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Um alojamento e um hotel

No documento As casas de Lucio Costa (páginas 75-81)

G. Fontes ou do “falso modernismo” dos projetos com Warchavchik 35

1.4 Entre o moderno e o nacional

1.4.4 Um alojamento e um hotel

Nos pareceu incompleto fechar essa nossa grande chave (“entre o moderno e o nacional”) sem nos desviar, de certo modo, de nosso recorte central, as casas de Lucio Costa. Estamos nos referindo a dois projetos: o Park

do Estudante do Brasil (1952) na Cidade Universitária de Paris. As razões

desse “desvio” se esclarecem quando focamos os procedimentos e as intenções que envolveram estas duas obras, algo muito próximo de tudo o que viemos discorrendo até aqui.

Nas referências de Costa acerca do projeto para o Park Hotel São

Clemente (FIGURA 14), encontramos não só o modo afetivo com que se

refere a esse trabalho e à amizade como o proprietário, como citamos anteriormente, mas também um nível de controle e participação da obra sem dúvidas instigantes:

Pronta a construção (...), fomos, Dr. César [César Guinle, proprietário do hotel] e eu, comprar louça, na rua Camerino, grossos cobertores de padrão escocês de um lado e lisos do outro, espessas toalhas brancas de banho – grandes, que disto fazia questão – além de lençóis e cortinas, na “Notre Dame” da rua do Ouvidor. Assim, uma noite, entregue aos cuidados de um hoteleiro suíço, a pousada se iluminou para o nosso comovido e mútuo enlevo. 64

Uma obra, uma amizade e, sobretudo, a conformação de um modo de ser e estar no mundo onde a delicadeza, o cuidado e o detalhe transpõe e supera a arquitetura enquanto objeto material para atuar também na esfera da vida privada do usuário. Nessa incursão, a nosso ver, está bem menos presente o controle estético que certa vanguarda arquitetônica pretendia ter sobre o desenho (me refiro à utopia do desenho total: arquitetura, cortinas, móveis, talheres, roupas, enfim, tudo sob a égide de um só design, de um só projetista) que um interesse na realização de um modelo de homem moderno íntegro, saudável (usuário de tolhas e louças brancas...) e feliz.

E talvez não fosse outro o interesse de Costa em relação à realização de seus projetos residenciais. O Park Hotel São Clemente é uma obra que leva a marca desse momento da carreira de Costa: essencialmente moderno do ponto de vista do léxico formal – caixilhos e estrutura modular e independente das vedações – e brasileiro no uso de madeira roliça, treliças, varandas, arrimos de pedra e alvenaria caiada.

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O projeto de um homem moderno íntegro e saudável não seria, a nosso ver, uma conseqüência direta do juízo que Costa fazia do mundo moderno como um todo; nesses projetos aqui analisados acreditamos haver um movimento e uma crença no resgate de valores humanos perdidos, completamente arruinados pela modernidade, essa sim inexoravelmente negativa e destrutiva. A máquina e sua racionalidade seria a antítese de uma modernidade irracional e sem sentido e, sobretudo, o veículo do resgate a que nos referimos. Do anteprojeto para a Casa do Estudante do Brasil (1952 –

FIGURA 15) na Cidade Universitária de Paris, a simples transcrição do trecho

em que Costa sugere o tema de um painel a ser executado por Portinari na sala de estar, nos serve como medida para aferir o lastro conceitual que atingia não só este mas todos os seus projetos incluídos nesse grupo:

Previ igualmente um painel de 3,20 por 7,00 mais ou menos, na sala de estar, para nosso Portinari, e me permito sugerir o tema que julgo apropriado e poderá ser resumido assim: o homem, na sua justa medida, é o traço lúcido de união do infinitamente grande com o infinitamente pequeno.

