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Parte II – As Técnicas do Êxtase

Capítulo 4: Técnicas "arcaicas" do êxtase

Técnicas "arcaicas" do êxtase

O xamã é o primeiro técnico.

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Garcia dos Santos (2003b:70).

Dentre a infinidade de obras das mais diversas áreas voltadas, de alguma forma, ao tema do

xamanismo, uma se destaca por ser talvez a mais influente até hoje: O Xamanismo e as técnicas

arcaicas do êxtase, do historiador das religiões romeno Mircea Eliade,

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na qual se encontra a

seguinte definição de xamanismo:

Uma primeira definição desse fenômeno complexo, e possivelmente a menos arriscada, será: xamanismo=técnica do êxtase3

Apesar da influência dessa obra nos estudos sobre o xamanismo que se seguiram, ela foi

duramente criticada, principalmente por antropólogos e, geralmente, com razão.

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Reiterando uma

dessas críticas contundentes, Nicolas Thomas e Caroline Humphrey afirmam que Eliade "evitou

associar xamanismos particulares ou práticas xamânicas às peculiaridades de ambientes políticos

e sociais".

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Eles não chegam a considerar o xamã de Eliade "uma ficção total", mas mesmo assim

2

Cf. Eliade (1998 [1951]). "Apesar das numerosas reservas que atualmente se faz a essa imponente obra, ela permanece a melhor introdução ao xamanismo, no tocante tanto aos temas abordados quanto à diversidade de tradições culturais descritas" (D'Anglure 1996:506). "O livro de Eliade" é, segundo Piers Vitebsky, "provavelmente a obra simples mais completa sobre o assunto" (Vitebsky 2001a:132) e Jeremy Narby nota que "Eliade entendeu, antes de muitos antropólogos, a utilidade de levar a sério as pessoas e suas práticas e de prestar atenção aos detalhes do que elas dizem e fazem" (Narby 1998:17).

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Eliade (1998:16; itálico no original). Para reiterações desta definição, cf. Eliade (1998:10, 20, 84, 115, 127, 166, 208, 214-5, 226, 240, 244, 264, 287, 293, 329-30, 527, 534, 542, 547, 550; 1972a:41). Seu Dicionário das

Religiões, publicado postumamente em conjunto com Ioan P. Couliano, reforça a persistência dessa definição de

xamanismo: "O xamanismo não é propriamente uma religião, mas um conjunto de métodos extáticos e terapêuticos cujo objetivo é obter o contato com o universo paralelo, mas invisível, dos espíritos e o apoio destes últimos na gestão dos assuntos humanos." (Eliade e Couliano 1999 [1990]:267)

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Eliade é freqüentemente criticado na Antropologia por nunca ter pesquisado o xamanismo fora das bibliotecas – segundo Alice B. Kehoe, pelo menos até a publicação de sua obra sobre xamanismo, "o mais próximo que Eliade havia estado dos 'povos primitivos e orientais' tinha sido uma universidade em Bangladesh" (Kehoe 2000:1; cf. p.40) – e, principalmente, por ter distorcido informações para que se encaixassem em seu projeto purista e essencialista de descobrir "o verdadeiro xamanismo Siberiano" e se adequassem às suas preferências religiosas – como bem notaram Narby e Huxley, Eliade "queria que o xamã fosse para o céu", "priorizava os 'vôos celestiais' em detrimento dos 'infernais'" e suas distinções entre êxtase e possessão "tinham mais a ver com suas crenças religiosas do que com os fatos" (Narby e Huxley 2001:75, 76). Kehoe (2000) faz uma crítica bem fundada (apesar de pouco construtiva e com muitos "pontos cegos"; cf. Kendall 2002) ao livro de Eliade. Vale repetir aqui a síntese das críticas feitas por John Saliba a Eliade, citadas por Kehoe: "Em primeiro lugar, ele não distingue entre fontes primárias e secundárias. . .Em segundo lugar, Eliade, via de regra, não faz nenhum esforço para avaliar as fontes que ele cita e, quando o faz, nem sempre é de uma maneira antropologicamente correta. É importante notar que nem todo relato etnográfico possui o mesmo padrão acadêmico. . .Em terceiro lugar, os escritos de Eliade são um perfeito exemplo de acumulação indiscriminada de fontes. . .Não se percebe que os dados religiosos fornecidos por essas fontes diversas variam quanto à precisão, certeza, interpretação e conteúdo." (Saliba, in: Kehoe 2000:6). Cf. ainda Narby (1998:168 nota 24, 178 nota 7).

