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O Vento Assobiando nas Gruas

3. Análise comparativa das obras

3.3. Eventos e posição das personagens

3.3.4. O Vento Assobiando nas Gruas

Há em Gruas um elemento contextual fundamental, a revolução de Abril, objecto de elipse narrativa, mas pressuposto em vários momentos, dado que este evento determina em boa parte as transformações sociais narradas. É verdade que é um evento anterior ao tempo da história, tal como nos é apresentada pelo discurso. Mas a narrativa opera várias anacronias externas 48, isto é, vários troços narrativos que se reportam a um tempo anterior ao início da história, e, mesmo nessas anacronias, não se lhe faz referência expressa. Esse evento está subjacente às grandes transformações narradas: à decadência da Fábrica Velha, à entrega da mesma aos trabalhadores, ao seu posterior encerramento, à sua utilização como residência da Terceira Vaga e à sua final destruição. Explica com probabilidade o facto de os Mata terem vindo para Portugal. Dá sentido à actividade política de Rui Ludovice e às suas relações com os munícipes. Todas estas transformações são contadas numa narração anacrónica que pressupõe um elemento maior determinador do paradigma de relações sociais. Sem um evento subentendido que alterasse completamente as relações de produção e a manifestação do poder nas empresas não teria explicação lógica a entrega da fábrica aos trabalhadores em 1975. Também não teria explicação lógica a afirmação de Afonso que defendia que teria sido melhor a intervenção do Estado e a consequente indemnização. Estas transformações, embora não sejam objecto de desenvolvimento no texto (já que só alguns indícios são referidos), formam, por assim dizer, um contexto.

Na história narrada podemos tomar como preponderante a vida da protagonista Milene Leandro. E a força perturbadora neste caso é o crime cometido contra a sua integridade física, que a transforma duma mulher inteira numa mulher diminuída, infecunda. Não é por acaso que o núcleo central da narrativa se chama “História de Milene”. É um crime cometido por interesse, porque há interesses contraditórios que se jogam sobre a vida de Milene.

O seu aliado é Antonino Mata, seu namorado, que tenta protegê-la até ao dia da mutilação na Clínica das Salinas. Também a família de Antonino, que a adverte para os seus direitos na herança da avó Regina e a avisa de possíveis abusos por parte dos tios. Antonino quererá depois vingar-se da mutilação feita a Milene. Também a prima de Milene, que se assume como narrador, está ao lado de Milene, em nome da cumplicidade da adolescência. Igualmente João Paulo, ausente embora, parece lúcido ao prever um crime na família. Gininha também parece estar sempre do lado de Milene, dando-lhe uma certa protecção. Mas, no final, virá a ceder aos interesses do marido em prejuízo dela. Do lado contrário, como antagonistas, estão essencialmente interesses, e esses interesses têm titulares. O objecto dos interesses é a possibilidade de um grande negócio com a Fábrica Velha. Este negócio serve os concorrentes de Milene à herança da avó Regina. A tia Ângela Margarida e o marido Rui Ludovice; o tio Afonso e a ex-mulher Alda Maria; o tio Dom. Silvestre e a tia Gininha. Quem assume este antagonismo é essencialmente Ângela Margarida, que será a autora moral e uma das mãos do crime. Mas o marido, os irmãos e os cunhados cobrirão o crime com o silêncio cúmplice. Outro elemento determinante é a morte de Regina Leandro, que desencadeia os interesses à volta da herança e o início das relações de Milene com os Mata.

Na cerimónia do enterro, Milene aparece completamente só. É ela que transporta a dor e o luto da família, ausente em férias. O resto da família, incluindo todos os filhos da falecida,

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bem como os conhecidos, não assistem ao funeral. E quando os familiares regressam não exprimem a dor, mas o interesse. Rui Ludovice começa imediatamente a avaliar a Villa Regina (que, em sua opinião, não valia grande coisa) e preocupa-se essencialmente com a sua imagem pública. Ângela Margarida começa imediatamente a falar de processos contra quem deu a notícia da morte. Afonso acusa a falecida de ter morrido de propósito para que os seus filhos se sentissem culpados. E todos tentam apropriar-se dos objectos da falecida. A família Mata manifesta o seu pesar pela morte, acolhe e conforta Milene.

Nas sequências respeitantes à família Mata, há também elementos perturbadores que determinam as mudanças de estado: a imigração para Portugal, a ascensão de Janina Mata King ao universo da fama, a ligação de Antonino com Milene, o interesse de Van der Berg na Fábrica Velha, o comportamento de Gabriel como traficante de droga, o despejo que levará Ana Mata à desesperança e ao suicídio.

A imigração para Portugal constitui um elemento do contexto, que será referido como tal, para explicar a posição das personagens em relação a outras acções.

Na ascensão de Janina Mata King à fama, os coadjuvantes da acção são todos os elementos da família, com especial relevância para Gabriel (que lhe gere a logística e a carreira, juntamente com o manager) e Felícia Mata, que o apoia intensamente e faz a sua publicidade na comunidade do Bairro dos Espelhos. Há algumas reservas da parte da avó Ana Mata, quando percebe que Janina não será a voz dos homens da família, mas algo que escapa à família. A família dividir-se-á a propósito do tráfico de droga. Antonino, quando percebe que o

manager cor de leite se evapora nos meandros do Bairro dos Espelhos, fica decepcionado com

a sua gente e de pé atrás em relação ao irmão Gabriel. Quando é colocado perante o depósito da droga por sua mãe, a primeira ideia é denunciar o caso à polícia. Também o irmão Domingos, apenas desconfiado do tráfico, faz uma espera aos traficantes que usam a carrinha de Janina.

Também a propósito do regresso a Cabo Verde, ambicionado pela avó Ana Mata, a família se divide: todos os membros da família se recusam a projectar sequer a viagem de regresso, o que explica a acção suicidária de Ana Mata, que entra pelas ondas, no gesto simbólico de se fazer ao mar do regresso.

O casamento de Milene com Antonino, sendo uma espécie de epílogo da história de Milene, é o estado final do conflito. É, pois, o episódio que marca uma nova continuidade, acabando com o conflito que fora a vida de Milene. Não há aqui antagonistas, uma vez que os conflitos foram resolvidos a montante. O casamento vem acomodar os interesses de uns e outros: para a família Mata representa o reconhecimento da sua integração bem sucedida. Para a família Leandro é o facto que ilustra publicamente a sua imagem politicamente correcta. A encenação da cerimónia e a colocação alternada de membros das duas famílias é o sinal da pacificação.