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Capítulo 1 – O JONGO DA TAMANDARÉ: EU VENHO DE MUITO LONGE

1.4 Os tambores não estão frios

Nas práticas e manifestações do jongo, o tambor é um elemento muito importante, não só pela sua função como instrumento de percussão, mas pelo simbolismo que ele carrega, pelas reverências prestadas a ele pelos jongueiros, pelo cuidado que se tem desde seu transporte, ou seja, pela forma como o carrega, até a forma de guardá-lo. Os tambores no jongo recebem nomes e funções diferentes, pois são conhecidos como tambu e candongueiro, nomes presentes no jongo da Tamandaré.

O tambú no jongo é uma coisa que nós adoramos como se fosse assim um orixá, porque naquela época os negros eles respeitavam muito os tambores e agente vem pegando esse sistema dos próprios pretos velhos, porque nós também praticamos a espiritualidade, então a gente aprende que o tambor é um elemento, é um instrumento que tem que ser respeitado por isso, que a gente tem um respeito muito grande com os tambores, porque os negros nos

68 Depoimento concedido pelo jongueiro Jéferson Alves de Oliveira em março de 2014 para o autor desta

pesquisa.

69 Conforme consta da introdução, lugar onde repousa os ancestrais e espíritos, jongueiros que faleceram e não

fazem mais parte desse mundo, mas sempre estão presentes nas rodas de jongos, onde são homenageados.

70 Depoimento concedido pelo jongueiro José Antônio Marcondes Filho em março de 2014 para o autor desta

ensinaram que o tambor ele faz parte da linguagem, que o tambor para com os espíritos a batida é a palavra que eles entendem do tambor que sai do couro para que os orixás entendam o que está se passando ali naquele ambiente, então na batida do couro que faz com que o orixá dance, faz com que o filho71 está dançando ali na roda de jongo, então o tambor é um

instrumento realmente de respeito72.

Antes de dar início às rodas de jongo na Tamandaré, os tambus são levados para perto da fogueira já acesa. Segundo os jongueiros, esses instrumentos recebem uma quantidade de pinga que é passada no couro antes de serem levados para perto da fogueira. Após esse procedimento, eles são colocados com a parte do couro voltada para ser aquecida. Com o passar do tempo, o calor da fogueira age sobre o couro dos tambores esticando-os e os deixando em condições para serem tocados e iniciar a manifestação. Sem os tambús, que são responsáveis pela parte da percussão dos sons, não tem início as rodas de jongo.

Não apenas o local, mas os objetos que o compõem também passam por um processo de sacralização. O tambú, instrumento por excelência na roda de jongo, é submetido a cuidados especiais. Antes de se iniciar a dança, ‘o tambú é preparado’, como dizem os jongueiros. É embebido por aguardente e posto próximo à fogueira. Além do efeito meramente funcional deste ato- que é o de esticar o couro do tambor afim de que o som possa ser emitido com maior nitidez – há a questão simbólica. Para os jongueiros este ato significa o momento de saravar (saldar, reverenciar) o tambor, em nome dos ‘espíritos jongueiros’73.

71 A expressão filho, utilizada pelo jongueiro Totonho em seu depoimento, refere-se aquele que cultua (iniciado)

e participa das religiões da Umbanda e do Candomblé. Filho, nesse caso, refere-se a filho de santo.

72 Depoimento concedido pelo jongueiro José Antônio Marcondes Filho em março de 2014 para o autor desta

pesquisa.

73 PENTEADO JÚNIOR, Wilson Rogério. Jongueiros do Tamandaré: um estudo antropológico da prática do

Ilustração 09: Tambores do Jongo. Tambores aquecendo antes da roda de jongo na festa da comunidade da Tamandaré em 2014. Foto: Luiz Paulo Alves da Cruz.

Ilustração 10: Tambus da Tamandaré. KISHIMOTO, Alexandre; TRONCARELLI, Maria Cristina. O Jongo do Tamandaré: Guaratinguetá-SP. São Paulo: Associação Cultural Cachuera, 2012, p. 100.