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Thomas e Humphrey (1999:1). Segundo Esther J.M. Langdon, Eliade "preocupou-se demais com o xamã enquanto indivíduo deixando em segundo plano o papel social exercido por este" (Langdon 1996:14), e Bernard S.

D'Anglure o acusa de ter "reduzido um sistema simbólico a um estado psicológico" (D'Anglure 1996:506). O fato é que o mais próximo que Eliade parece chegar da (macro)política em seu livro é quando se refere à "história lendária e o folclore da China", segundo a qual "a primeira pessoa que conseguiu voar foi o imperador Chuen (2258-2208 de acordo com a cronologia chinesa)", sendo o "'êxtase' [...] tão necessário a um Fundador de Estado

o colocam ao lado de conceitos como "casta, tabu e mana", estando "mais próximo de uma

essência exótica, uma inversão romântica da racionalidade Ocidental, do que de uma categoria

acadêmica sustentável".

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Advogando a importante proposta de "rehistoricizar o xamanismo"

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e de

"desconstruir esse arquétipo"

8

através de um "livro exploratório", eles sugerem que os xamãs

sejam encarados principalmente como "atores políticos ou mediadores de contradições e

resistências sociais historicamente constituídas".

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Mesmo concordando com as críticas feitas a

Eliade (que de fato oferece uma perspectiva despolitizada de xamanismo, mais preocupada com a

sua dimensão trans-histórica do que com suas relações históricas

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) e com a importância de

quanto as virtudes políticas, pois essa capacidade mágica equivalia a uma autoridade, a uma jurisdição sobre a natureza." (Eliade 1998:485-6)

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Thomas e Humphrey (1999:2). Clifford Geertz já havia colocado "xamanismo" ao lado de "animismo,

"animatismo", "totemismo", "culto de ancestrais" e outras "insípidas categorias através das quais os etnógrafos da religião desvitalizam sua documentação" (Geertz 1978:139), e em 1903 (quase meio século antes da obra de Eliade, portanto) Van Gennep já achava melhor "deixar de lado" a palavra "xamanismo" por entender que ela "não se aplica a nada em definitivo" (Van Gennep 2001:52). Segundo Kehoe, "a idéia Ocidental clássica de xamanismo" que "Eliade aceitou sem nenhuma crítica" é o "estereótipo de selvagens distantes e primitivos preservando uma religião pura e primordial perdida para os alienados homens cultos civilizados" (Kehoe 2000:3). "'Xamãs' e 'xamanismo'", a autora afirma, "são palavras usadas tão livre e ingenuamente, tanto por antropólogos quanto pelo público em geral, que acabam gerando mais confusão do que conhecimento" (Kehoe 2000:2). Sem em nenhum momento duvidar dos problemas envolvidos no uso inconsistente dessas palavras, por Eliade ou qualquer outro pesquisador, é preciso notar que, se os mesmos pesquisadores que criticam o seu uso ainda assim continuam a usá- las (o título do livro organizado por Thomas e Humphrey, afinal, é Shamanism, History and the State, e todos os textos usam as palavras shaman e shamanism), é porque elas de alguma forma servem para produzir algum conhecimento útil sobre os mais diversos processos rituais (sobre as limitações da crítica de Kehoe ao termo "xamanismo" e as vantagens do uso do termo na antropologia, cf. Kendall 2002).

7

Thomas e Humphrey (1999:2). O problema da deshistoricização eliadeana do xamanismo é, como mostra Greene, "a maneira como os xamãs são geralmente colocados em um papel atemporal e mítico ["xamanismo como 'reserva' cultural [...] de identidade étnica pré-conquista, atemporal, mítica, pré-histórica, primordial", "sobrevivência cultural", "um fenômeno anterior e arcaico"] para servir à mitologia Ocidental", aquilo que ele chama de "o pré-ser [ante-self] do Ocidente" (Greene 1998:641-3).

8

Thomas e Humphrey (1999:11).

9

Thomas e Humphrey (1999:1).

