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A superação das teorias do processo como contrato e como quase-contrato

3 O MODELO CONSTITUCIONAL DE DEVIDO PROCESSO LEGAL: O PROCESSO JUSTO

3.1 A insuficiência de algumas teorias sobre a natureza jurídica do processo

3.1.1 A superação das teorias do processo como contrato e como quase-contrato

O exame dos fundamentos da legitimidade da jurisdição requer a compreensão do que é o devido processo legal a partir das garantias constitucionais que o compõem. Melhor dizendo, a definição de processo justo, no Estado Democrático de Direito, é essencial para que se possibilite o exercício democrático da função jurisdicional.

Nessa toada, para que se alcance a melhor conceituação sobre o processo justo, é necessário, primeiramente, analisar – e, consequentemente, superar – diversas teorias acerca da natureza jurídica do processo, as quais se mostram insuficientes para atribuir um embasamento democrático e constitucional à atividade jurisdicional.

A teoria do processo como contrato, por exemplo, confere uma natureza facultativa à jurisdição, pois atribui às partes o direito de escolha do juiz. Surgida a partir da máxima romana Sicut stipulatione contrahitur, ita iudicio contrahi, de Ulpiano,88 a referida teoria foi desenvolvida por R. J. Pothier, para quem os direitos e os deveres processuais se

88

TORNAGHI, Hélio. A relação processual penal. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1987, p. 213. O autor traduz a máxima citada como “Em juízo se contrata (se contrai obrigação) tal qual na estipulação”.

originam de um contrato (judiciário), de natureza privada, firmado pelas partes que convencionam entre si a intervenção do juiz para a resolução do caso concreto.

Em outras palavras, compete às partes, ao seu livre alvedrio, submeterem-se ao processo e aos resultados da atividade jurisdicional, por meio da celebração de um negócio jurídico de cunho particular. Em princípio, as decisões judiciais não são imperativas, uma vez que o caráter coercitivo do provimento jurisdicional está condicionado à aquiescência dos litigantes.89

O caráter convencional do processo também influencia a própria instauração da lide perante o árbitro (juiz). Isso porque o conflito de interesses se transforma em litígio a partir da litis contestatio, a qual é entendida como um acordo por meio do qual as partes aceitam a sujeição aos efeitos da decisão jurisdicional.90

Como se percebe, a teoria contratual do processo não se coaduna à garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CRFB), pois confere às partes a faculdade de autorizar, ou não, o exercício da função jurisdicional pelo magistrado. Ademais, a teoria do processo como contrato impede a atribuição de independência à magistratura, uma vez que a atuação do juiz fica condicionada à vontade das partes.

Na verdade, a teoria contratual do processo se relaciona à ideia do juiz como a mera “boca que pronuncia as palavras da lei” (bouche de la loi), nada mais que “seres inanimados que não podem moderar nem sua força, nem seu rigor”.91 O juiz, exercendo a jurisdição de forma autômata, aparece como simples espectador de um processo que se desenvolve apenas entre autor e réu.

Nesse sentido, a teoria em comento retira do juiz a capacidade de interpretar a lei. Inserido em um “modelo de legislação sem jurisdição”,92 em que realiza a subsunção dos fatos à norma (silogismo) na busca da voluntas legislatoris, ao magistrado cabe se dirigir ao legislativo para sanar dúvidas sobre a interpretação da lei (référé facultatif).93

A teoria do processo como contrato, portanto, impede o juiz de exercer seu papel de agente transformador da realidade social, ou de assumir sua função de concretizador dos

89

DEL NEGRI, André. Controle de constitucionalidade no processo legislativo: teoria da legitimidade democrática. 2. ed., Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 91.

90 LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 10. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2011,

p. 64.

91

MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução de Cristina Murachco. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 175.

92 PICARDI, Nicola. Jurisdição e Processo. Organização e revisão técnica da tradução de Carlos Alberto Alvaro

de Oliveira. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 24-27 e 84-97.

93

Introdução de Sérgio Sérvulo Cunha ao KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. Tradução de Sérgio Sérvulo Cunha, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. VIII-IX.

anseios cívicos. Condicionado à vontade das partes, ao juiz não resta alternativa senão uma atuação mecanicista – tal qual uma “função notarial”94 –, desprovida do apuro hermenêutico e do senso crítico necessários ao exercício de uma atividade jurisdicional com independência funcional.

Por seu turno, a teoria do processo como quase-contrato, idealizada por Friedrich Savigny e Arnaut de Guényvau, também não é capaz de resolver o problema advindo da natureza facultativa da atividade jurisdicional, pois não é exitosa em eliminar, por completo, o caráter convencional da jurisdição.

A par de sua própria fragilidade lógico-estrutural – uma vez que é impossível caracterizar o que é um quase-contrato como fonte de obrigações –, a referida teoria preconiza que apenas ao autor compete aquiescer quanto aos resultados do processo. A concepção do processo como quase-contrato, logo, mantém a natureza privatística da jurisdição – e a inserção do processo no ramo do Direito Privado –, pois condiciona a produção dos efeitos da sentença à instauração da demanda pelo autor.

Na realidade, a caracterização do processo como quase-contrato se pauta em um critério de exclusão, com base nas fontes obrigacionais existentes quando de sua criação: o processo não era um contrato, uma vez que era dispensável o consentimento entre autor e réu para a instauração da demanda; igualmente, o processo não era um delito ou quase-delito, porquanto os polos litigantes não infringiam direitos ou normas jurídicas. Por via de consequência, o processo passa a ser concebido como um ex quasi contractu (ou quase- contrato), isto é, algo semelhante ao contrato, como um “fato voluntário e lícito de que resulta obrigação para terceiro ou obrigação recíproca entre as partes”.95

Percebe-se, pois, que a teoria do processo como quase-contrato, muito embora tenha proposto um progresso quanto à concepção contratual, não é capaz de desvincular o caráter privatístico da atividade jurisdicional, na medida em que mantém a necessidade de aquiescência das partes para a atribuição de eficácia cogente ao provimento jurisdicional.

E assim é que as teorias do processo como contrato e como quase-contrato são suprimidas pela afirmação da natureza publicista da jurisdição e do processo, bem como pela constatação de que a imperatividade do provimento jurisdicional independe do consenso das partes, uma vez que é fruto do monopólio da atividade jurisdicional do Estado.

94

TORNAGHI, Hélio. A relação processual penal. 2. ed., São Paulo: Saraiva, 1987, p. 214.

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