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Capítulo 3: As Relações Internacionais no Pensamento de Pio XII

3.2 Summi Pontificatus

A carta encíclica

377

Summi Pontificatus (Supremo Pontificado) é datada de

20 de outubro de 1939. Trata-se da primeira encíclica desde que o então Cardeal

Eugênio Pacelli

378

foi eleito Papa Pio XII em março do mesmo ano. A encíclica,

além de apresentar as prioridades do pontificado, recordar os males da época e os

meios para tornar cristã a sociedade, constitui o principal documento de Pio XII

sobre as relações internacionais. O Papa fornece os fundamentos para uma ordem

internacional que serão depois desenvolvidos e expandidos nas mensagens de

Natal.

Inicialmente, Pio XII reflete sobre o sacrifício e as dificuldades dos que

procuram propagar o Evangelho e também manifesta tristeza diante da constatação

de um mundo hostil à revelação do Sinai (a tábua dos dez mandamentos), ao

espírito do Sermão da Montanha e à cruz, substância ética da mensagem de Cristo.

376 " the attempt to make heaven on earth invariably produces hell" (minha tradução). POPPER, Karl. The open society and its enemies: Hegel and Marx. Vol. II. New York: Routledge, 1995, p. 262.

377 "Chamam-se Cartas Encíclicas as próprias cartas apostólicas dirigidas ao Orbe católico ou aos bispos de alguma região. Elas transmitem, sobretudo, a doutrina e graves exortações e, não raro, também contêm advertências disciplinares previamente mencionadas." "Litterae Encyclicae dicuntur ipsae litterae apostolicae ad catholicum Orbem vel ad Episcopos alicuius regionis directae, quae praesertim doctrinam atque graves exhortationes et monita tradunt atque non raro etiam disciplinaria praescripta continent." WERNZ-VIDAL. Op. Cit., p. 280.

378 Eugênio Pacelli fez toda sua carreira na diplomacia eclesiástica. Participou da codificação do Código de Direito Canônico de 1917, foi secretário de assuntos eclesiásticos extraordinários em 1914, núncio em Munique em 1917 e depois em Berlim em 1920. Tornou-se Cardeal em 1929, foi secretário de Estado de 1930 a 1939 e destacou-se, nessa função, pela grande colaboração prestada a Pio XI principalmente nas concordatas firmadas durante esse pontificado. Cf.: HILAIRE, Yves-Marie (org.). Histoire de la papauté. Tallandier, 2003, p. 453.

O Papa também relembra a obra providencial dos Pactos Lateranenses e submete

sua primeira encíclica ao sinal de Cristo-Rei, como tratei em outra seção.

Logo após, o Pontífice afirma o seu dever de vigário de Cristo: difusão do

reino de Cristo

379

. Assim como o seu predecessor, o Papa Pio X, havia tomado

como lema do pontificado omnia instaurare in Christo, Pio XII também reafirma

que a missão da Igreja consiste em restaurar em Cristo todas as coisas do céu e da

terra

380

. Tanto o Estado como o indivíduo só podem encontrar a salvação segura em

Cristo

381

: “O reconhecimento dos direitos reais de Cristo e a volta de cada um e da

sociedade à lei da sua verdade e de seu amor são o único caminho de salvação.”

382

Para se chegar ao reino de Cristo, segundo o entendimento de Pio XII, o primeiro

dever do vigário é pregar e dar testemunho da verdade. De acordo com o Papa, o

testemunho da verdade exige a condenação do erro, mas isso deve ser feito do

modo devido, com caridade, “praticando a verdade com amor”

383

.

Antes de recordar os males do seu tempo, Pio XII lamenta “a apavorante

notícia que se desencadeara o terrível tufão da guerra”

384

. No dia primeiro de

Setembro de 1939, um mês e vinte dias antes da Summi Pontificatus, Hitler iniciou

a invasão da Polônia e, de maneira subsequente, França e Grã-Bretanha declararam

guerra à Alemanha. Pio XII lamenta o grande sofrimento e as desventuras que

prometiam advir, como de fato advieram, na Segunda Guerra Mundial

385

.

