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Parte II – As Técnicas do Êxtase

Capítulo 5: Tempo mítico hoje

Tempo mítico hoje

Antes do mito havia a realidade e antes da

realidade havia o mito.

1

1

"Before myth there was reality, and before reality there was myth." (Toop 2000a:91)

143

A definição eliadeana de xamanismo como técnica do êxtase nos forneceu um ponto de partida

para a compreensão dessa prática ritual. No entanto, se quisermos compreender o xamanismo da

música eletrônica, será preciso ir além do dualismo trágico e essencialista de Eliade, que vê o

mundo a partir da perspectiva da "queda" e da nostalgia pelo tempo mítico. É preciso agora

colocar em movimento as técnicas xamânicas do êxtase tipificadas pelo historiador, verificar

como elas funcionam em contextos históricos híbridos, no contato dos xamãs com as forças

complexas e heterogêneas de fora de sua sociedade tradicional, contato esse que parece-nos ser a

via de acesso mais consistente aos fenômenos xamânicos contemporâneos. Afinal, o tempo

mítico não ficou para trás, muito menos as técnicas xamânicas que o atualizam a cada ritual.

Antes, se atentarmos para aquilo que os xamãs vêm fazendo em todo o mundo, veremos que o

tempo mítico está mais presente do que nunca e em constante transformação, que os xamãs não

hesitam em sondar suas transformações e atualizar suas próprias técnicas para acessá-lo.

Partamos, então, para além da perspectiva estática e essencialista de Eliade, com uma última

homenagem à sua perspicácia em assuntos relativos ao sagrado, citando sua poderosa fórmula em

favor da realidade dos mitos:

O mito cosmogônico é "verdadeiro" porque a existência do Mundo aí está para prová-lo; o mito da origem da morte é igualmente "verdadeiro" porque é provado pela mortalidade do homem, e assim por diante.2

Não poderíamos acrescentar ainda a essa defesa da "veracidade" dos mitos que o mito da origem

da técnica e dos objetos técnicos é verdadeiro pois as máquinas estão aí para prová-lo? Garcia

dos Santos, após contar que "uma tribo da Nova Zelândia acredita que o avião foi criado por seus

ancestrais",

3

que "o xavante José Luís Tsereté, ou ainda outros índios do Xingu proclamam que

seus povos foram os verdadeiros inventores de toda sorte de objetos técnicos"

4

e que um xamã

Yanomami definiu as longas penas de um de seus adornos rituais como "antenas de rádio",

5

constata que, diante de todos esses fatos, "o homem moderno sorri com desdém", um "sorriso do

2

Eliade (1972b:12). A fórmula de Eliade poderia ser criticada por sua lógica retroativa e auto-realizadora, mas sua potência deriva da homologia que demonstra com o próprio objeto a que se aplica. O fato é que é assim que os mitos (para não dizer qualquer axioma em sua essência contingente e provisória) recebem sua legitimação, como quando um Shipibo aponta para as "listras roxas" que um pássaro tem no bico como uma "prova" de que a narrativa mítica do "Inca malvado" (que "conta que essas listras foram feitas pela bílis que escorreu do fígado do Inca enquanto o pássaro o devorava") "é verdadeira" (Roe 1988:109).

3

Anita Kechickian (1983. "Sauver l'objet technique – Entretien avec Gilbert Simondon", Esprit 76:147-52) in: Garcia dos Santos (2003b:70).

4

Cf. Garcia dos Santos (2003b:70-1).

5

Garcia dos Santos (comunicação pessoal).

presunçoso e do ignorante".

6

Com efeito, por um lado trata-se do sorriso do presunçoso que

acredita saber muito mais do que o índio sobre as máquinas modernas, como se este não

estivesse, com suas afirmações, revelando dimensões ainda desconhecidas dos objetos técnicos. E

justamente por isso, trata-se do sorriso do ignorante, pois revela uma compreensão limitada não

apenas das tecnologias míticas indígenas, mas também das próprias tecnologias modernas que ele

acredita conhecer tão bem.

