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CAPÍTULO II – O DISPOSITIVO PUBLICITÁRIO

2.3. Superman, o mordomo e o dispositivo

Mais do que outras atividades (as universidades, por exemplo), o dispositivo publicitário tem recursos financeiros para estudar exaustivamente o comportamento do ser humano na sua relação com a mercadoria e o ato da compra. Ou, pelo raciocínio do próprio Foucault, torna possível uma genealogia da figura do consumidor, uma vez que transforma os indivíduos em objetos de estudo, documentos a analisar. O saber produzido pelo dispositivo publicitário atende a uma lógica: promover a ortogénese do corpo dócil, através da percepção do que ele quer e da antecipação dos seus desejos. Se onde há poder há resistência, é preciso saber de onde vêm essas resistências. O processo passa pela apropriação de técnicas originárias de outros saberes (ou outros dispositivos). Um case

study interessante para mostrar o dispositivo em ação foi o lançamento do novo Jeep

Grande Cherokee em Portugal, nos anos 90. Em 1998, a Chrysler Jeep começou a implantar uma rede própria de concessionários no país e teve um grande desafio no mercado, com o lançamento do novo todo-o-terreno Grand Cherokee. O veículo já tinha uma história em todo o mundo, pois havia sido lançado à escala global em 1992, e estava a cumprir um final de ciclo (um caso de obsolescência perceptiva, tema que veremos mais à frente), pois naquela altura as modernizações dos modelos de automóveis

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aconteciam, por regra, a cada sete anos. Nesse período, o todo-o-terreno enfrentava um desgaste de imagem, com as vendas em queda, o que levou a marca a fazer um restyling. Relançado com importantes inovações tecnológicas e de design, havia dois caminhos de comunicação a seguir para o mercado português: escolher para arquétipo da mensagem publicitária o Superman ou um simples mordomo. A imagem do Superman simbolizava a potência, a resistência, a superioridade e a inteligência. O mordomo, pelas suas próprias funções, passava a ideia de servidão e de subserviência. A resposta parecia óbvia para os publicitários: a escolha era o Superman. Mas como ter garantias?

Os focus groups são um ferramenta muito usada pelo dispositivo publicitário. É uma espécie de estudo de mercado aplicado a grupos de pequenas dimensões, formados por pessoas que se encaixam no perfil do público-alvo do produto e que, através de um jogo de perguntas e respostas, debates ou depoimentos permite identificar preferências. No caso do todo-o-terremo, o público-alvo era bem definido: consumidores com nível sócio-económico elevado (“classes” A e B), idade superior a 35 anos, possuidores de veículos todo-o-terreno ou indivíduos que não rejeitassem a ideia de vir a possuir um veículo deste tipo (70% de homens e 30% de mulheres). Este tipo de pré-teste é, por hábito, coordenado por psicólogos e sociólogos, que avaliam a dinâmica da discussão, os gostos e a reação dessas pessoas às peças publicitárias. No caso específico desta campanha, o Superman foi identificado pelo dinamismo, fantasia, ligação ao produto, mas destinado a um público mais jovem e com poucas preocupações de status. As peças centradas no mordomo colheram percepções diferentes. A ideia foi considerada mais atraente, elitista e capaz de simbolizar a imagem que o proprietário de um carro desses deseja passar para o exterior. E depois de três focus groups (onde, lembremos, são usadas ferramentas de áreas como a psicologia, sociologia, marketing, antropologia etc) foi possível definir o filme mais adequado ao público-alvo. A imagem escolhida foi a do mordomo25, uma vez que o pré-teste mostrou uma realidade: os portugueses das classes sociais em questão deixam-se seduzir mais pela mordomia e pelo fato de serem servidos. O mesmo estudo foi ao pormenor de tentar perceber quais seriam as palavras-chave mais capazes de mobilizar os consumidores. É apenas um caso prático, mas que serve para

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revelar um dispositivo sempre em rede com outros elementos, com a finalidade de encontrar as brechas que permitam chegar ao consumidor.

O dispositivo publicitário fala e faz falar. Na produção do seu regime de verdade, cria um léxico próprio que, sendo restrito na origem, acaba por contaminar o léxico geral das sociedades. O saber produzido pela indústria publicitária toma expressão numa vulgata que inclui conceitos como, entre outros: brand entertainment, engagement,

prosumer (produtor e consumidor), guilt-free consumption, tryvertising, one-to-one, B2B,

CRM, guerrilha, buzz, demanding brands, lovemarks, viral, neuromarketing, etc. Cada um desses conceitos aponta para técnicas distintas, numa espécie de arte das distribuições que faz funcionar um “poder relacional que se sustenta por seus próprios mecanismos”26. Mas como o dispositivo põe essas técnicas em operação? Muitas atuam sobre os sentimentos dos consumidores, como a culpa ou o medo, por exemplo. Podemos descrever a tendência recente do guilt-free consumption, que leva as pessoas a acreditarem no consumo sem culpa. Um chocolate de baixas calorias, um Toyota Prius que não polui ou uma sandes vegetariana são produtos que inocentam o ato de consumo. O medo é outro exemplo. Se o anúncio diz às pessoas para comprarem desodorizantes com efeito de 24 horas, de facto está a explorar o medo de cheirar mal. O produto que propõe o rejuvenescimento usa o medo de envelhecer. Há mesmo casos em que o dispositivo vai mais longe e faz exigências emocionais explícitas. É o caso das

demanding brands, que propõem uma inversão da hierarquia de valores: as marcas

exigem um determinado comportamento do consumidor, numa lógica de adesão. O caso mais quotidiano é, por exemplo, o dos supermercados que produzem marcas próprias de sacos reutilizáveis: sob o argumento de preservação da natureza, inventam um novo produto. Para passar a ideia de responsabilidade social, a Toyota promete plantar uma árvore por cada veículo vendido.

Michel Foucault propõe que o poder não tem só negatividade, exclusão ou interdição, porque também é gerador de performances, produz discurso e forma saber. O pensador abre caminho para uma análise de maior complexidade, ao afirmar que o poder não é propriedade de alguém ou de uma classe e não surge de um único ponto de

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emanação, mas é, isto sim, uma estratégia. É uma malha que põe em ação as relações entre indivíduos ou grupos, mas só existe em ato. Foucault introduz a ideia de que o poder não é essencialmente repressivo, uma teoria que encontra corpo na positividade do discurso do consumo, que pretende incitar, induzir ou seduzir. O pensador entende que é necessário deixar de olhar para os efeitos de poder como coisas sempre negativas ou dizer que “‘ele exclui’, ele ‘reprime’ ele ‘recalca’, ele ‘censura’, ele ‘abstrai’, ele ‘mascara’, ele ‘esconde’. De fato, o poder produz; ele produz real; produz domínios de objetos e rituais de verdade”.27 Um caso prático interessante para mostrar essa positividade do poder, através da malha relacional de vários tensores e atores, vem da publicidade no Brasil.

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