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Térreo livre com pilotis

No documento As casas de Lucio Costa (páginas 136-145)

G. Fontes ou do “falso modernismo” dos projetos com Warchavchik 35

2. RECORRÊNCIAS PROJETUAIS

2.3 Térreo livre com pilotis

A absorção dos princípios da arquitetura moderna via Le Corbusier por Lucio Costa tem sido uma questão amplamente debatida pêlos historiadores da arquitetura moderna brasileira no que se refere aos fatos, circunstâncias e intensidades em que isso se deu. Não buscando desenvolver ou problematizar esse assunto, nossa leitura parte do princípio, ainda que ele possa ser questionado, de que um certo vocabulário formal arquitetônico constituído por terraços-jardim, janelas corridas, estruturas independentes da vedação, lajes planas e térreos livres com pilotis, nascidos das pranchetas de Le Corbusier entre as décadas de 20 e início da de 30 seriam as portas de entrada para um novo tempo na arquitetura onde tecnologia e estética construtiva procuram caminhos comuns no projeto de edifícios.

Os projetos de residências realizados ao longo da década de 30, como a proposição contemporânea da casa Ernesto Gomes Fontes, as casas sem

dono e os projetos esquecidos seriam justamente os sinais de que essa

leitura de um certo Le Corbusier do início do século por Costa se fazia não só no que se refere à teoria mas, sobretudo, na prática projetual.

Ao empreender uma leitura gráfica livre como a que nos propomos neste trabalho há um esforço deliberado em soltar o olhar em relação a prognósticos e leituras cristalizadas pela historiografia e não reduzir determinados projetos a seus contextos factuais históricos. Queremos dizer com isso que o térreo livre com pilotis (ou quaisquer outros elementos de sustentação vertical como colunas) se apresenta nos projetos de Costa com certas especificidades que nos faz questionar e rever a idéia de que essa característica tenha sido uma mera transposição de uma linguagem arquitetônica moderna “adaptada” para os trópicos.

Sem entrar no terreno da problematização ou cabimento de tais inferências, o que nos interessa olhar nesses espaços térreos sob a laje do corpo da casa é, ao menos no que se refere ao desenho, uma real preocupação de Costa em estabelecer um ambiente agradável, confortável, ameno: redes, cadeiras de descanso, mesinhas estrategicamente guarnecidas de bebidas refrescantes, muitas plantas e espelhos d’água com vitórias-régias. Se esse quintal de vegetação abundante é reminiscência da infância ou uma forma peculiar aos modernos do início do século de pensar a relação do homem com a natureza, uma certeza se coloca: a expressão “livre” conferida ao térreo mostra apenas que não haveria massa construída, porém, uma vida e um uso intensos deveriam ali acontecer. Por que nestas casas sem dono, (FIGURA 38) mesmo que confinadas em lotes urbanos convencionais os térreos livres se tornam grandes varandas.

Costa cria aqui sua resposta a uma questão que a arquitetura moderna coloca aos arquitetos do século XX: de posse de uma tecnologia construtiva que nos permite liberar vãos e desprender a massa construída do solo, o que fazer com esse grande espaço liberado? Se tradicionalmente a varanda ainda se constituía pela coberta alpendrada continuação da água principal sustentada por recorrentes colunas de madeira, ao trazê-la para um espaço debaixo da casa propõe algo absolutamente novo em relação ao que vinha ocorrendo a séculos na arquitetura brasileira: a varanda perimetral.

Se a arquitetura moderna presenteia aos moradores ou usuários dos edifícios com um espaço térreo livre (que se realiza também na escala da cidade como no edifício para o Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro) na casa “brasileira” de Costa esse presente significa, no caso

específico dos projetos das casas sem dono, a possibilidade de ter uma generosa casa de campo mesmo num lote urbano enclausurado; a mensagem subliminar de Costa parece ser a de que a tecnologia construtiva do século XX trabalha a nosso favor.

Não obtivemos dados que nos indicassem uma cronologia precisa a respeito dos projetos das casas sem dono. As fontes levantadas datam esses projetos como tendo sido realizados ao longo da década de 30. O fato é que em 1934 Costa realiza dois projetos que, se por um lado, se avizinham no tocante à pesquisa de uma certa adaptação da realidade nacional às novas tecnologias construtivas, por outro demonstram uma radical revisão de preceitos no que se refere a uma tipologia tradicional brasileira; é o caso da casa para Fábio Carneiro de Mendonça e dos projeto das habitações operárias para a vila de Monlevade. Em ambos há uma busca intensa pela valorização dos materiais construtivos tradicionais no país (o pau-a-pique, a palha, o cimento queimado, a madeira, etc.) através de uma certa atualização na forma como são utilizados (o “barro armado” em Monlevade e a estrutura modular independente de madeira em Fábio Carneiro de Mendonça). No entanto enquanto neste a varanda ainda obedece aos cânones da tradição, naquele ela acontece no térreo sob pilotis (FIGURA 39).

