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1.4. Principais características distintivas do Pós-positivismo Brevíssimas considerações

1.4.1 Superação do antagonismo entre o Direito e a Moral

A escolha deste aspecto como o primeiro a ser enfrentado não se deu ao acaso.

Trata-se de ponto pacífico entre os doutos (ALEXY, 1993, pp. 41 e 56) que é através desta reconexão entre ambos os sistemas que se edifica uma ponte capaz de dar fôlego teórico aos avanços do constitucionalismo moderno que se vê defrontado com uma sociedade plural9, multiculturalista, composta de grupos e segmentos titularizando pretensões e direitos, por vezes contrapostos, levando até o Poder Judiciário controvérsias jurídicas com forte apelo ético, social, econômico e político.

Este cenário conflituoso, marca dessa sociedade de risco global, tão bem captada por Ulrich Beck (1998, pp. 91-101), demanda dos operadores do Direito soluções que, seguramente, não podem ser alcançadas valendo-se dos dogmas positivistas do primado da lei, do princípio do legislador racional e da subsunção como método interpretativo e aplicativo.

Justamente neste ponto avulta a precariedade deste modelo hermético, insuficiente a dar resolutividade a dilemas decisionais, ad exemplum da interrupção da gestação versus anencefalia10, casamento homoafetivo11, constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa12, possibilidade de pesquisa com células-tronco13.

9 Exemplo marcante disto é nossa Constituição da República de 1988. Ela é formatada como uma verdadeira “colcha de retalhos”. Isto porque instituiu uma solução de consenso para contemplar ideologias, valores, diretrizes encabeçadas por categorias e segmentos estranhos entre si e até antagônicos na aparência, além evidentemente de abarcar pretensões protetivas às minorias. Eis a explicação para o texto constitucional, p. ex. albergar o direito individual de propriedade no rol dos direitos fundamentais do art. 5º, de cunho nitidamente liberal, ao tempo em que noutra passagem cunhou a sua função social como princípio norteador das relações econômicas. Isto ilustra o desenho de uma sociedade pós-moderna não como um conjunto coerente, fechado e imóvel de conteúdos e relações, ao reverso, trata-se de uma rede móvel, variável e aberta, em contínua transformação, na qual certos valores, não coerentes e em conflito, podem combinar-se e fundir-se num complexo processo de mudança.

10 ADPF 54/DF.

11 ADPF 132/RJ, julgado em 26/11/2008 e ADI 4277, julgado em 05/05/2011 pelo Pleno, ambos relatados pelo Ministro Ayres Britto.

Deveras, basta uma mera passada de olhos na pauta de julgamento do Guardião da Constituição na última década para confirmarmos a existência de conflitos que escapam ao referencial formalista de enfrentamento das questões jurídicas e a premência em avançar sobre matérias de cunho político, filosófico e até científico para dar uma resposta à sociedade diante do impasse produzido.

Daí a incontornável necessidade do Direito se mostrar aberto a aportes teóricos de outros sistemas e saberes, permitindo a interdisciplinaridade como ferramenta para subsidiar a edificação de soluções democráticas e racionalmente verificáveis.

Nesta abertura epistemológica (PIRES, 2011, p. 32) ocorre a reaproximação com a moral, cuja separação absoluta vicejou no Positivismo em nome de uma busca por um status científico ao direito cujo padrão impunha uma neutralidade em relação aos juízos axiológicos ou políticos para se compreender a norma.

Em decorrência da adoção do modelo pós-positivista há um arrefecimento da clássica dicotomia entre o ser e o dever-ser, ou seja, entre a esfera descritiva e a prescritiva (SARMENTO, 2011, p. 83).

Isso se dá pela peculiaridade do enriquecimento do conteúdo dos programas normativos, em particular no âmbito das Constituições, os quais passam a ser impregnados de valores inseridos no ordenamento por meio de princípios, impelindo os atores jurídicos a realizar de forma mais habitual juízos de valor acerca da essência da regra legal, apartando-se, naturalmente, do mero exame de conformidade do fato à norma sem maiores valorações.

Há um renovado interesse e atenção da ciência do direito pela hermenêutica outrora confinada ao silogismo e à legalidade estrita da matriz teórica anterior.

Esse interesse se mostra de fundamental importância para se alcançar a solução mais equânime aos conflitos mais controvertidos, também denominados de casos difíceis onde há um dissenso moral razoável subjacente à relação jurídica.

