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O “enganido” era o nome que se dava a “uma doença de crianças, que, embora comam bem, vão secando; têm enganido as que dormirem com as pernas em cruz” (Vasconcelos, 2007), e, quando essa situação se verificava, era preciso curar a criança.

Foi a D. Maria Glória Guedes, de 59 anos, nascida em Penso, Melgaço e a viver há alguns anos em Lisboa, que me contou orgulhosa como foi parte interveniente numa destas “curas”, já que a criança era o seu primo Manuel Joaquim. Para que o processo se realizasse, era preciso ser feito por duas “Marias” virgens. Então, segundo a mesma, e transcrevo o que a própria me escreveu (ver Anexo III, PDF 1739) “devia ser feito durante nove dias, antes do nascer do sol, debaixo de uma pola de um carvalho cerquinho” ou seja, um carvalho que tivesse um dos ramos em arco. “Põe-se uma Maria de cada lado e passa-se a criança por baixo da pola dos braços de uma Maria para a outra” e diziam:

- Toma lá Maria… - Tu que me dás?

- Dou-te Manuel Joaquim enganido.

- Enganido, não o quero! Quero-o são e salvo conforme foi nascido. Pela graça de Deus, um Pai-nosso e uma Ave-Maria.

Este processo era repetido cada dia nove vezes, durante nove dias.

Encontrei registada por Vasconcelos uma outra versão com algumas diferenças, no que diz respeito à substituição do “carvalho” por uma “silva”, mantendo-se o pormenor do “arco” e ao número de dias que deveria ser feito, “três”, em vez de “nove”, precisando o “jejum”. Diz então que para curar o enganido “vão duas Marias virgens colocar a criança debaixo de uma silva que esteja presa por duas pontas, formando arco. […] Faz- se isto três vezes, de manhã em jejum, em qualquer dia da semana” (Vasconcelos, 2007:95,96)

Aquando da minha visita ao convívio organizado pela D. Teresa na vila de Melgaço aos domingos à tarde, tive ainda a oportunidade de ouvir outra versão que descreve o modo como se “talhava o enganido”. Foi-me contada pela D. Maria Gonçalves Melo e pela D. Maria da Conceição. Esta descrição vai ao encontro do que descreve Leite de Vasconcelos na obra acima citada, embora se notem pequenas diferenças entre os dois relatos, como por exemplo mais uma “Maria” e a presença de um “bocadinho do chocolate” (ver vídeo 00062). Vasconcelos descreve que

a mãe leva a criança à igreja, acompanhada das duas Marias, todas em jejum, antes de nascer o sol ou ao apontar. Colocam uma mesa no meio da igreja e sobre ela pedaços de pão, de trigo ou de milho; uma Maria, de um lado, e outra, do outro, passam a criança em cruz debaixo da mesa, dizendo as palavras acima escritas. Saem as raparigas da igreja, comem o pão e dão o que sobra a um cão que ali passe: o cão fica com o enganido. (Vasconcelos, 2007:94).

No entanto, muitas vezes, este processo não era suficiente para curar a dita criança. Então,

leva a mãe a criança, à meia-noite em ponto, e vai apanhar um feixe de trovisco, regressa, pesa a criança e antes de nascer o sol, de modo que o trovisco pese tanto como a criança e atira, voltada de costas, o trovisco para cima do telhado; à medida que o trovisco seca, seca o mal e lá se vai o enganido. (Vasconcelos, 2007:95)

Os alunos da Escola EB 2, 3 de Melgaço, já anteriormente referidos, incluíram também no seu trabalho duas composições semelhantes, comparando o que se fazia deste e do outro lado da fronteira.

Por cá, eram precisas três Marias virgens (tal como relata Leite de Vasconcelos, acima referido, e as senhoras do convívio de Melgaço) e que ainda não tivessem o período (elemento diferente que não consta em nenhuma das outras versões). Teriam as meninas

de executar a prática “antes do nascer do sol, em jejum” e precisavam de “uma mesa de três pés e de um cão”. À vez, cada Maria pegava na criança e ia-a passando a outra, repetindo:

“Toma lá Maria. - Que me dás, Maria?

- Dou-te (nome da criança) com o enganido.

- Com o enganido, não o quero! Quero-o são e salvo. Pela graça de Deus, um Pai-nosso e uma Ave-Maria.” (Este processo repete-se três vezes, durante três dias.)

Nota: Os pais da criança davam às Marias um pão com manteiga (ou outra coisa). As Marias tinham que comer o pão deixando um bocadinho para o cão. Pois se elas comiam o pão todo, ficavam com o enganido. (Recolhido pelos alunos da Escola EB 2,3 de Melgaço e publicado na página em linha da Associação Ponte … nas Ondas)

Esta nota incluída no final aproxima-se da versão das senhoras do convívio, sendo que a manteiga era substituída pelo chocolate, certamente mais apreciado pelas crianças. Do lado galego, “en Cotobade”, “três Marias levan o neno enfermo a unha casa que non sexa a súa e, ademais, levan un anaco de pan e medio litro de vino” (novo elemento, diferente das versões anteriores). E continua,

ó chegarem ali, colócanse formando um triángulo na cocina, a caróndunha artesa, e van passando, dunha à outra, o menino nove meces ó tempo que dio: Toma, Maria. Que me dás? O enganido. O enganido nonchoquero que quero a… (nome do enfermo). Despois, cambiam a roupa por outra limpa; cada Maria dálle tres veces ó neno coa cabeza na artesa, pásao outras tantas por baixo da mesma e para rematar queimam na lareira a roupa que traia posta. (Recolhido pelos alunos da Escola EB 2,3 de Melgaço e publicado na página em linha da Associação Ponte … nas Ondas)

Esta semelhança entre o que se fazia e dizia de cada um dos lados da fronteira, comprova a proximidade das culturas e transporta-nos para o tempo em que as linhas fronteiriças delimitavam e interditavam o espaço geográfico entre os dois países. No entanto, isso não impediu o contacto e a passagem de vivências, costumes, tradições e conhecimentos para os dois lados da fronteira. Ainda hoje se verificam os efeitos desta proximidade nos hábitos, nos falares e nas paisagens. Valter Alves cita, no seu blogue “Entre o Minho e a Serra”, Vasconcelos (1928) que afirma que “o trato familiar e quotidiano entre as gentes de cá e as de lá não deixa perder certos caracteres iniciais, e permite a transmissão mútua de fenómenos.”

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