Argumentaremos neste capítulo, principalmente a partir de casos etnográficos sul-

americanos, que aquilo que Eliade chamou de tempo mítico é, no pensamento indígena,

justamente a fonte de toda a tecnologia (indígena ou não). Afinal, se é a partir do acesso ao tempo

mítico no êxtase iniciático que o xamã recebe os ensinamentos e as tecnologias próprias de seu

ofício, isso sugere já a natureza tecnológica do próprio tempo mítico. Veremos alguns exemplos

de como objetos técnicos considerados "modernos" e exclusivos à civilização Ocidental foram,

segundo muitos povos indígenas, criados pelos seus demiurgos no mesmo processo cosmogônico

que deu origem ao mundo atual. Nosso objetivo será mostrar como o contato dos índios com o

branco e suas tecnologias foi interpretado por aqueles, via de regra, como um retorno do tempo

mítico, tanto em seus aspectos positivos (o poder criativo das tecnologias do branco e a fartura de

riquezas trazidas por eles) quanto negativos (o poder destrutivo das tecnologias do branco e a

agressividade de suas doenças). Consideramos esse um passo necessário para qualquer

compreensão consistente dos xamanismos que atualmente fazem uso da tecnologia moderna, não

através da projeção dos problemas indígenas sobre a sociedade capitalista (que geralmente tem

problemas diferentes), mas sim através do enriquecimento da visão limitada que geralmente

temos de nossas próprias tecnologias.

Mito e tecnologia

Sullivan, que define "tecnologia" como "conhecimento íntimo e sistemático"

7

e considera as

tecnologias dos xamãs extáticos a sua "ciência sistemática da alma",

8

afirma, ao tratar dos

principais pontos comuns à "variedade de mitos da origem humana na América do Sul", que

neles "[a] capacidade de saber por imitação ou representação simbólica constitui a essência da

tecnologia e serve, nas formas de arte, música, uso de ferramentas e ação ritual, como

6

Garcia dos Santos (2003b:71). Cf. também CTeMe (2005a:15-6; cf. 2005b:173-4).

7

Sullivan (1988:406).

8

"The ecstatic's systematic science of the soul" (Sullivan 1988:652).

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fundamento da criatividade e da cultura humana".

9

O que Sullivan mostra é que nas mitologias

sul-americanas a tecnologia figura como uma ação exemplar, um modelo sobrenatural que é

conhecido através do acesso ao tempo mítico, do contato com deuses, espíritos ancestrais e

mestres animais. É, enfim, através da imitação de procedimentos míticos que a tecnologia é

transferida para os homens, atualizada em cada sociedade – exceto, como já vimos, no caso do

xamanismo, onde ocorre uma transferência direta de tecnologia para o corpo do xamã, sem a

necessidade de mediações conscientes ou imitações de atos exemplares.

Falando sobre os Piaroa (Venezuela),

10

Joana Overing conta que o To'pu – que ela traduz

como "tempo mítico"

11

– é nitidamente separado do passado histórico, seus "habitantes" não

sendo confundidos com os ancestrais históricos.

12

To'pu é o mundo de "antes da ruptura", quando

imperava justamente o "tempo mítico [mythic tense]" e os eventos ainda não obedeciam ao

regime do "tempo presente [today time]" em que eles podem ser diferenciados de acordo com

graus de distância e proximidade no passado, presente ou futuro

13

– em outras palavras, "antes da

ordem seqüencial de eventos [before sequentiality]".

14

Interessa-nos aqui particularmente saber

que esse tempo mítico se caracteriza por ter sido um período "de rápido desenvolvimento

tecnológico quando os meios para uso dos recursos da terra foram criados" – "jardinagem, caça,

pesca, preparação de alimentos" –, e que foi encerrado por uma "ruptura" provocada pelo

processo extremo de predação que resultou das disputas dos seres míticos pelo controle dessas

mesmas tecnologias míticas.