379 PIO XII. Summi Pontificatus, parag. 2. In:

http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p- xii_enc_20101939_summi-pontificatus_lt.html

380 Ibid, parag. 66. 381 Ibid, parag. 71.

382 “Quamobrem Christum in regali suo solio revereri, eidem regiae potestatis iura agnoscere, idque efficere ut singuli universaque societas ad christianae veritatis caritatisque legem redeant, haec omnia solummodo possunt homines ad salutis viam revocare.” Ibid, parag. 14. In:

http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p-

xii_enc_20101939_summi-pontificatus_lt.html Tradução oficial do site do Vaticano:

http://www.vatican.va/holy_father/pius_xii/encyclicals/documents/hf_p- xii_enc_20101939_summi-pontificatus_po.html

383 Ibid.

384 “terrificus affertur Nobis nuntius nefandum iam belli incendium” Ibid, para. 16.

385 A encíclica Summi Pontificatus foi interpretada como um apoio às potências ocidentais e, por isso, durante a guerra, dezenas de milhares de exemplares foram lançados de paraquedas por aviões franceses sobre regiões católicas da Alemanha. HILAIRE, Yves-Marie (org.). Histoire de

Em seguida, o Papa inicia a parte central da encíclica, em que aponta os

problemas do presente e indica os remédios. Primeiramente, ele aponta a raiz dos

males que ocorrem:

“E antes de tudo, é certo que a raiz profunda e última dos males que deploramos na sociedade moderna é a negação e repulsa de uma norma de moralidade universal, quer na vida individual, quer na vida social e das relações internacionais, isto é, o desconhecimento, tão difundido nos nossos tempos, e o esquecimento da própria lei natural, que tem o seu fundamento em Deus, criador onipotente e Pai de todos, legislador supremo e absoluto, onisciente e justo vingador das ações humanas. Quando se renega Deus, abala-se toda a base de moralidade; sufoca-se ou, pelo menos, debilita-se de muito a voz da natureza, que ensina, até aos iletrados e às tribos ainda alheias à civilização, o que é bem e o que é mal, o que é lícito e o que é ilícito, e faz sentir a responsabilidade das próprias ações perante o Juiz supremo. Pois bem, a negação da base fundamental da moralidade teve, na Europa, a sua raiz originária no afastamento daquela doutrina de Cristo, de que é depositária e mestra a cátedra de são Pedro; doutrina que, em tempos idos, dera certa coesão espiritual à Europa, a qual, educada, enobrecida e civilizada pela cruz, chegara a tal grau de progresso civil que a fizera mestra de outros povos e de outros continentes. Afastando-se, ao invés, do magistério infalível da Igreja, não poucos chegaram até a subverter o dogma central do cristianismo, a divindade do Salvador, acelerando assim o processo de dissolvimento espiritual.”386

386 “Cum temere aeternum renuitur Numen, iam cuiuslibet honestatis princípium labat nutans, iamque naturae vox silet vel pedetemptim debilitatur, quae indoctos etiam ac vel eos edocet, qui non dum ad civilis cultus usum pervenerunt, quid fas sit, quid nefas, quid liceat quidque non liceat; eosque admonet se aliquando coram Supremo Iudice de bene maleque factis suis rationem esse reddíturos. Ut profecto nostis, Venerabiles Fratres, ea de causa omnis in ordine morum probitatis fundamentum in Europa olim reici coeptum est, quod homines non pauci a Iesu Christi doctrina abducti sunt, cuius Beati Petri cathedra custos est atque magistra. Qua quidem dottrina ita per revoluta saecula Europae populi coaluere christianoque spiritu conformati sunt, ut Cruce nobilitati, et humaniores cultioresque effecti, ad tam provectam publicae civilisque rei progressionem pervenirent, ut ceteras quoque gentes ac terras omne genus disciplinis excolerent. At cum ab inerranti Ecclesiae magisterio se vindicavissent plures a Nobis seiuncti fratres eo, proh dolor, processerunt, ut ipsam Servatoris nostri divinitatem, quod christianae doctrinae caput est ac veluti centrum, respuendo subverterent, religionis conversionem dissolutionemque maturantes. Cum Christus Dominus, quemadmodum Evangelii narrat historia, truci affixus est, « tenebrae factae sunt super universam terram » (20); quod ea luttuose significare videtur, quae acciderunt continenterque accidunt, cum qui de religionis rebus increduli sunt homines, caligine obcaecati sibique nimium fidentes, divinum Redemptorem ex hodiernae vitae actione ac praesertim ex publica re quasi extorrem exigunt, atque, una cum Christi fide, Dei etiam fidem debilitant. Id siquidem consequitur, ut omnia de conformandis moribus principia ac normae, quibus superiore tempore rationes privatim publiceque vivendi diiudicabantur, quasi obsoleta fatta sint; utque, ubi civilis societas omnino ad laicismi, quem vocant, effata ac placita redacta fuerit — quod quidem citatiore cotidie gradu evenit, summisque laudibus extollitur — atque ubi eo utque incesserit, ut singulos cives, domesticum convictum universamgiie civitatem ab almo ac benefico Dei Ecclesiaeque afllatu subtraxerit, luculentiora cotidie ac miseriora manifestentur signa ac vestigia corruptricis ethnicorum veterum falsitatis. Quod quidem in iis etiam regionibus contingit, in

