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1. A TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO NA LÍNGUA E SUAS RELAÇÕES COM

3.2 A ANÁLISE DE ENUNCIADOS SUPOSICIONAIS SEGUNDO A TBS e a TAP

3.2.4 Outros casos

3.2.4.1 Suposição derivada

Retomamos alguns trechos do texto de Lewis Carroll Alice no país do espelho.

Trecho 2:

O gatinho permanecia sentado sobre seus joelhos [joelhos de Alice], muito compenetrado controlando o progresso do enovelamento, e esticava de vez em quando uma das patinhas a fim de tocar gentilmente na bola de lã, (S2 54) como se estivesse disposto a ajudar, desde que lhe dessem permissão. (p. 18)

(S2 54) O gatinho estava disposto a ajudar Alice no enovelamento, desde que lhe dessem permissão.

Assim como na suposição intrínseca, no enunciado (S2 54) os aspectos expressos também têm sua origem a partir do grupo verbal das orações gramaticalmente tidas como subordinada e principal. Os aspectos expressos são (S2a) e (S2b):

Aspectos expressos:

(S2a) ter permissão para ajudar DC ajudar

(S2b) neg ter permissão para ajudar DC neg ajudar

Encadeamentos evocados:

O gatinho ajudaria Alice no enovelamento se tivesse permissão para isso.

Nesse enunciado, o sentido de suposição parece ter sido desencadeado pelo uso de

desde que, que expressa a relação de dependência da ajuda com relação à permissão: apenas

ocorrerá uma se a outra acontecer. É importante ressaltar, também, que estar disposto a

ajudar é uma paráfrase de esticar de vez em quando uma das patinhas. O locutor, após

apresentar essa imagem, explica-a por meio de uma comparação, introduzida por como se. O sentido de esticar de vez em quando uma das patinhas é demonstrar que quer ajudar, sendo essa ajuda condicionada à permissão para fazê-lo.

Assim como na suposição intrínseca, são evocados aspectos recíprocos normativos; o locutor concorda com (S2b), atribuído à Pessoa TU, e põe o aspecto (S2a), ou seja, apresenta o sentido que quer comunicar através de seu enunciado, e o atribui à Pessoa L. A análise se aparenta àquela do se potencial, e mais uma vez, há um debate entre locutor e alocutário, L sendo responsável pelo posto, e TU sendo responsável pelo conteúdo subentendido. O encadeamento evocado, por sua vez, é a paráfrase do aspecto argumentativo posto pelo locutor, sendo ele quem faz aparecer de modo explícito a suposição. Portanto, embora o enunciado não tenha as marcas clássicas da suposição, seu conteúdo argumentativo, que é a explicação do seu sentido, é suposicional.

Trecho 3

Há esta sala que você pode ver através do vidro – é uma sala igualzinha a nossa sala de visitas, só que as coisas estão todas viradas para o outro lado. (S3 55) Eu posso ver tudo, quando subo em uma cadeira. Só não consigo ver o pedacinho que fica atrás da lareira. Ah, eu gostaria tanto de poder ver este pedacinho também! p. 23

Nesse trecho, o enunciado que destacamos é (S3 55) Eu posso ver tudo, quando subo

em uma cadeira. O sentido de suposição parece ser evocado pelo articulador quando, que

estabelece a possibilidade de Alice poder ver o que há na sala da Casa do Espelho condicionada à ação de subir na cadeira. (S3 55) comunica o conteúdo argumentativo abaixo, composto pelos aspectos (S3a) e (S3b) e pelo encadeamento evocado:

Aspectos expressos:

(S3a) subir na cadeira DC ver

(S3b) neg subir na cadeira DC neg ver

Encadeamentos evocados:

Se Alice não sobe na cadeira, ela não vê o que há na sala da Casa do Espelho.