10

Eliade (1998) se interessava, afinal, sobretudo pela "anistoricidade da vida religiosa" (p.9), por aquilo que chamou de "fenômeno originário" (p.4) – como "os sonhos de ascensão, as alucinações e as imagens ascensionais que se encontram pelo mundo afora" (p.4), "situações-limite obtidas pelas primeiras tomadas de consciência do homem arcaico" (p.82), "a vontade de superar a condição profana, individual, e de atingir uma perspectiva transtemporal" (p.82), "uma reimersão na vida originária" (p.82), "esse não-sei-quê irredutível" (p.5) –, "herança proto-histórica comum" (p.479) "constitutiva da condição humana e, por conseguinte, conhecida pela humanidade arcaica em sua totalidade" (p.547), que "pertence ao homem como tal, em sua integridade, e não como ser histórico" (p.4), é "independentemente de qualquer 'condicionamento' histórico" (p.4) e que "talvez nos revele a verdadeira situação do homem no cosmos, situação esta que – jamais nos cansaremos de repetir – não é unicamente 'histórica'" (p.5). Para Eliade, "o condicionamento histórico de um fenômeno religioso [...] não o esgota completamente" (p.4) e "nenhuma religião é inteiramente 'nova'", sendo sempre uma "reorganização, renovação, revalorização, integração de elementos – e dos mais essenciais! – de uma tradição religiosa imemorial." (p.24). Daí sua afirmação de que "[a]s experiências dos profetas monoteístas podem repetir-se, malgrado a enorme diferença histórica, no seio da mais 'atrasada' das tribos primitivas; basta para tanto 'realizar' a hierofania de um deus celeste, deus testificado em várias partes do mundo, ainda que no momento esteja praticamente ausente da atualidade religiosa" (p.8); e sua idéia de "um arquétipo de 'conscientização existencial', presente tanto no êxtase de um xamã ou místico primitivo quanto na experiência de Er, o Panfílio, e de todos os outros visionários do mundo antigo que, ainda em vida, tiveram conhecimento do destino do homem após a morte" (p.429). Segundo Eliade, o historiador das religiões

"rehistoricizar" a teoria sobre o xamanismo, parece-nos demasiadamente apressado afirmar que

"qualquer interesse" em definições mais gerais do xamanismo "exige a supressão da dimensão

política".

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Afinal, não poderia haver na obra de Eliade (e nos esforços de definição em geral)

nenhuma contribuição para a compreensão das práticas rituais normalmente rotuladas de

xamânicas? Diferentemente do que defendem aqueles para quem os esforços de Eliade "não

produziram um paradigma frutífero"

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– e mesmo em acordo com a maior parte de suas ressalvas

– acreditamos que sim.

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A idéia de que exista um "xamanismo" em geral independente dos "xamãs" particulares é,

sem dúvida, apenas uma ficção metodológica. Cada sociedade tem seus próprios rituais de

iniciação ao xamanismo, e mesmo dentro de uma mesma sociedade esses rituais podem variar de

acordo com o caso. Além disso, atualmente já se sabe que a palavra "xamã" indica menos algo

que se é e mais propriamente algo que se tem ou que se pode –uma capacidade, um poder que a

pessoa adquire e que ela pode também perder.

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Por fim, é preciso nunca esquecer que o olhar

"apega-se, de um lado, ao concreto histórico, mas esforça-se, de outro, por decifrar o que um fato religioso revela de trans-histórico através da história" (p.6), considerando "toda história [...] uma queda do sagrado, uma limitação e uma diminuição" (p.9), o oposto dos sonhos, nos quais "o tempo histórico é abolido, recuperando-se o tempo mítico", no qual "se atinge a vida sagrada por excelência", "se restabelecem relações diretas com os deuses, os espíritos e as almas dos antepassados" e é possível "assistir ao começo do mundo e, assim, tornar-se

contemporâneo tanto da cosmogonia quanto das revelações míticas primordiais" (p.123). Cumpre notar, enfim, que Eliade declara saber que "em nenhuma parte da história das religiões lidamos com fenômenos 'originais', pois a 'história' ocorreu em todos os lugares, modificando, refundindo, enriquecendo ou empobrecendo as concepções religiosas, as criações mitológicas, os ritos, as técnicas do êxtase" (p.23-4).

