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4. As Narrativas

4.1. O Dia dos Prodígios

4.1.2. Técnica narrativa

Tendo em conta as referências temporais da narrativa, a história (tempo da diegese) começa no Verão de 1973 e termina na Primavera de 1974. De facto, os eventos narrados terminam poucos dias após o início da revolução de Abril. O povo esperou dez dias pela chegada dos militares que vinham anunciar a liberdade, o progresso e a justiça. E, entre o relato desse facto

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e o episódio da cobra voadora com que abre a diegese apenas passara um Outono, um Inverno e a Primavera.

O narrador é alheio à história narrada, sendo, portanto, heterodiegético, e adopta uma focalização externa. Apresenta a história no início da narrativa como se apresentaria uma peça de teatro. Ao longo da narrativa, porém, a história é contada quer pelo narrador quer em discurso directo pelas personagens. Nalguns casos há ainda as vozes populares a corroborarem ou comentarem a narrativa numa espécie de coro. É um exemplo que nos remete para a classificação clássica de Platão de narrativa mista, já que nela se verificam as duas modalidades de narrativa que, na senda daquele clássico, viriam a designar-se por

diegese e por mimese e que, segundo ele, se usavam na epopeia e em muitos outros géneros 70. A narração reveste preponderantemente a forma da oralidade. Como observou com justeza Élida Jacomini Nunes

"entende-se que O Dia dos Prodígios apresenta características da fala não só na explicitação dos diálogos entre as personagens, mas em toda sua escrita. A oralidade é representada, além de por palavras, também por recursos gráficos, de estruturação do texto, gerando a sensação, no leitor, de ouvir e de ver as personagens em interacção, ao longo da narrativa." 71

A importância das vozes dos outros, a heteroglossia que Bakhtine tratou exaustivamente no estudo sobre o discurso no romance 72, assume nesta narrativa formas variadas; o narrador produz em parte um discurso próprio, mas a parte mais importante da narração é confiada a outras vozes que intervêm na narrativa com a sua própria visão do mundo. Por vezes acontece ainda que a narradora se refere à voz dos outros, reproduzindo-a segundo as palavras que esses outros usariam e a visão do mundo desses outros. Todas estas formas de construção do discurso, correspondentes ao uso do discurso directo, do discurso indirecto e do discurso directo livre, se integram na perspectiva semântica do narrador, que dá sentido global à obra:

“Le roman c’est la diversité sociale des langages, parfois de langues et de voix individuelles, littérairement organisée» 73. «Le discours de l’auteur et des narrateurs, les genres intercalaires,

70

PLATÃO, República, tradução francesa de Robert Baccou para GF Flammarion, Ed. Garnier-Frères, Paris, 1966, Livro III, 392b a 394b. No diálogo de Sócrates com Adimante, Sócrates afirma: "Há então uma primeira espécie de poesia e de ficção totalmente imitativa que compreende, como disseste, a tragédia e a comédia, e uma segunda espécie na qual os factos são relatados pelo próprio poeta – é o caso dos ditirambos – e uma terceira espécie, resultante da combinação das duas precedentes, que se usa na epopeia e em muitos outros géneros." (tradução nossa da versão francesa). Ver no mesmo sentido Aguiar e Silva, 2004:103.

71

NUNES, Élida Jacomini, A Oralidade em O Dia Dos Prodígios, De Lídia Jorge, Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor em Letras. São Paulo, 2006 in http. //www.teses.usp. br/teses/disponiveis/8/8150/tde-24082007-145522/ (Maio 2008).

72

BAKHTINE, Mikhail, Esthétique et théorie du roman, Gallimard, Paris, 1987, p. 83 e seguintes. O termo heteroglossia parece ter-se referido inicialmente à emergência das línguas nacionais no Renascimento. Em França o termo tem sido subsumido no conceito de plurilinguismo, como acontece na tradução francesa desta obra de Bakhtine. A equiparação dos dois termos é feita numa tese defendida na Sorbonne por Amina Askar a propósito da dramaturgia de Shakespeare: http://www.u-paris-sorbonne.fr/fr/spip. php?article4999 (Maio 2008).

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les paroles des personnages, ne sont que les unités compositionnelles de base, qui permettent au plurilinguisme de pénétrer dans le roman» 74.

Assim, ainda segundo Bakhtine, o discurso resultante da intervenção das diversas vozes é recebido pelo narrador que o utiliza para construir a sua própria mensagem. Com este plurilinguismo o narrador transmite uma visão plurivocal do mundo. Estas diferentes vozes, porém, não representam um diálogo em sentido próprio. O narrador interioriza e apropria-se das vozes dos outros, construindo um diálogo interior 75.