E lá estão novamente a rede, a vegetação abundante, o ambiente de descanso e lazer, da mesma forma como nas casas sem dono. Em

Monlevade o uso dessas “novas varandas” é acompanhado por um preciso

memorial justificativo escrito por Costa:

Tais requisitos10 aconselham, de maneira inequívoca, a adoção do sistema construtivo há cerca de vinte anos preconizado por Le Corbusier e P. Jeanneret, e já hoje por assim dizer incorporado como um dos princípios fundamentais da Arquitetura moderna – os pilotis: “não se estará mais à

frente ou atrás da casa, mas sob a casa”. Com efeito, no caso em apreço, o

emprego do pilotis se recomenda, ou melhor, se impõe, por vários motivos. (...) restitui ao inquilino – protegido do sol e da chuva – toda a área ocupada pela

10

Costa se refere aos princípios que nortearam a adoção dos pilotis no projeto, a saber: reduzir os movimentos de terra, poupar a natureza local e propor um projeto adaptável à topografia local acidentada.

construção, assim transformada em espaço útil, o mais agradável talvez para trabalhos caseiros, recreio, repouso, etc.11

Esse térreo livre seria retomado posteriormente ainda em dois projetos: na primeira e terceira casa para Thiago de Mello (1978) e na casa Saavedra (1942). Mas, ao contrário dos projetos anteriores, esses foram concebidos para clientes e situações concretas e foram, de fato, construídos. Acreditamos que essa diferença cria uma aproximação e uma abordagem acerca do objeto estudado de certa forma distintas. Se nas casas sem dono e em Monlevade estamos diante de exercícios projetuais onde o arquiteto cria de forma mais livre pois subordinado apenas às suas próprias prerrogativas, em Thiago de

Mello e Saavedra a participação de outros personagens na fase de pós-projeto

– construtores, proprietários, fornecedores, enfim toda a gama de pessoas envolvidas na realização do edifício – torna a leitura sobre o objeto mais complexa, pois necessariamente informada da possível atuação desses outros personagens no resultado final do objeto construído.12

Em Saavedra Costa eleva todo o corpo principal da casa onde estão os setores social e de dormitórios obtendo um grande espaço livre sob a laje (FIGURA 40). Os pilotis dão lugar a uma seqüência exata e linear de pilares. Nos desenhos das plantas denomina este local de “jardim coberto”, porém o que a imagem do projeto construído mostra é um grande vazio que, aparentemente, não se destina a nenhum uso determinado a não ser de funcionar como um grande hall de entrada, possivelmente uma garagem generosa. Se nas casas sem dono esse grande espaço livre era o acesso da residência, assim como em Saavedra, e também um jardim exuberante onde se realizariam o lazer e o descanso, aqui desaparecem as mesas com bebidas, as cadeiras e as redes e fica a impressão de um grande espaço vazio, austero e impessoal. De fato não obtivemos material suficiente (entrevistas com os proprietários, outras fotos, etc.) para saber qual uso é feito (ou foi feito)

11

Lucio Costa. “Vila Monlevade”. In: Lucio Costa: sobre arquitetura, opus cit., p. 45.

12

As diferenças entre a leitura de um projeto e a leitura de um edifício construído nos remete a recorrente discussão sobre o fato do desenho de arquitetura – projeto – ser ou não arquitetura em contraposição à idéia de que arquitetura seria apenas o objeto construído. Partidário da posição de que ambos são arquitetura, acredito que, nos limites desse trabalho, importa apenas reconhecer os momentos em que essa diferença aproxima ou distancia a participação de Costa na conformação do partido projetual das casas, ou seja, quais elementos daquele determinado projeto teriam sido propostos por Costa ou foram acréscimos de terceiros em momentos posteriores. Essa observação vale para todos os projetos analisados nesse trabalho.

efetivamente deste espaço, mas a denominação usada por Costa nas pranchas do projeto (“jardim coberto”) nos faz inferir que, talvez, fosse sua intenção reviver em Saavedra aquela riqueza e idílio doméstico, por que não

brasileiros, idealizados em suas casas sem dono. A impressão que fica é de

um projeto latu sensu que Costa arquivava em sua memória e que esperava o momento de se realizar: um projeto de formas mas sobretudo de valores sociais.

Seria em 1978 quando Costa faria sua última tentativa de criar esse lugar doméstico da laje sobre pilotis. Em Thiago de Mello Costa já não arrisca denominar aquele espaço sob a casa de jardim coberto ou varanda (FIGURA

41). Da mesma forma que em Saavedra, a casa toda se eleva do solo,

permanecendo no térreo apenas os cômodos de serviço, depósito e dormitório para empregados. A varanda superior que, junto à ampla escada externa, formam o acesso principal da casa, é outro elemento que aproxima as duas casas. E também, assim como na foto anterior, o térreo livre formado não mais por pilotis mas por delgadas colunas de madeira, se mostra vazio, aparentemente distante da idéia de um local de lazer.

O fato de não se verificarem usos e qualidades precisas nestes espaços sobre lajes projetados em Saavedra e Thiago de Mello não os torna anacronismos ou erros projetuais. A disposição livre dos espaços não subordinados a usos e programas específicos pode contribuir para uma melhor flexibilidade do seu uso ao longo do tempo e na possibilidade de diferentes arranjos.

O que nos desperta a atenção em relação a esse elemento é, primeiro, o fato de que o térreo livre com pilotis (ou colunas de concreto ou de madeira) não foi um mero recurso projetual formal usado nos tempos de incorporação do léxico formal da arquitetura moderna corbusiana (anos 30), mas algo que esteve presente ao longo da produção residencial de Costa.

Em segundo lugar, ao insistir na busca da adequação desse espaço livre sob a laje (ou trama de madeira como em Thiago de Mello) Costa parecia estar buscando realizar em projeto uma domesticidade ou modo de vida que guardava para si como um princípio irrefutável: a mesinha com bebidas, as confortáveis cadeiras e a indefectível rede na varanda.

No documento As casas de Lucio Costa (páginas 136-145)