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3. O TEATRO E O ENGAJAMENTO

3.3. BUSCANDO SAÍDAS

3.3.1. Teatro de Bonecos Dadá e Teatro dos Estudantes

Em meio a esse ambiente repressivo, as atitudes de resistência arrastaram a ação

política para a esfera privada. Desse modo, disponibilizar, por exemplo, um “espaço” da casa

para agrupar os amigos, fazer reuniões, ensaiar peças e confeccionar material para

panfletagem, discutir e conversar sobre assuntos que não poderiam ser expostos amplamente

na sociedade significava conservar o “espírito de militância”, manter firmes os laços de

amizade e preservar o prazer pelo teatro. Em um desses espaços, em novembro de 1964,

nasceu o teatro de Bonecos Dadá:

Depois do golpe militar de 1964, nós ficamos impossibilitados – por causa da

censura – de fazer teatro para adultos. Então nós achamos que para conservar a

chama de nossa unidade, do nosso trabalho, nós deveríamos fazer, ao menos, um

trabalho com a criança.

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Como resistir era preciso e sobreviver era preciso, surgiu em seguida a questão: o

que fazer para continuar trabalhando? A resposta surgiu depois de muita discussão

entre alguns poucos remanescentes do antigo CPC: a saída era criar um grupo de

teatro infantil. Afinal quem poderia implicar com manipuladores de um singelo

teatrinho infantil?

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Vê-se que a efetivação de práticas coercitivas capazes de minar e dispersar os

segmentos sociais organizados politicamente logo teve uma resposta do campo da cultura e da

arte. Foi neste campo de atuação que ocorreu a reconstrução do espaço esgarçado da política.

Nele não somente as redes de sociabilidades eram fortalecidas, mas constatava-se uma

preocupação por parte dos artistas em não desarticular a arte e sua dimensão política.

No caso dos artistas do Teatro de Bonecos Dadá,

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colaborar na educação e nas

mudanças sociais residia num tipo de engajamento que demandava também certo risco em um

momento politicamente complicado no Brasil, especificamente em Curitiba. Pela realização

de espetáculos ambulantes, e em casas de espetáculos, foi possível, segundo os membros do

grupo, resistir às pressões e conquistar a confiança de adultos e crianças.

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Da relação, nasceu

a necessidade de se criar um ambiente de educação particularmente para crianças. Como a

maioria dos artistas era formada por professores, por sugestão, criou-se o Jardim de Infância

Pequeno Príncipe, junto com teatro de bonecos.

A despeito das intervenções constantes da polícia, o Teatro de Bonecos Dadá

conseguiu realizar atividades artísticas e educacionais relevantes entre crianças e adultos.

Porém, a vigilância fechou cada vez mais o cerco porque alguns integrantes do grupo fizeram

um período de formação, política e artística, no Teatro Central de Moscou, fato este que

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BONESCOS que falam e se mexem feito gente. Quem faz? Aonde? Sapeca – O Jornal, Curitiba, nov. 1979.

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A MAGIA do “Dadá”. Veja em Curitiba, Curitiba, n. 44, ano 22, 8 nov. 1989.

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Dadá era o apelido de Adair Chenovika de Souza, artista e esposa de Euclides de Souza.

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40 ANOS – TEATRO DE BONECOS DADÁ. Curitiba: Euclides de Souza Coelho e Adair Terezinha

Chevônika de Souza. 2002. Revista em comemoração aos 40 anos do Teatro de Bonecos Dadá, em Curitiba.

representou preocupação para os militares.

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O motivo referia-se à União Soviética que, no

contexto de Guerra Fria e disputa entre o bloco socialista e capitalista, simbolizava a força

comunista.

O medo da ameaça comunista levou à tomadas atitudes no sentido de evitar o

aumento do prestigio do grupo junto a alguns setores da sociedade curitibana. Por isso, em

1967, os agentes da polícia invadiram o Jardim de Infância Pequeno Príncipe e deram voz de

prisão aos artistas e às professoras, sob a justificativa de que na escola ensinavam-se

conteúdos subversivos às crianças.

Sobre o episodio, Ponte Preta (2006, p. 50-51), escreveu o seguinte:

Acontece que a maior das criancinhas que ali estuda tem cinco anos de idade e

menorzinha ainda está molhando a sala de aula e o resto. [...] O general e os

encarregados de um IPM contra o Jardim de Infância dizem que as professoras

estavam ensinando marxismo e leninismo. Esta então foi pior. Coitado do garotinho,

que mal sabendo o “a”, “e”, “i”, “o”, “u”, terá que soletrar “Kruchev”, “Stalin”,

“Gromyko” e outras bossas.