Neste sentido, há um movimento da ciência jurídica em direção a outros sistemas, mas sempre respeitados os lindes de cada um deles, sendo forçoso sublinhar que

[...] as fronteiras entre Direito e Moral não são abolidas, e a diferenciação entre eles, essencial nas sociedades complexas, permanece em vigor, mas a fronteira entre os dois

12 ADCs 29, 30/DF e ADI 4578, julgados pelo Tribunal Pleno em 16/02/2012, figurando como relator o Ministro Luiz Fux.

domínios torna-se muito mais porosa na medida em que o próprio ordenamento incorpora, no seu patamar mais elevado, princípios de justiça, e a cultura jurídica começa a “levá-los a sério” (SARMENTO, 2011, p. 83)

Essa aproximação – denominada de virada kantiana (PIRES, 2011, p. 32) – precisa ser bem esclarecida, porquanto é possível distinguir duas posições acadêmicas a respeito: uma mais intensa e outra buscando preservar o domínio do Direito tanto no aspecto da metodologia quanto na sua função epistêmica.

A primeira delas esposada por Dworkin (VIDAL, 1999, pp. 268, 270 e 285) e notadamente Alexy (1993, pp. 41 e 56; 2008, pp. 144-153) propõe uma íntima conexão entre os princípios – sistema jurídico ou universo do dever-ser – e valores – a moral enquanto nível axiológico – como face da mesma moeda

Sustenta-se tal posição pela moderna feição das Constituições democráticas que repudiam uma ordenação axiologicamente neutra, de maneira a se afirmarem como portadoras de uma verdadeira ordem de valores (ALEXY, 2008, p. 154) comumente representadas pelo catálogo dos direitos fundamentais.

Ressai desta vertente o desenvolvimento da jurisprudência dos valores (STRECK, 2014a, p. 80) onde ambos – princípios e valores – encontram-se visceralmente ligados, tanto que permitem ponderação e realização gradual conforme os pressupostos fáticos e jurídicos (ALEXY, 2008, p. 144).

Tal perfilhamento não passou incólume às críticas, enfrentadas pelo próprio autor (2008, pp. 153-176), endereçadas sobremaneira ao risco no resultado do sopesamento, o qual ao fim e ao cabo deixariam as normas de direitos fundamentais à mercê do intérprete da Constituição, que segundo o momento histórico, social e político poderia levar a um desprestígio ou supervalorização de um vetor axiológico erigido pelo Constituinte.

Dito inconveniente, por sua vez, oportunizaria um alto grau de discricionariedade do ato interpretativo maculando um dos escopos do direito que é justamente conferir certo grau de segurança, estabilidade e previsibilidade.

A segunda posição, como dito mais restritiva, concebe essa relação entre ambos os sistemas por meio de uma complementariedade.

Fruto do pensamento de Habermas e Luhmann, buscam preservar mais o Direito deste contato, sem negá-lo, evitando que o modo de atuação daquele perca suas especificidades diante da fluidez própria da Moral.

Essa interação, por evidente, se mal conduzida pode acarretar desvios, pois afinal a penetração no discurso jurídico de padrões morais – sejam eles históricos, sociais, econômicos –, portanto contingentes, particulares, pode redundar na supremacia ou imposição de interesses de determinado segmento social sobre outros, algo inadmissível num Estado Democrático de Direito (PIRES, 2011, p. 44).

Propõe-se, então, um fechamento operacional do Direito em relação aos demais sistemas, ao tempo em que há um reconhecimento da necessária abertura cognitiva daquele (CRUZ; DUARTE, 2013, p. 33) a outros, e no que pertine a Moral esse ponto de contato se justifica diante da busca de um salto qualitativo na moldura legal perpassando pela sua legitimidade e justiça, enfim, na pretensão da correção normativa (CRUZ; DUARTE, 2013, pp. 29 e 32).

A posição mais contida entende que o Direito ficaria infenso à lógica que dita as regras morais, mantendo sua dinâmica interna, forma de produção e compreensão sem uma causalidade externa, apenas tolerando estímulos do seu entorno – daí a concepção de Luhmann ser intitulada como autopoiética (ALMEIDA, 2008, pp. 232/233) –, com isso se afastando da versão axiologizante do Direito preconizada por Dworkin (ALMEIDA, 2008, pp. 254 e 257) e Alexy.

Essa interface com outros sistemas se dá pela textura constitucional, tanto que Giovani Agostini Saavedra, (2006, p.58) ao discorrer sobre este tema da obra de Luhman, pontifica ser a Constituição um mecanismo de acoplamento estrutural entre o sistema jurídico e os sistemas político e moral.

Ante estes pontos de contato, que referido o sociólogo alemão denomina de zonas de irritabilidade recíproca, potencializa-se as chances do Direito institucionalizar decisões estritamente políticas e éticas sob a forma jurídica, e em contrapartida aqueles se valem do direito como instrumento de consecução de seus propósitos.