A heteroglossia inscreve-se no confronto entre o monologismo e o dialogismo. O monologismo é a visão uniformizada, normalizada, do mundo, visto numa perspectiva institucional, estabilizada, de pensée unique (Ignacio Ramonet) 76. O dialogismo é a abertura a outras visões do mundo, a outras vozes. Assim, ao introduzir nos seus romances uma profusão espantosa de vozes de outros, Lídia Jorge produz uma escrita de contestação, onde se plasma uma visão plurifacetada da realidade, contrária à visão oficial, monolítica e normalizada do mundo.

No discurso directo das personagens de Prodígios a linguagem é popular, com enorme abundância de termos e expressões regionais e corruptelas gramaticais. Anotamos as mais significativas:

– a forma da primeira pessoa do pretérito perfeito dos verbos da primeira conjugação, em que a terminação ei é sistematicamente reduzida a i: salti, pegui, cegui, alevanti, di (p. 20), julgui (p. 29), andi (p. 30), mati (p. 48).

– a conjugação do gerúndio na segunda pessoa: Em te começandes a almarear (p. 15), em

estandes assim (p. 16).

– a utilização de inúmeros termos ou expressões tipicamente algarvias: Ah punhão! (p. 15),

bertoeja (p. 28), candeio (p. 42) marafar (p. 45), magana (p. 48), altomias (p. 54), felosinha

(p. 71), boleta (p. 81), atafajo, cabrama (p. 123), dar de corpo (p. 159), além de outros termos essencialmente ligados às tarefas do campo ou ao tratamento dos animais.

– A corruptela de algumas palavras: hadem (por hão-de) (pp. 125 e 159), apocalipso (por apocalipse) (p. 154).

Além disso, a oralidade da narrativa é acentuada por uma pontuação que tem a ver com as interrupções e pausas naturais da fala e não obedece às regras da gramática.

Além das vozes em discurso directo, a voz dos outros entra na narrativa pela voz do próprio narrador. Mas o narrador respeita o estilo da voz alheia e integra-o no seu discurso. A

74 BAKHTINE, 1987: 89. 75 BAKHTINE, 1987:103 e seguintes. 76

O termo “pensée unique” é atribuído actualmente a várias paternidades, porque passou a ser usado por diferentes correntes (sobretudo políticas) para designar realidades contraditórias. Usado por I. Ramonet num artigo de Le Monde Diplomatique em 1995 para denunciar o discurso neo-liberal, passou a ser usado como arma de arremesso por vários quadrantes políticos contra os respectivos adversários. Num famoso discurso de campanha eleitoral, Jacques Chirac usou o termo no mesmo sentido de I. Ramonet. Pensamos que é esta a acepção mais generalizada do termo, denotando um certo efeito de homogeneização da classe política face à destruição do Estado pelo capitalismo triunfante.

narração é feita com a forma de expressão do outro, com a visão do mundo do outro. Vejamos o seguinte exemplo, em que o narrador se refere à via láctea na visão de Maria Reböla:

“No ar havia um sussurro de coisas acontecidas. (…) Mas era preciso Maria Rebola chegar para se saber que a estrada de Santiago divide o céu ao meio, divisão à banda, de nebulosa hesitante. O santo deixando o rasto de fumo. Perdendo-se, regressando sobre os passos à procura duma feira. A feira dos passos perdidos, para trás, para trás, para trás. Tudo o que foi para diante. (…) e as sandálias do santo, ali, ali, ali e ali. Nem com os óculos, oh Esperancinha, eu vejo, eu vejo a estrada. Maria Rebola é redonda como uma cabaça, e as ancas lembram dois pomos gémeos” (p. 33).

Nesta simples passagem há três vozes que se manifestam: a voz do narrador usando o seu próprio discurso; a voz de Maria Rebola transmitida pelo narrador (em itálico). E a voz de José Jorge Júnior, em discurso directo. O mesmo acontece quando o narrador apresenta a personagem de Pássaro Volante: “Depois José Pássaro Volante. O que tem três certezas. (…) Sabe que a terra não é redonda, mas o horizonte um círculo abobadado de azul e cinza, conforme a hora do dia e o mês do ano. Que se desloca atrás de si e das bestas para onde quer que vá.” (p. 36).

O narrador apresenta a personagem e reproduz a sua visão do mundo. Não há aqui nenhuma desvalorização do discurso alheio77. A visão do mundo da personagem é respeitada e integra-se na descrição do universo social feita pelo narrador.