O jongueiro Totonho da Tamandaré fala sobre a importância e o papel de passar pinga nos tambores:

A pinga é um ritual de oferenda pro orixá né é um batismo, porque da mesma forma que você joga uma água benta numa imagem para batizar né que você acredita que aquela imagem está recebendo um batismo nós acreditamos também que o tambú né ele recebe um batismo de um orixá que forma aquele ritual que a gente tá precisando que aconteça74.

Antes de começar a roda de jongo, antes de ter início os pontos75, é feito um ponto de louvação, saravando (saudando) o tambu e os jongueiros já falecidos. Nesse momento, o jongueiro se aproxima vagarosamente dos tambus, faz uma reverência se curvando e agachando lentamente a sua frente. Ele levanta uma das mãos para cima e a desce tocando devagar o couro do instrumento. Em seguida, entoa um ponto de louvação para o tambu:

Oi tambu, oi tambu

Quando eu for embora pra bem longe Eu levo comigo

Ai, esse som que bate forte em meu coração. (Totonho)76.

Eu saravo tambu grande Eu saravo candongueiro Também vou saravando Quem cantou aqui primeiro

(Francisco Roberto dos Santos – Chico Custódio) 77.

74 Depoimento concedido pelo jongueiro José Antônio Marcondes Filho em março de 2014 para o autor desta

pesquisa.

75 A palavra ponto, no jongo, refere-se aos versos compostos pelos jongueiros que são cantados nas rodas de

jongo.

76 KISHIMOTO, Alexandre; TRONCARELLI, Maria Cristina. O Jongo do Tamandaré: Guaratinguetá-SP. São

Paulo: Associação Cultural Cachuera, 2012, p. 100.

77 KISHIMOTO, Alexandre; TRONCARELLI, Maria Cristina. O Jongo do Tamandaré: Guaratinguetá-SP. São

Ilustração 11: Saudação aos Tambores na Tamandaré. KISHIMOTO, Alexandre; TRONCARELLI, Maria Cristina. O Jongo do Tamandaré: Guaratinguetá-SP. São Paulo: Associação Cultural Cachuera, 2012, p. 100.

Na imagem, o jongueiro velho José Antônio Marcondes Filho, conhecido como Totonho, faz reverências aos tambus antes de começar a roda de jongo, saudando os tambores, os ancestrais, os jongueiros já falecidos e as entidades espirituais que estarão presentes durante as rodas de jongo.

O jongo da Tamandaré possui três tambores tradicionais, os tambus que fazem parte das rodas de jongo durante os festejos de Santo Antônio, São João e São Pedro. Esses tambores são conhecidos como tambu grande, tambu e candongueiro. Esses tambus são batizados e recebem o nome de “Minha Mãe Só” (tambu grande), “Caboclo Grande” (tambu) e “Criança” (o candongueiro) que representa o tambor menor. Segundo os relatos dos jongueiros, esses tambus tradicionais não costumam sair da comunidade nas apresentações externas que os grupos realizam. Nesse caso, existe o costume de levar as tumbadoras78.

Os tambus são muito cultuados e respeitados pelos jongueiros da Tamandaré e considerados instrumentos que comunicam, com sua linguagem sonora, sentidos que, às vezes, não são percebidos por aqueles que apenas estão assistindo às apresentações na roda de jongo. Esses instrumentos também são reconhecidos pelo seu caráter histórico e simbólico no tempo de cativeiro durante a escravidão, sendo considerados como uma representação dos

78 As tumbadoras são tipos de tambores em formato de atabaques, feitos de madeira e revestidos com fibra de

vidro. Elas são instrumentos modernos de percussão também incorporados em alguns grupos de jongo, como a comunidade da Tamandaré.

antepassados que usaram os tambores como forma de resistência, de expressão cultural e espiritual.

