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A Teatralidade em Clarice Lispector

A TEATRALIDADE EM JOÃO GILBERTO NOLL

4.4 TEATRO DE FRATURAS

“Falei que eu era um ator, um homem familiarizado com a intimidade dos outros”.111 O desempenho do narrador e a própria performance narrativa das obras de João Gilberto Noll estão definidas pela experiência de um sujeito, geralmente difícil de ser apreendido em suas oscilações psicológicas e, talvez, por isso mesmo, só reconhecido através do corpo como fonte primeira da inscrição (trajetória) no mundo. A vertigem, causada por essa presença agônica e orgânica do sujeito-narrador-personagem em construção, intensifica a fruição enquanto produção de efeitos e não mais de sentidos, espécie de sensação alucinógena: “Se eu ficasse louco eu permaneceria dopado dia e noite, dormindo à hora em que a minha cabeça caísse de torpor” (p.378). O estado físico do personagem-narrador se traduz em “texto-doente”, ou seja, altamente comprometido com o estado do sujeito que o compõe e o atravessa. O sujeito em Noll nunca corresponde a um estado de plenitude ou de conciliação; sua harmonia está a todo o momento ameaçada pela

111 NOLL, João Gilberto. Hotel Atlântico. In: Romance e Contos Reunidos. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. p. 385.

tensão dos opostos em jogo. Espécie de via negativa literária, ou como melhor elucidou, Wolfgang Iser:

“O hábito da negatividade na literatura moderna age, por isso, como agressão ininterrupta às nossas convenções orientadoras, desde a atitude até a percepção cotidiana. Em conseqüência sempre acontece algo através dessa arte, e nos cabe perguntar o que acontece. Por isso, a pergunta deve ser alterada, pois ela não visa mais a significação, mas principalmente aos efeitos do texto”.112

A essa tensão entre os opostos soma-se a permanente crise de identidade em que se encontram as personagens. Cada uma transita agarrando-se em máscaras instáveis e sobrepostas umas as outras, gerando uma literatura fraturada e em blocos, cujo desenrolar dos fatos raramente se dá de modo contínuo e ininterrupto. O verbo “ir” que aparece de modo determinante em Hotel Atlântico (1989), sugerindo o caminhar, a travessia, o lugar de passagem, do encontro fortuito entre as pessoas, contato frívolo entre corpos, acaba se desdobrando em afastamento, distância, desencontro: “... mas evitava a idéia de recorrer a alguém. Recorrer a alguém seria o mesmo que ficar, e eu precisava ir” (p.381).

O paradoxo entre o “ir” e o “permanecer” como únicas possibilidades de escolha do sujeito-personagem, única pista de identificação revelada ao leitor que nos é dada através da frase: “Ator desempregado, vivendo nesse momento da venda de um carro...” (p. 387), torna não apenas instáveis os contornos de sua personalidade como da direção que o texto aspira: “A coisa me saiu assim, como poderia ter saído para qualquer outra direção geográfica. O que importa é que eu precisava continuar dando rumos à minha viagem” (p. 392).

112 ISER, Wolfgang. O Ato da Leitura: uma Teoria do Efeito Estético. Trad. Johannes Krestschmer Vol.1. São Paulo, Ed. 34, 1996. p. 09.

A dispersão causada pelo ritmo cinematográfico das cenas e de seus sucessivos deslocamentos dificulta o fechamento da Gestalt, sempre aberta, quebrada e submetida a um leque de possibilidades e de planos, cabendo ao leitor selecionar os princípios e as formas de agrupamentos entre eles. Daí a memória estar sempre em risco, uma vez que o narrador adverte-nos: “Eu não guardo nada comigo” (p.401).

A lembrança é sempre um campo de acesso tortuoso, estando toda ela fraturada num corpo também fraturado: “Antes de pedir um anestésico, um sedativo, eu concentrei ao máximo as minhas forças que eram quase nada, e levantei a cabeça: tinham me amputado a perna direita” (p.419). O corpo torna-se, então, equivalência mnemônica, suas marcas, registradas ao longo de Hotel Atlântico, aponta o fio condutor da trama que se arma no aqui-agora do tempo teatral. Desse modo, a personagem se corporifica (fisicalização pela linguagem) à medida que se despe de uma psicologia norteadora de caráter e de sentido. Acerca desse fato, explica-nos a cineasta Suzana Amaral:

“Eu acho que ele curte o corpo quando ele sente o corpo. Fora isso, do mesmo jeito que ele transa, ele mija, ele come. E eu vou dar ênfase a todas as atividades físicas, fisiológicas. No momento certo, mas também sem conexão com o resto. Isso no momento certo, mas uma necessária conexão com o resto. Ele não tem uma metaforização psicológica: porque ele transou com a moça, aconteceu isso, porque ele pegou na mão, não tem nada disso. É tudo instante. É tudo fora do mental. A própria história dele é um caminhar”.113

113 Suzana Amaral. Ent. Cit. A cineasta concedeu-nos uma entrevista sobre o seu projeto de apropriação para o cinema, em andamento na época e agora em fase de finalização, do romance Hotel Atlântico (1989) de Noll. Na ocasião a cineasta falou-nos de seu contato com a obra e com o autor, apontando o caráter cênico e os

O tempo da ação passa ser o tempo do corpo em estado de decantação, forma de experimento sobre a escritura que vai se tornando cada vez mais complexa pelo nível de fragmentação. Logo, “seguir” torna-se difícil uma vez que “Tudo agora se complicava, e muito: eu era um mutilado” (p.429). A imagem do ator mutilado acaba funcionando como metalinguagem do caminho interrompido, da representação fraturada e do comprometimento do todo pelas partes quase sempre em desacordo no interior do discurso. Fato claramente expresso na voz da personagem Dr. Carlos de Hotel Atlântico: “Vivemos num mundo de estruturas. Como em qualquer outra, quando se extrai uma parte da estrutura óssea toda a estrutura é afetada” (p. 431).

Constatando-se a presença do caminhar e do princípio nômade como formas de atuação das personagens nollianas, faz-se necessário atentar para o fato de que seus percursos (viagens) não ocorrem como forma de conquista do desconhecido (expansão homérica) ou da investigação sobre si mesmo (introspecção joyciana), mas diretamente pelo contato (diálogo/troca) com o outro e pelo jogo improvisacional com o ambiente, ou seja, é na cena que o sujeito em Noll se realiza.