A análise polifônica indica que o locutor põe o aspecto (S3a) e o atribui à Pessoa L, e concorda com o aspecto (S3b), atribuindo-o à Pessoa TU. Mais uma vez, trata-se de um debate entre locutor e alocutário, sendo o encadeamento evocado a paráfrase do aspecto posto pelo locutor, e o aspecto recíproco normativo, caracterizado como um subentendido, que, portanto, não pode ser incorporado à significação do enunciado por se tratar de um efeito da enunciação.

O articulador quando, no entanto, nem sempre desempenha essa função e tem o sentido de suposição. No trecho abaixo, seu sentido é temporal; não há dependência de mesma natureza que a anterior entre os segmentos articulados por quando no trecho 4, que para Barbisan (no prelo) constitui-se um pronome relativo:

Trecho 4:

Pois olhe, tenho certeza de que as árvores parecem estar sonolentas no outono, quando as folhas vão perdendo a cor e ficando castanhas. p. 22

No trecho 5, a articulação é feita pela expressão a não ser que. Vejamos:

Trecho 5

[Rei diz] – Que horror, que horror! Que susto passei naquele momento! – prosseguiu o Rei. – Eu nunca, jamais, hei de me esquecer!

[Rainha diz] – (S4 56) Vai esquecer, sim – replicou a Rainha. - A não ser que faça uma anotação bem detalhada em seu Livro de Memorandos. p. 31

Nesse trecho, é interessante analisar o debate entre aspectos expressos pelo trecho, no qual há um debate entre o ponto de vista expresso pelo locutor-Rei e pelo locutor-Rainha: (S4a) sofrer trauma DC neg esquecer

(S4b) sofrer trauma PT esquecer

O aspecto expresso (S4a) é posto pelo Locutor-Rei, e atribuído a si próprio. Já o aspecto (S4b) é de responsabilidade do Locutor-Raínha, pelo qual ela opõe-se ao discurso do locutor-Rei apresentando um aspecto que lhe é converso. O tema de debate entre os dois

locutores é o possível esquecimento do susto que o Rei teve. Pela continuidade da fala do Locutor-Rainha em (S4 56), não há proposição de um novo bloco semântico, portanto um novo sentido, mas uma mudança na relação que o termo esquecimento apresenta, como se fosse a apresentação de uma nova argumentação externa:

Aspectos expressos

(S4c) neg tomar nota DC esquecer (S4d) tomar nota DC neg esquecer.

Encadeamentos evocados:

Se o Rei fizer uma anotação em seu Livro de Memorandos, não se esquecerá do susto que levou.

Se o Rei não fizer uma anotação em seu Livro de Memorandos, esquecerá-se do susto que levou.

Nesse caso, a observação de Carel (2011b, p. 132) a respeito da apresentação de aspectos recíprocos para a argumentação externa é verificada, uma vez que (S4c) é a AE do termo positivo X – esquecer – e (S4d) é a AE do termo negativo neg-X – não

esquecer/lembrar. No entanto, ela pode também ser vista como uma argumentação interna

ao enunciado, ou seja, como o conteúdo comunicado pelo enunciado que destacamos no trecho em análise, em que há um debate de pontos de vista: a não ser que introduz outro posicionamento em relação à norma apresentada por (S4c) pelo seu recíproco normativo, em que há uma espécie de exceção à regra. A análise polifônica indica que o aspecto (S4c) é aquele com o qual o locutor-Rainha concorda e atribui à Pessoa TU, e o aspecto (S4d) constitui o posto pelo locutor, atribuído à Pessoa L. O sentido de suposição é evidenciado pelo segundo componente do conteúdo argumentativo, que é o encadeamento evocado. Nele o sentido de suposição fica evidente, e constitui uma paráfrase do aspecto argumentativo posto pelo locutor.

A análise apresenta traços em comum com as análises da suposição intrínseca, e com os outros dois casos apresentados de suposição derivada.