A atenção conduzida às práticas de grupos que destoavam da ordem militar,

sobretudo, na esfera da cultura e da arte, leva a pensar que a repressão às atividades artísticas

foi proporcional à sua importância como veículo de crítica ao autoritarismo e expressão de

idéias libertárias, bem como ao prestígio público desses artistas.

Quanto maior a capacidade de inserção, nos meios sociais, e comunicação que esses

artistas possuíam, mais danoso ao governo ditatorial tornavam-se. Inclusive porque as idéias

defendidas por eles, embora reprimidas, ainda conseguiam atingir um número significativo de

pessoas. No que diz respeito ao Teatro de Bonecos, ressalva-se o fato do mesmo ter reunido

em torno de si, em espaços improvisados nas casas dos seus membros, crianças e adultos da

vizinhança, bem como os filhos dos militantes de esquerda, articulando-se em pequenos

círculos de formação.

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O fechamento desses espaços de participação política indicou o gradativo processo

de centralização do regime ditatorial paralelo à imposição de restrições à atuação e a

organização da “classe política” (CODATO, 2004, p. 19). Acerca da questão, revelador foi o

depoimento de Jônatas Cárdia ao assumir, em fevereiro de 1965, no Rio de Janeiro, a chefia

do Departamento de Censura: “Não permitirei a apresentação de peças anti-revolucionárias,

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Participou do curso Euclides de Souza, ator e manipulador de bonecos, e Adair Teresinha Chevônika de

Souza, professora.

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Mirian Galarda conseguiu convencer seus pais a cederem uma velha oficina mecânica da família, nos fundos

de sua casa, na Rua Saldanha Marinho. Nesse ambiente criou-se o teatro fixo de títere especialmente dedicado às

crianças.

como Opinião, Liberdade, Liberdade. Não tolerarei propaganda subversiva ou comunista em

espetáculos”.

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A declaração do censor evidencia quais os conteúdos e as temáticas, no campo das

artes, representavam ameaça ao regime militar e, portanto, inibir tais campos de atuação era a

garantia de continuidade da revolução que os militares acreditaram ter estabelecido no Brasil.

Enquanto essas formas de organização política, no teatro, apareciam em oposição ao

arbítrio instaurado no Brasil, outras práticas teatrais, na cena curitibana, nasceram também no

sentido opor-se à ditadura a partir da segunda metade da década de 1960, especificamente no

meio estudantil. É importante dizer que o movimento estudantil tornou-se um dos únicos

movimentos sobrevivente ao golpe ditatorial-militar, uma das organizações clandestinas de

oposição ao regime, atuando fora dos partidos oficiais (HEGEMAYER, 1997, p. 5). Os

espaços de sociabilidade aí gerados baseavam-se, sobretudo, na experiência de revolta. Nesse

tipo de experiência os estudantes entendiam-se cada vez mais como “sujeitos revolucionários”

cuja fé na construção do novo impulsionava as ações políticas.

Em 1966 a UNE foi posta na ilegalidade e sua tentativa de reestruturação das bases

estudantis não se deu de forma tranqüila. Frentes mostraram-se favoráveis à luta armada, e a

crença nessa perspectiva indicava uma dimensão heróica cujo sentimento de doação revelava,

antes de tudo, a entrega da vida pela grande causa da humanidade. Porém, outras facções

manifestavam uma posição contrária ao radicalismo e à violência e via nas manifestações

pacíficas o caminho para a retomada da democracia.

Sob influência da ala esquerda cristã, a UNE prioriza a luta contra a ditadura militar.

A rua é tomada pela movimentação estudantil caracterizando a retomada do espaço do debate

político. O movimento também era uma forma de contestar a reforma universitária desenhada

pelo governo militar no convênio Ministério da Educação e Cultura e United States For

International Development(MEC-USAID). O projeto pretendia adaptar o sistema educacional

à função de produção da força de trabalho (PELEGRINE, 1998, p. 172).

