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ESTRUTURA DO TRABALHO

3. CURADOR MEDIADOR EM ARTES CÊNICAS: UMA RESPOSTA AO TEATRO CONTEMPORÂNEO

3.1 TEATRO CONTEMPORÂNEO

3.1.3 Teatros do real

Em uma parcela do teatro contemporâneo, a investigação das relações entre realidade e ficção se acentua de tal maneira que Féral reúne estas produções sob a

terminologia “teatros do real”. Para a ensaísta, esses trabalhos se caracterizam pela

“emergência do real em cena, feita em geral de forma violenta, por interpelar o

espectador com brutalidade (FERNANDES, 2015, p. 17). A pesquisadora Silvia Fernandes se debruça sobre os trabalhos de grupos como o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos (SP), Cia São Jorge de Variedades (SP), Nós do Morro (RJ), Teatro da Vertigem (SP), entre outros, para analisar estas características que frequentemente estão associadas à modos de produção e criação que privilegiam o caráter colaborativo.

Fotografia 15 – Cena do espetáculo “Bom Retiro 958 Metros” do Teatro da Vertigem, dirigido por Antonio Araújo em 2012. Em cena, o ator Roberto Audio.

Fotógrafo: Flávio Portela. Disponível em:

https://horizontedacena.files.wordpress.com/2013/02/3c209-vertigem.jpg?w=640&h=425. Acesso em: 12 de julho de 2015

A irrupção da realidade na produção artística parece ser decorrente da exploração da alteridade, da busca por abordar questões relativas à subjetividade, gênero e geografia, de forma atenta às diferenças sociopolíticas e culturais. Deste modo, ocorre o deslocamento do ambiente artístico tradicional da cena, do “domínio relativamente seguro da experimentação cênica e da dramaturgia engajada dos anos de 1960” (FERNANDES, 2012, p. 353), em busca de outras relações e experiências com a cidade através da ocupação dos espaços urbanos ao encontro

do “outro” de caráter “social” – o excluído, o estigmatizado. Consequentemente, a “inserção política aparece agora na investigação das realidades sociais do outro e na interrogação dos muitos territórios da alteridade e da exclusão social” (op. cit., p. 353).

Este interesse pelo “outro” se evidencia também na relação entre os agentes envolvidos no processo de criação. Nas palavras de Fernandes:

Neste sentido, pode-se afirmar que o teatro de grupo inaugura uma criação em rede, que se desvincula da pesquisa específica da linguagem cênica para envolver-se em questões políticas e culturais em sentido amplo. É a partir do contato com outros pontos de vista que o novo teatro coletivo se constrói. (FERNANDES, 2012, p. 353)

Essas produções se aproximaram do estabelecimento de processos colaborativos no sentido de uma socialização do fazer artístico, que implica em relações de coautoria. Fernandes define este tipo de processo da seguinte maneira:

O modo colaborativo de construção do espetáculo, prática que começou a ganhar contornos teóricos e exemplos práticos a partir de meados dos anos de 1990, constitui-se pelo princípio de que o processo de criação – do projeto artístico ao produto final – é partilhado por todos, mas sem que haja troca de papéis ou anulação das especialidades (FERNANDES, 2012, p. 317).

Para tanto, é necessária a abertura de cada agente envolvido no processo para lidar com questões que ultrapassem os limites de sua competência, configurando um sistema de cooperação. “Como desdobramento dessa condição de produção, a pluralidade de vozes amalgamadas na prática de escrita do espetáculo acaba também por introduzir novas noções de autoria criadora” (FERNANDES, 2012, p. 317-318). Neste jogo de desapego e apropriação, ocorrem sucessivos processos de filtragem e edição. Nos procedimentos colaborativos, “as fricções e as dissonâncias são bem vindas, pois garantem a expressão singular no discurso coletivo” (op. cit., p. 353). Desta forma:

O processo colaborativo tem se revelado altamente eficiente na busca de um espetáculo que represente as vozes, ideias e desejos de todos que o constroem. Sem hierarquias desnecessárias, preservando a individualidade artística dos participantes, aprofundando a experiência de cada um, o processo colaborativo tem sido uma resposta consistente para as questões propostas pela criação coletiva dos anos de 1970: uma obra que reflita o pensamento do coletivo criador (MIGUEZ apud FERNANDES, 2012, p. 318).

O interesse pela alteridade chega, por fim, à provocação de outras formas de relacionar-se com o espectador, colocando em xeque as fronteiras tradicionais do fenômeno teatral que separam artistas e públicos. De fato, “os ‘teatros do real’ colocam em ação novas estratégias perceptivas, que obrigam o espectador a experimentar e viver o teatro em lugar de recebê-lo apenas visualmente” (FERNANDES, 2015, p. 17). A participação do espectador é, portanto, a característica que sintetiza tais produções nestes territórios de experimentação e jogo. Para Féral: “o denominador comum das diferentes formas de real no teatro é o caráter participativo, que define uma ruptura decisiva nos modos de recepção” (op. cit., p. 17).

Por exemplo, o trabalho “Clean Room” de Juan Domingues, apresentado no

Laboratoires d‘Aubervilliers em 2010, é constituído de seis episódios cuja proposta é

criar aos moldes das séries televisivas, uma comunidade fiel que acompanha o desenvolvimento de uma narrativa. Neste trabalho não há atores, o público é o protagonista da obra e responsável pela sua construção.

Diante das questões expostas, poderíamos nos indagar se o rompimento com as convenções teatrais encontrado nos teatros do real e teatro performativo produz resistência no público. Este tipo de teatro cumpre temporada ou eles necessitam um acontecimento / evento para existir? Como a característica de participação presente nos teatros do real e teatro performativo repercute na prática curatorial em artes cênicas? Quais as implicações de circular ou produzir obras como estas para um curador? Como apresentar estas obras que buscam formas estendidas de experiência? Como tornar visíveis obras que nem sempre estão comprometidas com um resultado estético? Como torná-las comercializáveis?

Diante do conjunto de recorrências identificadas nos teatros do real / performativo, optamos por nos debruçar sobre a questão da participação / colaboração, pois este procedimento tão enfatizado em tais produções, parece vir ao encontro da prática curatorial em sua função mediadora tal como a descrevemos no capítulo anterior.

A seguir, nos aprofundaremos na discussão desta questão a fim de ampliar esta reflexão a partir da contribuição de outros autores. Visamos, deste modo,

verificar quais as implicações proporcionadas pela adoção desta característica na prática curatorial.

Assim como o teatro performativo busca ultrapassar as relações de consumo e constituir-se enquanto experiência, é possível a uma curadoria também se estruturar como uma experiência?