15

Dentre as disputas que levaram ao fim do tempo mítico, se

destacam as batalhas míticas entre Wahari (o demiurgo Piaroa) e Kuemoi (seu sogro, criador das

forças da caça, da jardinagem e da preparação de alimentos, as capacidades predatórias

propriamente humanas), consideradas a principal causa do caos e da destruição que levaram à

9

Sullivan (1988:237).

10

Sempre que possível, localizaremos os povos citados a partir da menção, entre parênteses, do Estado (quando no Brasil) ou do país (quando fora do Brasil) em cujo território eles estão situados, expediente que tem o inegável inconveniente de sugerir a existência de um vínculo tácito entre índios e representações estatais (logicamente equivocado, no mínimo, pois os índios já ocupavam seus territórios antes da existência de qualquer representação estatal). Esta foi apenas uma saída contingente que encontramos, diante da multiplicidade de maneiras pelas quais cada antropólogo escolhe localizar o grupo que ele pesquisa, para o problema de localizar geograficamente os grupos aqui citados. Não custa, de qualquer forma, explicitar a grande diferença que há entre conceber os povos indígenas como situados em um Estado particular ou como fazendo parte dele, sendo nossa intenção aqui apenas

situar geograficamente os povos indígenas, nunca vinculá-los a este ou aquele Estado. A diferença entre situar e fazer parte foi inspirada em passagem de Mariza Peirano citada por Viveiros de Castro (1992b:171 nota 2), que

também expressou a mesma idéia quando disse que o Estado "é uma circunstância" para os índios, "e não sua condição fundante" (Viveiros de Castro 2002b:492).

11

Cf. Overing (1991:23). Em inglês, ela usa a expressão before time, o "tempo do antes" (cf. Overing 1990:607).

12 Cf. Overing (1990:607). 13 Overing (1990:607; 1991:29). 14 Overing (1990:607). 15 Overing (1990:607-8; 1991:23).

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ruptura do tempo mítico, dando início à morte e à doença.

16

Nota-se, assim, que as mesmas forças

criativas que permitiam a produção tecnológica da vida acabaram sendo o objeto das disputas

míticas que resultaram no colapso do tempo mítico e em todos os infortúnios atuais dos humanos;

que criação e destruição não se distinguem nitidamente no tempo mítico, o término da criação

mítica sendo, de fato, parte do próprio ato criativo. Mas se o tempo mítico é desde sempre o

tempo da explosão criativa e destrutiva da tecnologia, o que acontece quando povos indígenas se

deparam com as máquinas modernas?

Em um amplo comentário a respeito das relações entre mito e história em algumas

representações nativas sul-americanas do contato com a "sociedade ocidental", Terence Turner

apresenta diversas "variedades de mitos" das quais duas nos interessam especialmente: os "mitos

messiânicos"

17

e os "mitos da desigualdade original".

18

Segundo Turner, os "mitos messiânicos"

normalmente vêem as "forças ou formas sociais destrutivas ocidentais" como "transformações

negativas" de um "princípio nativo de reprodução social" e propõem a "inversão das relações

desiguais entre os nativos e a sociedade Ocidental na situação concreta de contato"

principalmente de três maneiras: "a vitória dos nativos sobre os ocidentais em algum tipo de

disputa mágica ou militar"; "a simples integração, em pé de igualdade, da sociedade nativa na

sociedade ocidental"; ou "a integração dos bens e da tecnologia ocidental em forma de cargo na

sociedade nativa".

19

Sendo a superioridade da "sociedade ocidental" (geralmente apresentada em

termos técnicos e ambíguos) vista como uma "transformação antitética dos poderes reprodutivos

fundamentais da sociedade nativa",

20

esta encontra, nas transformações dos mitos messiânicos,

16

Cf. Overing (1990:615). Justamente por isso, as batalhas entre Wahari e Kuemoi são sempre evocadas nos rituais xamânicos de cura (Overing 1990:615).