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Thomas e Humphrey (1999:3). O leitor encontraria uma prova contrária a esse argumento poucas páginas adiante no mesmo livro, no ótimo texto de Hugh-Jones, que é em grande parte um esforço teórico por "revelar insights" sobre as complexidades histórico-políticas do xamanismo a partir de uma interpretação de suas diferentes manifestações amazônicas a partir de uma divisão "típico-ideal" entre xamanismos verticais e horizontais (cf. Hugh-Jones 1999).

12

Langdon (1996:14).

13

Mesmo quando Kehoe critica antropólogos como Reichel-Dolmatoff, Peter Furst e Barbara Myerhoff por terem aceito a terminologia eliadeana (cf. Kehoe 2000:44-5), parece-nos que a própria aceitação dessa terminologia por antropólogos em contato direto com aquilo que escolheram chamar de "xamãs" revela algo de sua potencialidade. Kehoe pergunta: "Há algum benefício em usar na mesma palavra 'xamã' para se referir a Ramón, o mara'akáme executando saltos voadores sobre uma alta cachoeira [xamã Huichol pesquisado por Furst e Myerhoff], o homem sul-americano desacordado por horas sob o efeito de drogas poderosas [xamã Desana pesquisado por Reichel- Dolmatoff] e o siberiano que toca seu tambor, canta, dança e hiperventila até o colapso?" (Kehoe 2000:45) Segundo Furst, Myerhoff, Reichel-Dolmatoff e mais dezenas de antropólogos, parece que sim, desde que ver "algum benefício" em usar a palavra "xamã" e parte da terminologia eliadeana não implique em concordar com tudo ou mesmo com a maior parte daquilo que ele fala (o que faria, de fato, pouco sentido) (cf. Kendall 2002).

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As variações sobre o tema são diversas. Dominique T. Gallois, por exemplo, mostra que entre os Waiãpi, "pajé" (traduzido como "xamã") é algo que se tem e que se pode muito facilmente perder: "Todos podem 'ter pajé'", "[m]as são raros aqueles que conseguem [...] conservar-se neste estado, normalmente precário" (Gallois 1996:51; cf. pp.40-2 e 51-61; 1985:190) – vale notar, no entanto, que "[i]ndividualmente, pode-se perder o –paie, mas o –

paie nunca se perde, não se esgota, não morre" (Gallois 1996:49). Waud H. Kracke, por sua vez, afirma que o

conceito Kagwahiv de ipají (pajé, xamã) é menos uma função estabelecida do que "uma qualidade encontrada em certos indivíduos: ser dotado desse poder é como ser generoso, alto, bravo ou belo" (Kracke 1992:129); como ele ouviu repetidas vezes: "Qualquer um capaz de sonhar tem um pouco de pajé" (Kracke 1992:137, 139, 143).

que cada pesquisador, em cada época e contexto, lançou sobre cada xamã, certamente influenciou

não apenas aquilo que ele viu, mas também aquilo que outros viram através dele.

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Assim não

podemos, a princípio, falar de "xamanismo" a não ser como um "tipo-ideal"

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sempre provisório e

contingente construído por induções a partir de estudos particulares de casos particulares.

Mas se a análise comparativa de práticas xamânicas tradicionais em uma enorme

variedade de sociedades diferentes não nos oferece mais do que um "tipo-ideal", isso não nos

impede necessariamente de usar uma tipologia como recurso interpretativo. Ocorre que não

explicar tudo é muito diferente de não explicar nada. É preciso apenas atentar para que a forma

"xamanismo" nunca deixe de se informar pelas singularidades da matéria dos "xamãs", nunca se

torne um molde acabado que então só reduziria esta matéria a uma forma pré-estabelecida.