Acerca da existência destas zonas de contato, Barroso (2012, p. 415) chega ao ponto de acoimar de “crença mitotológica” a insistência em negar suas conexões, censurando uma visão tradicional lastreada numa pseudoneutralidade científica, na completude do Direito e um processo mecânico de aplicação da norma.

Esse realinhamento entre o Direito e a Moral teve sua gênese no desalento produzido pela ascensão do nazi-facismo calcado num ordenamento jurídico indiferente a valores éticos, portanto, podendo servir de instrumento a todo tido de regime político.

A crença positivista na racionalidade, infalibilidade e universalidade da produção do direito (CRUZ; DUARTE, 2013, p. 38) decorre do axioma cognominado de legislador racional, conferindo uma validade eivada de um excessivo formalismo (legalidade estrita), ao tempo que despreza a análise de seu conteúdo.

Para que um paradigma deste não mais fosse manejado por governos antidemocráticos, as Cartas Políticas passaram a incorporar uma tábua axiológica em seu corpo, comumente corporificada em normas e princípios consagradores de direitos fundamentais.

Estes valores por serem vazados em uma linguagem fluida e polissêmica (liberdade, desigualdade social, probidade, dignidade da pessoa humana, função social), comumente valendo-se da técnica legislativa que emprega cláusulas abertas ou conceitos juridicamente indeterminados, favorece a dutibilidade (malebalidade) da norma mencionada por Gustavo Zagrebelsky (2011, p.14), permitindo sua atualização ao momento histórico em que é aplicada, de tal modo que será legítima se observar as exigências morais de seu tempo.

Neste prisma extrai-se uma funcionalidade relevantíssima aos direitos fundamentais de serem a interface entre o direito e a moral, tendo como sua matriz as Constituições, deixando para trás o velho antagonismo entre o Jusnaturalismo e Positivismo. Há quem ouse afirmar, com acerto, que os direitos fundamentais ao incorporarem aspectos morais em sua redação, estariam reabilitando o direito natural.

Esta reaproximação além de servir como manancial argumentativo para a produção, interpretação e aplicação do Direito, permite a concretização de valores compartilhados por uma dada comunidade num delimitado momento histórico.

Essa nova perspectiva metodológica serve de relevantíssima baliza para emitir um juízo de legitimidade e equidade às fontes do direito, notadamente as de origem estatal – lei, medida provisória, decretos e outros instrumentos normativos – conferindo-lhes o selo da aceitação pública do direito enquanto instrumento de poder.

Imprescindível pontuar que há uma relação de interação/reciprocidade e não de subordinação do sistema jurídico à moral, sempre recordando as ponderações de Habermas (1997, pp. 141 e 183) de que ambos têm abordagens epistêmicas diversas, distinguindo-se essencialmente pelo caráter compulsório carreado pelos programas normativos em relação aos seus destinatários, já a moral como um saber cultural é despida dessa imperatividade.

Nesta perspectiva Ribeiro (2010, p.57) sintetizou com maestria essa simbiose entre os referidos sistemas, afirmando que o Pós-positivismo passando ao largo da velha parêmia envolvendo direito natural e Positivismo, resulta de um esforço multidisciplinar para traçar um novo paradigma do Direito, com participação marcante da Filosofia Política, Filosofia da Linguagem e da Sociologia.

Como última consideração não se pode perder de vista as cautelas quanto a uma excessiva interpenetração entre ambos os domínios, oportunizada pela centralidade da Constituição com sua tábua axiológica modeladora do ordenamento e das relações sociais, num fenômeno a que Sarmento (2008, pp. 113-146) cunhou de ubiquidade constitucional, perigoso para as engrenagens de um Estado democrático pois

A hipertrofia constitucional não pode representar a tirania de valores, sob pena de a Constituição se converter em um instrumento totalitário, asfixiando as forças sociais e constrangendo a autonomia política e privada do povo. [...] colocando a perder toda a espontaneidade das relações humanas e as peculiaridades da própria vida de cada indivíduo dentro da sociedade (CAMBI, 2010, p. 139).

O reencontro do Direito com outros sistemas, dentre eles a Moral, é salutar para dar concreção a preceitos constitucionais portadores de valores fundamentais à sociedade, no entanto é preciso estar atento para que a excessiva constitucionalização não produza efeitos danosos a própria democracia, pois há matérias cujo trato seria mais adequado no âmbito político e, por sua vez, permitindo uma regulação autônoma pelo legislador ordinário que disporia de uma maior discricionariedade.

Arrematando este tópico, põe-se em relevo que as barreiras entre ambos não foram simplesmente suprimidas, mas na atual quadra por um impulso do texto constitucional há uma maior abertura cognitiva entre o Direito e a Moral.