17

Turner considera essa variedade mítica um exemplo de "anti-antimito". Sendo um "antimito" aquele que versa sobre "a transformação do princípio nativo de reprodução social no princípio de sua própria dominação pela sociedade ocidental", o "anti-antimito" seria "uma inversão dessa transformação" e portanto uma "negação da negação" (Turner 1988:278). Segundo Turner, os "mitos messiânicos" são "as mais poderosas e complexas estruturas de todos os tipos e subtipos identificados" por ele (Turner 1988:278).

18

Turner vincula esse tipo de mito àquilo que ele chama de "individualismo mitológico" devido ao fato de que os personagens desses mitos são "indivíduos ao invés de sociedades ou relações sociais" (Turner 1988:266). Todavia, parece-nos apressado afirmar que esse tipo de mito envolva indivíduos "ao invés de" grupos sociais, que neles "a ação social coletiva não exerce nenhum papel" ou que neles há a "ausência de dinâmica social", que eles "revelam um certo 'individualismo mitológico', uma contrapartida ideológica primitiva do 'individualismo metodológico', que desempenha uma função análoga nos mitos de origem das Ciências Sociais ocidentais" e que neles "o indivíduo antecede a sociedade" (Turner 1988:266, 271), seja pelo fato de que há sempre dois ou mais indivíduos se relacionando nos mitos, seja, principalmente por considerarmos que qualquer personagem mítico individual é já, desde o início, uma multiplicidade pré-individual (cf. Viveiros de Castro 2002b:419-20, 2004; Andrello 2006).

19

Turner (1988:262). Outras tipologias são certamente possíveis. Wright, por exemplo, afirma que "[u]m dos temas mais comuns encontrados nas ideologias dos movimentos messiânicos e milenaristas da Amazônia indígena é a profecia de uma transformação dos índios em brancos e vice-versa" (Wright 2002:431). Cf. ainda Ertle-Wahlen (1972).

20

Turner (1988:265).

maneiras de reverter, num futuro próximo, um desequilíbrio produzido em algum lugar do

passado. Um bom exemplo desse tipo de mito é o dos "Gêmeos Mágicos Incas" dos Shipibo

(Peru):

Após a batalha mítica em que o "Inca Bom" ("associado ao Céu e ao Sol"), junto com seus espíritos auxiliares metálicos (o "Jaguar Negro de Ferro" e a "Águia de Aço"), destrói o coração do "Inca Mau" ("associado à Água e aos domínios subterrâneos da Lua") escondido dentro de um "Tamanduá de Ferro Gigante", "o espírito do Inca Mau viaja até a longínqua terra dos Gringos, provavelmente os Estados Unidos". Lá, após "ser apresentado ao Presidente" e "construir uma casa de ouro debaixo do palácio presidencial", ele "ensinou aos Gringos como construir máquinas, fábricas e aviões".21 O mito termina então em tom milenarista, com uma declaração do "Inca Bom" "ao seu povo" sobre a paz que se seguiria à expulsão do "Inca Mau" e vinculando o seu próprio "retorno" à reincidência das "catástrofes" "originadas" por ele.22

Turner nota que, nesse mito, "os poderes dos ocidentais" são encarados como os "poderes anti-

sociais" do Inca Mau, expulsos pelo Inca Bom no passado mítico e prometidos aos Shipibo atuais

para um futuro próximo, quando do retorno do Inca Bom na forma de um xamã-messias.

23

Segundo Peter G. Roe, o mito dos "Gêmeos Mágicos Incas" é uma resposta dos Shipibo para a

"contradição básica"

24

envolvida na distribuição desigual de tecnologia (que ficou com os

21

O "Inca Mau" é identificado, nesse relato, a Jesus Cristo, que um missionário norte-americano afirmou ("ignorando" quem ele "realmente era") ser "seu Deus" e ter "dado ao seu povo tudo o que eles tinham" (Roe 1988:125).

22

Nossa síntese da exposição de Roe (1988:124-5; itálicos no original). O mito exposto em Roe (1988) foi coletado originalmente por Angelika Gebhart-Sayer (1986. "Rabe Incabo: The Two Incas" Ms. Voelkerkundliches Institut. Teubingen: University of Tuebingen).