Para desviar a atenção dos estudantes, o presidente Castelo Branco, em 1966, cria o

Movimento Universitário para Desenvolvimento Econômico Social (MUDES) para agir no

meio estudantil segundo o comando do governo militar. Isso, porém, não freou a atuação dos

estudantes. A intensificação dos protestos deixava cada vez mais em alerta as Forças Armadas

que, diante das mobilizações crescentes, procurou intervir com maior rigor contra os protestos

de setores que questionavam a sua legitimidade.

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Apud. PACHECO, T. Seminário Nacional sobre Censura de Diversões Públicas.Arte em Revista, São Paulo,

n. 6, p. 92-96, out. 1981.

Em Curitiba, a União Paranaense de Estudante (UPE), foi um importante foco de

organização estudantil. Aglutinou importantes debates sobre política brasileira e educação,

organizou, articulou e sintonizou o segmento estudantil paranaense em torno dos protestos

que aconteciam no restante do país. Porém, vale lembrar que essa movimentação também foi

possível pela articulação de pequenos grupos teatrais. As montagens por eles organizadas,

além de serem veículos de promoção do debate político, serviam como meio intensificação

dos laços afetivos no movimento.

Os encontros teatrais aconteciam em pequenas salas improvisadas, nas casas

estudantis, comuns na cidade, nos diretórios acadêmicos ou em salões paroquiais. Tais

espaços tornaram-se pontos de ebulição teatral por meio de ensaios, debates, montagens e

leituras dramáticas. Por essas razões, estavam sob vigilância constante dos militares.

Dois grupos de teatro desempenharam papel importante no segmento estudantil. O

primeiro deles foi o grupo Decisão, criado no início do ano de 1967, e ligado ao departamento

de arte e cultura da UPE. Nasceu com o propósito de levar teatro, de qualidade, a um número

maior de espectador, não somente na capital, mas também nas cidades do interior do Paraná.

O outro grupo foi o Teatro de Estudantes Universitários (TEU), criado em 1966, com o intuito

de difundir a cultura entre os estudantes pela adaptação de diferentes obras literárias.

Esses grupos logo chamaram a atenção dos militares preocupados com projetos dessa

natureza. Em razão disso, promoveram investigações que pretendiam mapear pessoas ligadas

ao movimento e as suas principais idéias:

Pedido de busca [...]. Dados solicitados: antecedentes políticos e ideológicos dos

formadores do grupo Decisão; natureza ideológica das apresentações; Recursos

oficiais obtidos; Outros dados julgados úteis.

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O pedido foi encaminhado ao agente responsável, em 23 de janeiro de 1967, e, no

mês seguinte, o delegado responsável pela DOPS recebeu a resposta constando,

principalmente, os nomes das principias lideranças do grupo:

Em atendimento ao vosso pedido de busca [...], cumpre-se informar a Vossa

Senhoria, que nos arquivos desta Especializada, consta somente o nome de JOÃO

SIQUEIRA, do grupo Decisão, quanto aos restantes nada existe até a presente data

[...]. Consta ainda nos arquivos desta Especializada o nome de LUIZ FABIO

CAMPANA, componente do Teatro do Estudante Universitário (TEU), sobre o qual,

publicou o Jornal [...] um artigo dizendo que [...] pretendiam levar peças teatrais a

várias cidades do interior e – também da Capital.

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DOPS. Grupo Decisão. Curitiba, 1967. Arquivo Público do Paraná, top. 131, n. 1077.

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Em relação ao TEU, havia por parte dos militares, um interesse no que se refere aos

locais de ensaios e reunião, bem como saber do conteúdo das peças montadas:

I – Fase o desinteresse, dos requerentes não comunicarem a data e hora da

apresentação de “ensaio” às autoridades; visto a peça argumentar um fundo político,

indefiro o presente pedido.

II – Oferece-se ao superintendente do Teatro Guaíra dando ciência do indeferimento,

e da não autorização do Teatro de Bolso.

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Os locais deveriam, pois, ser previamente comunicados à DOPS. Isso porque para a

censura, o conteúdo de uma peça, antes de ser levado ao público, tinha que ser antes avaliado.

O controle das idéias, que também passava pelo controle dos seus espaços de difusão, fazia

com que as indefinições quanto aos locais de encontro, por parte dos estudantes, garantissem

a continuidade das atividades teatrais, além de causarem transtorno nos agentes da censura.