Para esse efeito a superfície disponível poderia ser dividida em dois campos desiguais mais vinculados pela proporção áurea dos antigos. Na confluência destes dois campos seria então figurado o homem. Ele estaria caminhando, o olhar para frente, e um dos pés solidamente apoiado no chão. O gesto dos braços abertos também seria desigual, como se uma das mãos recebesse e a outra entregasse, e haveria como que um resplendor a atestar-lhe a lucidez. Aos pés dele um verme, uma concha e uma flor. No mais os elementos da composição seriam as formas reais do mundo “oculto” revelado pela aparelhagem técnica que a sua inteligência criou. No campo menor, e porque se presta menos à figuração plástica, o espaço sidéreo com suas constelações e alucinantes nebulosas; no campo maior, as aparentes abstrações e formas variadíssimas desse abismo orgânico que é o microcosmo, inclusive a energia nuclear tal como costuma ser esquematicamente representada. Energia

cósmica, energia nuclear, energia lúcida, trindade que constitui, tal como a

trindade mística, uma coisa só. 65

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Lucio Costa. “Casa do Estudante – Cité Universitaire, Paris, 1952 – Carta a Rodrigo”. In: Registro de

Na descrição do projeto, mais uma vez o traço da busca pelo nacional: As salas térreas de estudo dispõe de um avarandado (...) que poderá atribuir ao conjunto certa graça nativa sem contudo destoar da atmosfera local [grifos nossos] (...) Os ateliês (...) contribuem para derramar um pouco a composição na sentido da graça crioula, referida acima [grifos nossos]. 66

No léxico formal da volumetria proposta, o grande bloco prismático sobre pilotis de formas inusitadas, desenrijecido tanto pela graciosa curva formada pelos volumes construídos do térreo, quanto pelo desenho das aberturas e janelas: ora uma grelha colorida, ora quadrados soltos na superfície, ora pequenas aberturas em cruz nas laterais do bloco como apliques de renda, num procedimento muito próximo ao utilizado no Parque Guinle. Uma grande marquise de forma orgânica vaza o rígido prisma do bloco principal: esse seria um dos únicos projetos de Costa voltados à habitação67onde são usadas

curvas como massas edificadas.

Como veremos adiante, do ponto de vista formal, as curvas seriam sempre utilizadas para compor elementos paisagísticos como platôs, arrimos, caminhos e massas vegetais. A exceção dessa norma operada pela Casa do

Estudante em Paris assinala uma certa especificidade lírica na carreira de

Costa. O desenho mostra, em linhas e cores, uma dicotomia expressa verbalmente no seu memorial do painel a ser pintado no saguão central do edifício: a regularidade prismática dos pavimentos versus a organicidade alegre e solta do térreo. Olhando para a perspectiva desenhada por Costa do conjunto transparece uma certa busca de equilíbrio entre os volumes vertical e horizontal, uma possível síntese entre esses dois mundos, essas duas possibilidades (homem e Deus?).

Assim o procedimento aqui não seria algo muito distante do gesto inaugural de Brasília: o eixo da monumentalidade e do rigor formal contraposto à graciosidade da curva residencial, porque lugar de descanso, lazer, devaneio. Ali onde a curva se estabelece está também a densa massa vegetal; aqui, na

66 Iden. 67

Essa afirmação se refere estritamente aos seus projetos residenciais. Além deste projeto, apenas nos apartamentos de Gamboa (1932), na passarela que acompanha a curvatura do lote e nas escadas e rampas no térreo do edifício Bristol (parque Guinle – 1948) é que Costa se utilizaria de curvas na composição formal.

Casa do Estudante, presente na vegetação já pensada; em Brasília, nos

espaços verdes intersticiais das superquadras.

O homem como centro e como elo, elemento lúcido por que dono da máquina (e o contrário não se admitia então), com pés solidamente apoiados no chão de sua realidade social e econômica (a estrutura de madeira do Park

Hotel) onde receber e entregar pressupõe uma utopia de justiça e igualdade

social, vivendo entre proporcionados espaços áureos; sobre si e dentro de si os diferentes cosmos: macro-externo e micro-interno. Costa acreditava, então, que a despeito de uma modernidade inexoravelmente má e negativa, sem espaço para a humanidade e sem perspectivas de regeneração, um certo homem-idéia seria o usuário potencial de seus projetos; a ele caberiam espaços regeneradores e indutores de uma nova e possível existência plena e equilibrada que os anos da guerra pareciam ter banido definitivamente da mente humana.

Acreditamos que o mural da Casa do Estudante do Brasil sintetiza o grande projeto pessoal e humano de Costa, reconhecível, mesmo que em parte, nos projetos do grupo aqui analisados.

No documento As casas de Lucio Costa (páginas 75-81)