23

Cf. Turner (1988:268). Segundo Roe, os Shipibo sempre se consideraram os "modelos de perfeição humana", ao passo que os outros povos com quem tinham contatos sempre foram considerados "não-humanos" e disponíveis para serem "mortos" ou como fonte de "mulheres" (Roe 1988:110). Com a chegada de "uma classe de seres tecnologicamente e socialmente mais poderosos" eles se viram diante de um inimigo que, como nenhum outro antes, os "subjugava", "explorava ou capturava seu trabalho, seus bens, suas mulheres, suas alianças culturais e suas almas" (Roe 1988:110). Divididos por "sentimentos ambíguos e conflituosos com relação aos ocidentais", entre, de um lado, o "reconhecimento da supremacia técnica dos invasores", a "admiração pelas máquinas dos ocidentais e o desejo pela sua riqueza e potência social" e, de outro, o "sentimento de superioridade sobre os caucasianos", o "desprezo pela aparência desumana e cabeluda, pelos costumes libidinosos (canibalísticos) e pelas más maneiras (anticulturais) dos ocidentais", os Shipibo acabam fazendo dos brancos personagens míticos igualmente ambíguos, ora associados aos deuses "Inca" "bons", ora aos "maus" (Roe 1988:110, 127, 129).

24

"[C]omo podem esses novos seres, que se comportam como os Proto-Humanos fracassados do passado mítico remoto ou os espíritos maléficos e anticulturais da periferia sagrada atual possuir tanta riqueza e poder? Atributos como esses deveriam ser posse exclusiva de seres verdadeiramente culturais como os 'Inca' (heróis culturais) e ancestrais míticos Shipibo." (Roe 1988:110; cf. Turner 1988:267). Ou ainda, numa outra formulação: "Por um lado, os caucasianos são os 'vencedores' históricos, triunfantes com sua tecnologia e organização social superiores. São, assim, junto com seus descendentes mestiços, os herdeiros da riqueza indígena da era dourada. Mas eles não querem compartilhar. Seu caráter desumano (mesquinho, canibalístico) os coloca ao lado dos espíritos 'selvagens' da periferia sagrada [...aligns them with ogres and the 'untamed' forested, mountainous, or watery sacred

periphery]. Eles são figuras anticulturais, condenadas à superação por um retorno do espaço-tempo mítico [...by a mythic topological looping, a deformation of mythic time-space]. A periferia atual se torna o passado remoto pré-

cultural; os homens brancos são equiparados a macacos, duendes e gigantes, os proto-humanos fracassados dos mundos primordiais." (Roe 1988:131)

brancos) e humanidade (que ficou com os índios), e ele se destaca pelo seu tom quiliástico,

25

promovendo a "expectativa milenarista" do retorno (loop), em um "futuro mítico" próximo, de

um novo início dos tempos como o do "passado mítico".

26

Os Shipibo, "[v]erdadeiros humanos",

"triunfarão, mas com as riquezas dos homens brancos", "aceitando alguns e rejeitando outros

elementos da civilização ocidental".

27

Outro bom exemplo desse tipo de mito foi encontrado por Janet M. Chernela entre os

Arapaço (Amazonas), um mito de origem étnica que narra como o demiurgo Unurato nasceu da

relação proibida entre uma mulher casada e uma cobra mágica que se transformava em homem.

Além de narrar a origem dos Arapaço através da trajetória de Unurato, o mito narra também

como eles vieram a assumir sua atual condição terrena periférica em relação ao mundo do branco,

indicando também a possibilidade iminente de que essa condição se reverta numa espécie de

"nova era" milenarista.