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Em

outras palavras, é preciso não confundir o "tipo" – que busca apenas construir um objeto ideal a

partir daquilo que é comum aos casos – com o "conceito" – que busca então penetrar na

singularidade do objeto assim construído. Talvez o mínimo que se deva esperar de um bom

conceito é que ele seja "bem talhado"

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e não um leito de Procusto, e parece-nos que a força e a

boa aceitação

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da definição de xamanismo como técnica do êxtase se deve principalmente ao

Viveiros de Castro afirma que "os Araweté nunca definiram uma classe de seres pelo critério ipeye hã ["potência xamânica ou espiritual"]; eles apenas apontavam esse poder em tal espécie de ser, em tal outra, etc.", e que "a raiz –

peye [pajé, xamã] pode ser tanto substantivada quanto entrar em construções verbais" (Viveiros de Castro

1986a:207 nota 19). "Xamã", assim, é "algo que se 'tem'", "uma qualidade ou capacidade adjetiva ou relacional", uma "função" (Viveiros de Castro 2004:5). Grim, enfim, nota que a palavra "xamã", na sua concepção siberiana original, funciona tanto como um substantivo quanto como um verbo (cf. Grim 1981:2).

15

Jeremy Narby e Francis Huxley (2001) mostram isso muito bem numa coletânea de 64 textos sobre xamanismo em que o primeiro data de 1535 – quando o cristianismo estigmatizava o xamanismo como demoníaco e os

pesquisadores que o levassem a sério como pecadores – e o último de 2000 – quando o xamanismo já é tratado como uma forma específica de produção de conhecimento ao lado da ciência. Segundo os editores, se algo mudou nos últimos cinco séculos de pesquisas sobre o xamanismo, foi "o olhar dos pesquisadores" (Narby e Huxley 2001:8). Sobre isso, cf. também Vitebsky (2001a:130-5).

16

Consideramos útil a definição weberiana de tipos ideais como "construções racionais, técnico-empíricas" ou "máquinas racionais de pensar" (Weber 1992:394). O tipo ideal, Weber propõe, não se mistura à realidade dos fatos, servindo apenas como "recurso técnico" (Weber 1963:372), "um conceito-limite, puramente ideal, em relação ao qual se mede a realidade a fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus elementos importantes" (Weber 1992:140).

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Essa formulação se inspira em Simondon (1992) e em Viveiros de Castro (2002a).

18

Segundo Bergson, "o inconveniente dos conceitos demasiadamente simples" é que "cada um deles retém do objeto apenas o que é comum a este objeto e a outros" (Bergson 1974:23). Daí seu apelo por trabalhar apenas "sob medida", por elaborar um método que dedica "um esforço absolutamente novo para cada novo objeto que estuda", que "talha para o objeto um conceito apropriado somente ao objeto, conceito de que se pode dificilmente dizer que seja ainda um conceito, pois somente se aplica a uma única coisa" (Bergson 1974:29). Deleuze remete o valor atribuído por Bergson ao "bom alfaiate" e às "vestes feitas sob medida" para definir o "conceito preciso" a um certo platonismo (cf. Deleuze 1999:34).

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A influência dessa definição de xamanismo como técnica do êxtase pôde ser observada principalmente nos estudos de orientação histórica – e.g. Pike (1958) , Bongard-Levin e Grantovsky (1977), Sullivan (1988), Flaherty (1992), Ripinsky-Naxon (1993) e König (1998) –, mas pudemos notar também a sua presença (geralmente implícita) em muitos estudos de orientação antropológica – e.g. Lewis (1971), Lins (1985), Crocker (1985:19-20, 22), Müller (1985; 1990:178), Langdon (1992a; 1996:9-37), Baer (1992), Kracke (1992), Wright (1992), Wright (1998:85, 89-

fato de que ela dá conta do fenômeno e é capaz de se deixar informar por cada nova descoberta,

principalmente por ter captado uma característica fundamental do xamanismo, a saber: a

capacidade do xamã de controlar tecnicamente o seu próprio êxtase e aquele dos outros.

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Assim,

se é verdade que não existe um xamanismo em geral, apenas xamãs particulares, também é

verdade que um elemento comum a todos os xamãs conhecidos certamente pode dar origem, após

um certo trabalho bergsoniano de purificação, a um conceito operativo de xamanismo como

"objeto singular". Deleuze mostrou bem como a "obsessão pelo puro" em Bergson define o seu

método intuitivo como "um verdadeiro método de divisão" que busca nas "tendências" do real as

suas "diferenças de natureza"

21

e como esse método comporta dois momentos, cada qual com sua

divisão e dualismo específicos:

No primeiro tipo [de divisão], tem-se um dualismo reflexivo, que provém da decomposição de um

misto impuro: ele constitui o primeiro momento do método. No segundo tipo, tem-se um dualismo

genético, saído da diferenciação de um Simples ou de um Puro: ele forma o último momento do método, aquele que reencontra, finalmente, o ponto de partida em um novo plano.22

É como ponto de partida para esse processo de purificação conceitual que pretendemos aqui

adotar a definição eliadeana de xamanismo como técnica do êxtase, sendo o "segundo momento"

desse processo aquele da "diferenciação" desse conceito purificado no caso específico da música

eletrônica.