Trecho 6

Havia um livro sobre a mesa, perto de Alice e, enquanto cuidava do Rei (porque ainda estava um pouco ansiosa a seu respeito e (S5 57) conservava o vidro de tinta à mão para jogá-la em

cima dele, caso desmaiasse de novo), ela começou a folhear suas páginas a fim de encontrar alguma parte que pudesse ler. p. 32

Nesse trecho, o sentido de suposição parece ser desencadeado pelo uso de caso. Ele coloca em relação o desmaio do Rei e a atitude de Alice, de lhe jogar a tinta do frasco que estava em sua mão, relação expressa pelo conector normativo DC. O conteúdo argumentativo é composto pelos aspectos expressos e pelo encadeamento evocado apresentados abaixo:

Aspectos expressos:

(S5a) desmaio DC tinta

(S5b) neg desmaio DC neg tinta

Encadeamentos evocados:

Se o Rei desmaiasse, Alice jogaria nele tinta para despertá-lo.

Se o Rei não desmaiasse, Alice não jogaria tinta nele para despertá-lo.

Nesse trecho, o encadeamento evocado também apresenta-se como uma paráfrase do aspecto posto pelo locutor, que é (S5a), e atribuído à Pessoa L. Já o aspecto (S5b) é aquele com o qual o locutor concorda, e o atribui à Pessoa TU. Assim como nos demais casos, os aspectos expressos são recíprocos normativos do mesmo bloco semântico, e o encadeamento evocado, responsável por exprimir o sentido de suposição, é a paráfrase do aspecto posto pelo locutor, que apresenta o conteúdo que o locutor deseja comunicar.

O que a análise dos exemplos acima nos mostrou é que a suposição pode ser expressa por conjunções ou expressões diferentes de se, sendo o sentido de suposição derivado do uso desses termos e evidenciado apenas quando seu conteúdo argumentativo é descrito.

Assim como nos casos de suposição intrínseca, os casos acima de suposição

derivada apresentaram características comuns: um debate de pontos de vista entre locutor e

alocutário, demonstrada pela análise polifônica, em que o aspecto posto deve ser incorporado à significação do enunciado, e o aspecto ao qual L dá sua concordância permanece como um efeito da enunciação, como um subentendido atribuído à Pessoa TU; como resposta a um questionamento a respeito da enunciação do Locutor. A figura abaixo ilustra a relação entre os aspectos expressos pelos enunciados que escolhemos para a análise da suposição derivada:

Figura 15: aspectos argumentativos expressos pela suposição derivada

neg A DC neg B (3) recíprocos (4) A DC B Fonte: Figura criada com base na análise dos dados

Conclusão 5: O sentido de suposição pode ser desencadeado não apenas pelo uso de se, mas

por outras conjunções ou expressões que, num uso determinado da língua, de acordo com as relações que estabelecem com outros termos, são capazes de produzir esse sentido, evidenciado pela análise do conteúdo argumentativo dos enunciados e pela polifonia, pela descrição completa da unidade de discurso do enunciado, proporcionando uma explicação do seu sentido.

Não temos a pretensão, no entanto, de esgotar as análises de suposição derivada, mas apenas mostrar, com a análise dos exemplos acima, que é possível haver um sentido de suposição desatrelado da forma canônica que apresentamos na suposição intrínseca. É justamente por esse motivo, por se tratar de um sentido derivado das relações entre os termos do enunciado, que denominamos de suposição derivada.

Tabela 5: Comparação parcial dos resultados

Suposição intrínseca Suposição

derivada

Se potencial Se hipotético Condicional

irreal

Aspectos expressos

Recíprocos normativos do mesmo BS

Encadeamentos evocados

Há um encadeamento evocado para cada um dos aspectos expressos

Análise polifônica O aspecto posto pelo locutor é atribuído à Pessoa L; O aspecto com o qual o locutor concorda é atribuído à Pessoa TU

O aspecto posto pelo locutor é atribuído à Pessoa L; O aspecto com o qual o locutor concorda é atribuído à Pessoa TU O aspecto posto pelo locutor é atribuído à Pessoa L; O aspecto excluído pelo locutor é atribuído à Pessoa TU O aspecto posto pelo locutor é atribuído à Pessoa L; O aspecto com o qual o locutor concorda é atribuído à Pessoa TU Fonte: tabela elaborada com base na análise dos dados

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