28

Expulso do "centro da terra" pela família do marido de sua mãe, Unurato, que é um híbrido cobra/humano, vai parar em Manaus, onde se transforma em humano e se diverte bebendo e dançando. Assumindo definitivamente a forma humana e mutilado (ficando cego de um olho) após ser atingido inadvertidamente por um tiro de espingarda, ele se torna definitivamente um "humano" ("um mero mortal semicego"29), indo para Brasília trabalhar "na construção de grandes edifícios" e conhecendo "todo tipo de coisas: casa, mobília, táxis" – "coisas que não temos aqui", completa o narrador – e andando "no meio de muita gente". Recentemente – "ano passado", segundo o mesmo narrador –, Unurato retornou na forma de um "enorme submarino [...] com luz elétrica [...] tão cheio de coisas que é impossível contar quantas caixas tem lá dentro". Ele trouxe ainda muitos "seres-cobra" (Wai Masa) e "máquinas" – cujo barulho se pode ouvir quando se chega "lá perto" – com as quais eles estão construindo "uma cidade imensa dentro do rio" e que devolverá aos Arapaço sua "antiga prosperidade" e sua "grande população".30

25

Segundo Roe, essa perspectiva mítica dos acontecimentos históricos do contato está fortemente ligada a um movimento milenarista "abortado" ocorrido na região em 1950 sob a liderança da xamã Wasëmea (cf. Roe 1988:112, 128).

26

Roe (1988:112, 128). Essa expectativa envolve "futuras revoltas" lideradas por "xamãs" que "expulsarão os ocidentais" e revelarão "os intrusivos homens brancos [...] pelo que realmente são, apenas mais uma classe de proto-humanos fracassados esperando serem superados por suas próprias 'falhas trágicas', ganância e maldade" (Roe 1988:128).

27

Roe (1988:128-9).

28

A antropóloga menciona também o fenômeno conhecido como "culto cargo" (Chernela 1988:49 nota 10). Apesar de a maior parte dos movimentos milenaristas indígenas que encontramos na literatura ter algumas características de cargo (a expectativa de obter, como que por dádiva, grandes quantidades de bens, máquinas e riqueza dos brancos), há exceções – e.g. os movimentos milenaristas Tukano e Baniwa do final do século XIX, "nenhum dos quais desejava", segundo Wright, "obter a riqueza do homem branco e nos quais tampouco havia a sugestão de cargo" (Wright 2000:11).

29

Chernela e Leed (2002:480).

30

Nossa síntese de um mito que pode ser encontrado em português – idioma em que foi originalmente narrado pelo Arapaço Crispiniano Carvalho – em Chernela e Leed (2002:474-6) e inglês em Chernela (1988:41-3).

Se "[c]om a vinda do homem branco, a área Arapaço se tornou periférica", o mito de Unurato

promete fazer dela novamente "o centro político e sobrenatural do mundo" através de um

"retorno" do demiurgo, da apropriação da "tecnologia do homem branco" e da construção de

"uma grande cidade industrial na cidade natal sagrada da nação Arapaço" por "seres-cobra".

31

"A

história", Chernela conclui, "é endireitada",

32

quando a tecnologia e os bens industrializados,

"historicamente manipulados para atrair os índios para o mundo dos brancos", se tornam o seu

"veículo de independência", uma maneira de "usurpar" o controle dos brancos e usá-lo a favor de

uma "política autônoma".

33

Há, portanto, entre os Arapaço contemporâneos, a idéia milenarista

de que Unurato retornou do mundo dos brancos na forma de uma "sucuri-submarino carregada de

mercadorias"

34

e também de máquinas e trabalhadores que vêm construindo uma nova cidade

sub-aquática próxima à sua aldeia – um novo axis mundi, poderíamos dizer, para o novo universo

que resultou do mítico contato com o branco. O importante aqui é perceber que o que está em

jogo na devolução, por Unurato aos Arapaço, de uma tecnologia e uma qualidade de vida que os

brancos monopolizaram indevidamente até então, é a devolução mais elementar da "fonte de

poder e geração" dos Arapaço, de sua potência criativa de autonomia e autodeterminação, perdida

a partir de um certo contato histórico.

35

Uma outra versão desse mesmo motivo mítico da cobra-demiurgo que se transforma em

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