O Pontífice constata que a Europa afastou-se da lei natural, a qual fornece

uma norma de moralidade universal. A origem desse afastamento, segundo ele,

coincide com o afastamento da doutrina de Cristo: o afastamento da doutrina

católica levou a um obscurecimento da lei natural e de uma norma de moralidade

universal. A Igreja católica, na sua autocompreensão, é depositária da revelação e

da interpretação infalível e procura a plena observação da lei eterna, a qual

compreende a lei natural e também a revelação.

De acordo com Tomás de Aquino, o mundo é regido pela divina providência

e a comunidade do universo é governada pela razão divina

387

. A ordem em que as

comunidades existem, bem como as relações que são estabelecidas entre elas,

seguem uma regra suprema que está na mente do Criador. Os homens, que são

seres morais, possuem leis, as quais, por livre vontade, eles se conformam

388

. A

origem dessa lei está, segundo o Aquinate, na lei eterna, isto é, a razão soberana,

que é o próprio Deus:

“Como em todo artífice preexiste a razão daquelas coisas que são constituídas pela arte, assim também em qualquer governante é necessário que preexista a razão da ordem daquelas coisas que se devem fazer por aqueles que estão submetidos ao governo. E como a razão das coisas a serem feitas pela arte se chama arte ou exemplar dos artefatos, assim também a razão do que governa os atos dos súditos obtém a razão de lei, mantidas todas aquelas coisas que acima dissemos sobre a lei. Deus por sua sabedoria é criador de todas as coisas, às quais se compara como o artista aos artefatos, como se mostrou na I Parte. É também o governador de todos os atos e movimentos que se acham nas criaturas singulares, como também se demonstrou na Parte I. Portanto, assim como a razão da divina sabedoria, enquanto por ela foram todas as coisas criadas, tem razão de arte ou exemplar ou ideia, assim também a razão da divina sabedoria ao mover todas as coisas para o devido fim, obtém a razão de lei. E segundo isso, a lei eterna nada é senão a razão da divina sabedoria, segundo é diretiva de todos os atos e movimentos.”389

quibus per tot saeculorum decursum christianae urbanitatis iubar refulsit: « Tenebrae factae sunt dum crucifixissent Iesum »” Ibid, parag. 20-21.

387 MÍSSIO, Edvaldo Renê. A Concepção de Lei Natural em Tomás de Aquino. 2002. 138 f. (Mestrado em Filosofia). Curso de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, p. 46.

388 PÉRIN, Charles. Op. Cit., p. 161.

389

sicut in quolibet artifice praeexistit ratio eorum quae constituuntur per artem, ita etiam in

quolibet gubernante oportet quod praeexistat ratio ordinis eorum quae agenda sunt per eos qui gubernationi subduntur. Et sicut ratio rerum fiendarum per artem vocatur ars vel exemplar rerum

Consoante a comparação de Aquino, na ordem política, os governantes

inferiores dependem do príncipe, isto é, preexiste nos que estão sujeitos ao

príncipe a razão da ordem das ações que devem ser praticadas; na ordem das artes,

da mesma forma, preexiste nos artífices a razão das obras a se realizarem,

inspirado pelo arquiteto

390

. A lei eterna é a razão de Deus

391

, príncipe e mestre de

todas as coisas. Por conseguinte, no entendimento de Aquino, Deus é a regra

primeira de todas as razões inferiores e de todos os atos que procedem. Também a

retidão de todas as leis e a moralidade de todas as ações são julgadas primeira e

principalmente por sua relação com essa lei

392

. Da lei eterna se origina a lei

natural, que é a razão indicando à vontade as normas últimas do agir na

coletividade, como, por exemplo, fazer o bem e evitar o mal

393

, pois estão

conforme a natureza. A lei natural é uma derivação e participação na lei eterna

394

.