Então a gente tem um cuidado muito grande com o tambor, porque a gente ta batendo nele hoje né, mas aquele tambor já foi batido pelos escravos, então a gente pensa assim cara, aquele couro ali já viu a mão de preto velho que tá voltando hoje nos terreiros os pretos velhos que arreiam hoje nos terreiros de candomblé já bateram jongo lá atrás, então a gente tem cuidado muito grande com os tambores porque é uma coisa que chama a gente, a batida do tambor vai buscar o povo longe, o cara começa a escutar uma batida de tambor o cara já se interessa opa! O que será que está acontecendo ali? Aquilo chama atenção, o cara procura saber o que está se passando, então a gente tem esse cuidado porque é uma coisa que chama o povo pra roda, a batida chama e aquilo foi tocado por pessoas, pelos escravos, começou ali né a primeira batida começou num tambor de jongo, a gente tem esse cuidado a história, tem esse cuidado com a tradição79.

Os tambores utilizados no jongo da Tamandaré foram feitos pelos próprios jongueiros da comunidade. Construir esses tambores exigiu (e exige) conhecimentos sobre a matéria- prima utilizada, conhecimento e habilidade para construí-los. São técnicas e modos de fazer que foram passados de geração em geração, seja dentro das famílias dos jongueiros da comunidade, seja pela observação de como os jongueiros velhos, muitos deles já na Aruanda faziam para construí-los. Os três tambus tradicionais existentes nos grupos de jongo da Tamandaré foram construídos pelo Senhor Togo, o jongueiro mais velho em atividade na comunidade.

Como vimos anteriormente, os tambus utilizados nas festas da comunidade precisam ser preparados e aquecidos no fogo para que o couro seja esticado e atinja a afinação adequada para dar início às rodas de jongo. Os jongueiros afirmam que, com o passar do tempo, a ação do frio e a umidade da madrugada agem novamente sobre o couro dos tambus, afrouxando o couro e fazendo com que esses percam a afinação e a sonoridade para dar continuidade nas apresentações. Nesse momento, é necessário fazer uma pausa e recolocá-los novamente para serem aquecidos no calor da fogueira esperando que o couro estique novamente e permita o recomeço do jongo. O jongueiro Totonho comenta como são feitos os tambus da comunidade:

Nós acompanhamos há um bom tempo o ritual e o tambor ele é feito de barrica né e esse ritual já vem há muito tempo, então nós encouramos com o couro de boi mesmo, a gente vai buscar o couro na fazenda, a gente curte, estica, a gente encoura as barricas e elas são trabalhadas né colocamos pingas, e fazemos um ritual, oferendas para que os orixás batizem aquele tambor, para que ele fique um tambor batizado, receba a força do orixá e quem faz esses tambores, quem costumava fazer era o Seu Togo né, era o

79 Depoimento concedido pelo jongueiro Jéferson Alves de Oliveira em março de 2014 para o autor desta

Togo que gostava de fazer, ele pedia para deixar que ele fizesse o tambú, ele gostava muito de fazer, ele mesmo encourava, às vezes eu ia ajudar ele, mas esse ritual que a gente vem seguindo, hoje eu ganhei essa tumbadora aqui ela é levada lá pro jongo também, faz parte, também ajuda. Mais os tambores antigos não saem do ritual, fica também sendo usado, as tumbadoras vão apenas pra ajudar lá, porque os tambores, existem um pequeno problema, conforme o tempo ele vai murchando, vai perdendo o som né, vai dificultando a noitada. Ai você tem que parar, fica muito tempo parado esquentando, ai esfria o jongo né o pessoal já tá cansado então a tendência nossa é diminuir o espaço de tempo da parada, agora naquele espaço que o tambor, o nosso tambú está esquentando ai vai à tumbadora para não parar a dança80.

