquica. Houve uma ênfase similar, no Protestantismo, na relação direta e individual do homem com Deus, em oposição a esta relação mediada pela Igreja. Mas foi só ao final do século XVII e no século XVIII que um novo modo de análise, na Lógica e na Matemática, postulou o indivíduo como a entidade maior (cf. as "mônadas" de Leibniz), a partir da qual outras categorias (especialmente categorias coletivas) eram derivadas. O pensamento político do Iluminismo seguiu principalmente este modelo. O argumento começava com os indivíduos, que tinham uma existência primária e inicial. As leis e as formas de sociedade eram deles derivadas: por submissão, como em Hobbes; por contrato ou consentimento, ou pela nova versão da lei natural, no pensamento liberal. Na economia clássica, o comércio era descrito através de um modelo que supunha indivíduos separados que [possuíam propriedade e] decidiam, em alguns pontos de partida, entrar em relações econômicas ou comerciais. Na ética utilitária, indivíduos separados calculavam as consequências desta ou daquela ação que eles poderiam empreender (WILLIAMS, 1976, pp.135-6).