É através da lei natural que o homem participa da lei eterna

395

.

artificiatarum, ita etiam ratio gubernantis actus subditorum, rationem legis obtinet, servatis aliis quae supra esse diximus de legis ratione. Deus autem per suam sapientiam conditor est universarum rerum, ad quas comparatur sicut artifex ad artificiata, ut in primo habitum est. Est etiam gubernator omnium actuum et motionum quae inveniuntur in singulis creaturis, ut etiam in primo habitum est. Unde sicut ratio divinae sapientiae inquantum per eam cuncta sunt creata, rationem habet artis vel exemplaris vel ideae; ita ratio divinae sapientiae moventis omnia ad debitum finem, obtinet rationem legis. Et secundum hoc, lex aeterna nihil aliud est quam ratio divinae sapientiae, secundum quod est directiva omnium actuum et motionum”. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Op. Cit.. Ia, II ae, q. 93, a. 1.

390 MÍSSIO, Edvaldo Renê, Op. Cit. p. 50-51.

391 AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Op. Cit., Ia, IIae, q. 19,a. 4; q. 71, a. 2. 392 PÉRIN, Charles, Op. Cit., p. 164.

393 MÍSSIO, Edvaldo Renê, Op. Cit, p. 81.

394 “E tal participação da lei eterna na criatura racional se diz lei natural.(...) Daí se torna manifesto que a lei natural nada mais é que a participação da lei eterna na criatura racional.” “Et talis participatio legis aeternae in rationali creatura lex naturalis dicitur. (...) Unde patet quod lex naturalis nihil aliud est quam participatio legis aeternae in rationali creatura.” AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica. Op. Cit., q. 91, a 2.

395Na seguinte passagem, Tomás de Aquino resume toda a questão: “Nas causas ordenadas, o efeito depende mais da causa primeira do que da causa segunda, porque a causa segunda não age senão em virtude da causa primeira. Que a razão humana seja a regra da vontade humana, pela qual sua bondade é medida, procede essa regra da lei eterna, que é a razão divina. Por isso, diz o Salmo 4: `Muitos dizem: Quem nos mostrará o bem? Senhor, a luz do teu rosto está impressa em nós: como se dissesse:`A luz da razão que está em nós, em tanto nos pode mostrar o bem e regular nossa vontade, enquanto é a luz de teu rosto, isto é, derivada de teu rosto.´ Por isso, é evidente que muito mais depende a bondade da vontade humana da lei eterna, do que da razão humana, e quando falha a razão humana, é necessário recorrer à lei eterna.” “in omnibus causis ordinatis,

A lei natural é essencialmente racional

396

e, assim como a razão, ela é

imutável

397

. Contudo, em sua aplicação, a razão pode se enganar, pois as más

inclinações da natureza decaída, como, por exemplo, erro no especulativo ou os

maus hábitos, podem em parte obscurecer a lei natural nos corações dos homens

398

.

Por essa razão, segundo o magistério da Igreja, Deus deu aos homens a verdade

revelada, sendo que é na Igreja que se encontra o complemento e o critério da

revelação. Por meio da revelação e pela infabilidade da Igreja, "a lei divina

investiu o caráter positivo que deve ter toda lei destinada a reger em detalhes as

ações humanas e a regrar as relações da vida pública e privada"

399

. A Igreja, na sua

autoconsciência, procura observar plenamente essa lei e fixar seus termos e

determinar seu alcance. Por meio da Igreja, a lei se torna, portanto, precisa.

Nesse sentido, Pio XII entende que a laicização da sociedade, subtraindo o

homem, a família e o Estado da influência da ideia de Deus e do ensino da

Igreja

400

, conduziu a Europa ao afastamento da doutrina de Cristo e, por

conseguinte, tornou-a menos ciente da lei natural, inclinada à corrupção do

effectus plus dependet a causa prima quam a causa secunda, quia causa secunda non agit nisi in virtute primae causae. Quod autem ratio humana sit regula voluntatis humanae, ex qua eius bonitas mensuretur, habet ex lege aeterna, quae est ratio divina. Unde in Psalmo IV, dicitur, multi dicunt, quis ostendit nobis bona? Signatum est super nos lumen vultus tui, domine, quasi diceret, lumen rationis quod in nobis est, intantum potest nobis ostendere bona, et nostram voluntatem regulare, inquantum est lumen vultus tui, idest a vultu tuo derivatum. Unde manifestum est quod multo magis dependet bonitas voluntatis humanae a lege aeterna, quam a ratione humana, et ubi deficit humana ratio, oportet ad rationem aeternam recurrere.” Ibid, Ia, IIae, q. 19, a. 4.