23

Não nos deteremos aqui na malfadada busca de Eliade pelo "xamanismo stricto sensu"

24

e

pelo "fenômeno xamânico em si"

25

, já criticada com muita propriedade dentro da Antropologia.

90), Reichel-Dolmatoff (1997:121-47; cf. Kehoe 2000:44-5), Narby (1998), Hugh-Jones (1999), Peter Furst e Barbara Myerhoff (cf. Kehoe 2000:44-5), Vitebsky (2001a), Narby e Huxley (2001:4, 75-6, 135). Vale notar ainda que, antes de Eliade, William James (1902) e Max Weber (1963 [1915]) já haviam se dedicado ao estudo de algumas técnicas do êxtase.

20

Em uma abrangente pesquisa, Larry G. Peters e Douglas Price-Williams afirmam que "[q]uase todos que escreveram sobre o tema apontam o êxtase como o ingrediente inescapável do xamanismo", sendo "o elemento comum em todos esses relatos o fato de o xamã […] manter o controle de seu êxtase" (Peters e Price-Williams 1980:398-9). Langdon confirma que "a experiência extática é o critério essencial" (Langdon 1992a:16) do poder xamânico, e um exemplo de confirmação etnográfica explícita das teses eliadeanas no xamanismo sul-americano pode ser encontrado em Lins (1985).

21

Cf. Deleuze (1999:15, 130-1; itálico no original).

22

Deleuze (1999:77; itálicos no original).

23

Diríamos, mesmo sabendo que dificilmente fazemos jus à nossa inspiração filosófica, que as Partes II e III desta tese correspondem, respectivamente e grosso modo, aos primeiro e segundo momentos do método bergsoniano.

24

Segundo Eliade, a "vida mágico-religiosa" dos povos siberianos e centro-asiáticos gira em torno do xamanismo, pois "em toda essa região, onde a experiência extática é considerada a experiência religiosa por excelência, é o xamã, e apenas ele, o grande mestre do êxtase" (Eliade 1998:16). "Visto que esse fenômeno mágico-religioso se manifestou em sua forma mais completa na Ásia central e setentrional [...] como uma estrutura na qual certos elementos que existem difusos no resto do mundo [...] já se revelam [...] integrados numa ideologia particular que valida técnicas específicas", ele continua, "tomaremos como exemplo típico o xamã dessas regiões." (Eliade

Partiremos da constatação de que, para além de todos os problemas já detectados na sua obra, há

um acordo entre os pesquisadores quanto a pelo menos dois méritos que a ela se pode

seguramente atribuir:

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(1) ter disponibilizado, de uma maneira ordenada e sintética, a enorme

quantidade de pesquisas até então dispersas sobre xamanismo, dando início a uma nova fase no

estudo do fenômeno; e (2) ter proposto uma terminologia unificada, mesmo sem tê-la

1998:18). No entanto, Eliade não parece encontrar nos dados empíricos os subsídios necessários para sustentar sua argumentação em favor desse "xamanismo stricto sensu". O fato é que não mais do que duas páginas após a máxima "[o] xamanismo stricto sensu é, por excelência, um fenômeno religioso siberiano e centro-asiático" (Eliade 1998:16; itálico no original), Eliade é obrigado a afirmar que "[t]al xamanismo stricto sensu não está restrito à Ásia central e setentrional" (Eliade 1998:18; itálico no original). As dificuldades dessa empresa idealista de Eliade eram inúmeras. Como nota Vitebsky, "[h]avia vários tipos de 'xamãs' [na Sibéria e na Mongólia], inclusive no seio de uma mesma sociedade, e até no mesmo acampamento. [...] A idéia do xamã puro ou ideal, tal como apresentada por Eliade, torna-se cada vez mais difícil de sustentar em qualquer pesquisa nesta região social e ecologicamente

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