A constante vigilância fez esses grupos buscarem alternativas para protegem seus

membros e deixá-los menos visíveis aos olhos dos militares. O grupo Decisão, por exemplo,

priorizou o público estudantil das cidades do interior do Paraná. O TEU, por sua vez, preferiu,

em Curitiba, mobilizar os artistas na luta contra as interdições das peças:

Atores de teatro, artistas plásticos, escritores, universitários, através de suas

entidades abaixo relacionadas e homens de dignidade e esclarecimento do Paraná,

cujas assinaturas estão sendo recolhida, denunciam e acusam:

- O ato forjado e indigno do Governo do Estado que, conivente com a censura local,

interditou em rápida manobra de gabinete o Teatro Guaíra, cancelando a temporada

da peça “O pequeno solitário” de W. Rio Apa, visando uma justificativa para

impedir a representação da obra de Plínio Marcos “Navalha na carne”, já liberada

pela censura federal.

- A falsa imagem de protetor das artes que o Governador do Estado vem montando

em torno de sua pessoa à custa de verbas exorbitantes extraídas dos impostos que o

paranaense para, sem nada conceder, nem sequer o respeito devido ao teatro e

artistas do Paraná, a não ser para aqueles que servem de instrumento às pretensões

políticas desse mesmo Governo.

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A posição dos estudantes contrastava com a imagem, muito divulgada, do governo

do Paraná de protetor das artes e da cultura. Entendiam que, por trás dela, havia um

alinhamento do estado aos interesses do regime. Esse questionamento e a postura de rebeldia

se manifestavam também nas montagens criadas pelo TEU, na sua maioria, construídas em

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DOPS. Teatro do Estudante Universitário – ou – Teatro Paranaense do Estudante. Curitiba, 1967/1969.

Arquivo Público do Paraná, N.° 4496.

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Idem.

laboratório, pelo uso da colagem, com a inserção de temas variados

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Apropriando-se de

poesias, letras musicais, entre outros, a temática da liberdade e democracia costurava em um

feixe de reivindicações, as inquietações estudantis naquele período conturbado da história

brasileira.

Outro aspecto diz respeito à apropriação da literatura do Movimento Modernista

Brasileiro. A peça De Como Trabalhador Faz Arte... E o Artista Pensa que é Dele, é um

exemplo. Nela encontram-se referências a diferentes poetas, escritores e intelectuais daquele

movimento. Por meio desse tipo de procedimento, os estudantes articularam temáticas sobre

violência, justiça e, sobretudo, sobre a idéia de liberdade. A recorrência aos poetas e escritores

modernistas, correspondeu às mudanças ocorridas na década de 1960, em que a retomada de

outros referenciais artístico-culturais correspondia aos anseios dos estudantes que

procuravam, naquele momento, distanciar-se dos padrões culturais e sociais até então

configurados.

Lembra-se ainda que durante esse período a hegemonia do PCB orientou o modelo

de “herança cultural” a ser aceito pelos militantes do partido (RUBIM, 1989, p. 552-565).

Nesse caso, a ênfase dada ao projeto de “conscientização política” conduziu à aceitabilidade

de temas direcionados ao engajamento e à ligação com o “povo”.

Com a implosão da “grande família comunista”, após 1964, o modelo sofreu

questionamentos, o que permitiu também o aparecimento de outras formas de ação política no

contexto nacional pela crítica cultural e comportamental (NAPOLITANO, 2004b, p. 276).

Nesse sentido, compreende-se que a atuação dos estudantes estendeu-se, não somente à

oposição à ditadura, mas à atitude conservadora, em alguns momentos, presente na sociedade

curitibana.

A atuação dos grupos teatrais formado por estudantes mostrou que o movimento que

ganhou as ruas, a partir de 1967, em oposição ao arbítrio encontrou também nessas pequenas

aglomerações uma das bases para o fortalecimento da organização estudantil. Embora os

interesses desses grupos tivessem direcionamentos a distintos modos de atuação, serviam

como ponto de confraternização e interação entre os estudantes. Diante destas questões,

pode-se compreender a partir da idéia de Ansart (1978, p. 35-46), que tais ações operaram-pode-se fora

de uma ideologia codificada, que demandava coerção e hegemonia, para pensar, ou inventar,

outro modelo de sociedade onde os atos simbólicos, desejos, as esperanças coletivas e os fins

a serem alcançados importam mais que os preceitos e as normas estabelecidas.

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Consistia na utilização de partes de textos de diferentes autores para criar de um novo texto. As atividades

eram realizadas em laboratórios teatrais no qual a participação das pessoas envolvidas era fundamental.