Ainda sobre o processo de construção dos tambus da comunidade da Tamandaré, o jongueiro André explica como se dá o processo de criação:

Como é feito o tambu? O tambu é feito de barrica de vinho em boas condições e do couro do boi. Primeiro, pega-se o couro e coloca-se num tanque com bastante água e cal e deixa por sete dias, para amolecer e soltar os pelos. Depois, duas pessoas, após fazerem uma oração, colocam o couro úmido na barrica, puxando para esticá-lo. Enquanto uma puxa o couro com o alicate, a outra prega. Coloca-se ao sol para secar. [...] Depois de pronto, é preciso batizar o tambu, esfregando sebo no couro em forma de cruz e chamando um preto velho de fé, uma entidade da umbanda. Passa-se a pinga e entrega-se a um preto velho, jongueiro do Congo, Angola ou Moçambique, para tomar conta dele. É por isso que os tambus só podem ser tocados no jongo, e não em outros batuques ou no samba81.

Buscando evitar pausas demoradas, os grupos de jongo da comunidade adquiriram as tumbadoras. São espécies de tambores, atabaques modernos feitos de madeira e revestidos com fibra de vidro. Essas tumbadoras tem um sistema mais moderno de afinação do tambor, o couro é diferente por receber tratamento químico que lhes confere maior resistência. Outro fator fica por conta de um sistema de aperto e reaperto do couro. Na lateral dessas tumbadoras, há um círculo de metal com parafusos reguladores que esticam o couro aumentando a sonoridade a qualquer momento a gosto do tocador. Por este motivo, não é necessário nenhum tipo de aquecimento ou colocação de produto sobre o couro. A adesão dessas tumbadoras pelos grupos e sua colocação nas rodas junto com os tambus tradicionais permitem que as rodas de jongo não parem em decorrência do esfriamento do couro dos tambus tradicionais, interrompendo o jongo.

80 Depoimento concedido pelo jongueiro José Antônio Marcondes Filho em março de 2014.

81 KISHIMOTO, Alexandre; TRONCARELLI, Maria Cristina. O Jongo do Tamandaré: Guaratinguetá-SP. São

Ilustração 12: Tocadores de Tambus e Tumbadoras. Os jongueiros tocam os tambores durante a festa de jongo na comunidade da Tamandaré em 2014. Foto: Luiz Paulo Alves da Cruz.

Na imagem, reconhecemos os tocadores de tambus na comunidade da Tamandaré. Em primeiro plano, aparece o jongueiro André de camisa branca e boné azul. O participante está tocando uma tumbadora de cor marrom com um laço que a envolve. As tumbadoras, segundo os jongueiros da comunidade, permitiram mais praticidade durante as apresentações externas que os grupos realizam. Dessa forma, os tambus tradicionais não precisam ser retirados da comunidade, correndo o risco de desgaste e sofrer danos. Outro fator apontado pelos jongueiros com relação às tumbadoras é o fato de não precisarem ser aquecidas antes das apresentações externas. Muitas vezes, os grupos se apresentam em praças públicas, em universidades com salas fechadas, em centro de eventos de shoppings onde o acesso ao fogo é inviável pelas características dos lugares onde abrigam as apresentações.

Além dos tambores, dos tambus utilizados nas rodas jongo da Tamandaré, também utiliza-se o guaiá, um pequeno instrumento com formato de chocalho e feito de lata, como um canudo de lata com um pequeno bastão de madeira na base. No interior desse canudo de lata, existem pedaços de seixos ou esferas de chumbo que, ao serem balançadas de forma

cadenciada pelo tocador, emitem um som como de um chocalho. O guaiá acompanha as batidas dos tambores, dos tambus formando a parte de percussão do jongo.

No jongo da Tamandaré, a construção e a posse dos tambus e do guaiá ficam por conta do jongueiro Togo, remanescente dos jongueiros velhos já falecidos na comunidade. Ele, além de emprestar os tambús para as noites de festa, faz questão de comparecer às rodas de jongo com seu guaiá. Nessa ocasião, o jongueiro vai se alternando entre tocar o guaiá e tirar (cantar) os pontos durante a festa.