396 Ibid, q. 94, a. 1.

397 A lei tem como norma suprema a razão (Ibid, q. 90, a. 4). A lei natural é reconhecida pela razão como sendo conforme a natureza. Enquanto derivação da razão suprema, a lei natural é, segundo o Magistério da Igreja, imutável. Tomás de Aquino afirma que quanto aos primeiros princípios da lei da natureza, a lei natural é imutável. Em relação aos preceitos segundos, que são conclusões particulares dos primeiros princípios, ela pode ser alterada em algo particular e em poucos casos, em razão de algumas causas especiais. Cf.: Ibid, q. 94, a.5.

398 Ibid, q. 94, a. 6.

399 "la loi divine a revêtu le caractère éminemment positif que doit avoir toute lois destinée à regir dans le détail les actions humaines, et à régir dans le détail les actions humaines, et à régler tous les rapports de la vie publique et de la vie privée." PÉRIN, Charles, Op. Cit. p. 169.. Nesse sentido: ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra o Estado. Op. Cit., p. 62, 40-42.

paganismo, à desordem externa e interna, pública e privada, ou, enfim, a um

mundo não civilizado

401

.

O Pontífice confronta a situação da Europa em seu tempo com a cristandade

medieval:

“É verdade também que nos tempos em que a Europa se irmanara com ideais idênticos recebidos da pregação cristã, não faltaram dissídios, desordens e guerras que a desolaram; mas talvez nunca se tenha experimentado tão agudamente o desalento dos nossos dias sobre a possibilidade de conciliação; viva era então a consciência do justo e do injusto, do lícito e do ilícito, que facilita os entendimentos, enquanto freia o desencadear das paixões e deixa aberta a via a um honesto acordo. Nos nossos dias, ao contrário, os dissídios provêm não somente do ímpeto de paixões rebeldes, mas de uma profunda crise espiritual que subverte os sãos princípios da moral privada e pública.”402

Durante a Idade Média, na Europa, a Igreja exercia a jurisdição em todas as

questões de moral e de justiça e funcionava como um tribunal supremo para as

questões internacionais, respondendo pela necessidade de paz e segurança entre os

povos. A Igreja se constituía mestra das consciências e diretora da sociedade

internacional. Nessa configuração, a vontade das nações concorria com o direito da

Igreja para formar a extensa unidade moral e política da cristandade. Tal unidade

estendia-se também nos costumes e na vida privada e pública das nações. O direito,

401 “Enfraquecida a fé em Deus e em Jesus Cristo, ofuscada nos ânimos a luz dos princípios morais, fica a descoberto o único e insubstituível alicerce daquela estabilidade e tranquilidade, daquela ordem externa, e interna, privada e pública, única que pode gerar e salvaguardar a prosperidade dos Estados.” “Siquidem remissa ac debilitata Dei divinique Redemptoris fide, ac luce obumbrata in animis, quae ex universalibus probitatis honestatisque normis oritur, iam unum illud atque unicum labefactatur stabilitatis tranquillitatisque fundamentum, quo privatus ac publicus animorum rerumque ordo innititur, qui quidem sollummodo potest civitatum prosperitatem gignere ac sartam tectamque servare.” Ibid, parag. 24.

402 “Tum etiam pro certo, cum. Europae gentes fraterno illo continebantur foedere, quod eadem alebant christiana instituta ac praecepta, non dissidia, non rerum conversiones, non populantia bella deerant; sed nunquam alias forsitan, ut in praesens, tam fratto homines affiictoque fuere animo, quandoquidem acri trepidatione cernunt quam difficile sit suis mederi malis. Dum contra superiore aetate praesens mentibus animisque erat quid fas, quid nefas esset, quid liceret, quid denique illicitum esset: quod quidem et consensiones faciliores reddit, et concitatas cupidines coércet, et ad honestam rerum compositionem viam pandit ac munit. Hisce tamen cliebus non ex vehementi tantummodo intemperantis animi impetu oriuntur dissidia, sed ex intimae potius conscientiae perturbatione defectioneque, ex qua privatae ac publicae probitatis honestatisque normae temere subvertuntur.” Ibid, parag. 25.

ainda que muitas vezes violado na prática, lembra Pio XII, sempre conservava seu

vigor e permanecia como regra certa pela qual as nações eram julgadas.

Após apontar, de maneira geral, os problemas de sua época e relembrar o