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3 – TECENDO FIOS (IN) VISÍVEIS: ESFERA PÚBLICA E PRIVADA NA CONFORMAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE

Os mecanismos tradicionais do favor político sempre foram considerados legítimos na sociedade brasileira. Não só o favor dos ricos aos pobres, o que em princípio já era compreendido pela ética católica. Mas o favor como obrigação moral entre pessoas que não mantêm entre si vínculos contratuais ou,

se os mantêm, são eles subsumidos pelos deveres envolvidos em relacionamentos que se baseiam antes de tudo

na reciprocidade (Martins, em o Poder do Atraso, 1994, p. 35)

3 – TECENDO FIOS (IN) VISÍVEIS: ESFERA PÚBLICA E PRIVADA NA CONFORMAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE

3.1 – A natureza da subscrição do público pelo privado

No Brasil, as práticas sociais sempre foram envoltas pela interpenetração da esfera pública e a esfera privada que produziu um amálgama e indistinção entre o que é de domínio público e o que é de domínio privado. A esfera pública é o domínio do comum, o de todos, enquanto a esfera privada se refere ao que é particular, de domínio restrito. O que define o público e o privado são a finalidade e a função que cada um desempenha no conjunto das práticas e relações sociais dentro de um determinado contexto histórico.

O imbricamento da esfera pública e privada nem sempre foi tão fortemente articulado como o que conhecemos hoje. No pensamento aristotélico, a distinção entre ambas as esferas correspondia à existência das esferas da família e da política como entidades diferentes e separadas, pelo menos desde o surgimento da cidade-estado grega (ARENDT, 1991, p.37).

Na sociedade grega, as necessidades e carências dos homens exigiam que os mesmos vivessem na companhia uns dos outros, o que determinava a esfera privada. Na esfera da polis (pública) dominava a liberdade37, o uso do discurso e da ação38 que se separaram e se tornaram cada vez mais independentes um do outro. O discurso como meio de persuasão, entretanto, assumia lugar de destaque, na medida em que “o ser político, o viver na polis, significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através de força ou violência” (ibid., p. 35). Agir com violência ou forçar alguém eram fenômenos pré-políticos para os gregos, típico de vida fora da polis, característicos da esfera privada do lar e da vida em família. Viver na polis significava

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Na visão aristotélica há apenas três modos de vida que o homem podia escolher livremente: a ocupação com o belo, a vida dedicada aos assuntos da polis e a vida do filósofo. A contemplação era a atividade dos filósofos, se diferenciava das demais por não estar associada à necessidade de manutenção da vida. A liberdade não era possível nos modos de vida do labor e do trabalho, pois não havia neles a independência das necessidades da vida e das relações delas decorrentes (Arendt, p. 20).

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Para Arendt, ação é a única atividade humana que não pode ser imaginada fora da sociedade, sem a presença constante de outros homens.

lidar com iguais39, não estar sujeito nem ao domínio, nem ao comando de outro e por isso significava viver entre os seus pares.

Segundo Arendt, na sociedade grega, a relação que existia entre a esfera privada e pública era “que a vitória sobre as necessidades da vida em família constituía a condição natural para a liberdade na polis” (ibid., p. 40). Desse modo, era definido o conceito de política associado à liberdade e, portanto, restrito à vida na polis. Para a autora citada, este é o conceito antigo de política, diferente do que se definiu na era moderna40, quando os interesses privados assumem importância pública, tornando o limite entre um e outro muito tênue. A passagem daquilo originalmente de domínio privado para o público, Arendt chama de social, tornando impossível perceber o abismo entre as esferas citadas, pois

com a ascendência da sociedade, isto é, a elevação do lar doméstico (oikia) ou das atividades econômicas ao nível público, a administração doméstica e todas as questões antes pertinentes à esfera privada da família transformaram-se em interesse ‘coletivo’. No mundo moderno, as duas esferas constantemente recaem uma sobre a outra, como ondas no perene fluir do próprio processo da vida (ibid.,p. 43).

A promoção do social significou a passagem da sociedade (aquilo que originalmente era do domínio privado) para a luz da esfera pública e nesse sentido, o poder que antes se concentrava na figura do chefe de família fora adotado na esfera política (pública) pelo poder despótico do rei. Mais tarde, com o liberalismo e os ideais da Revolução Francesa, o poder político foi transformado numa espécie de governo de ninguém, em uma vontade geral que apareceu efetivada nas democracias direta e representativa. A ação espontânea foi excluída e em seu lugar, a sociedade esperava certos tipos de comportamentos adotados pelos indivíduos através de regras que

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O termo iguais significa aqui a expressão para denotar o viver entre os pares e lidar somente com eles, não tem uma conotação de justiça como a que conhecemos hoje e representa a essência da liberdade (ARENDT, 1991, p. 42)

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Arendt afirma que cientificamente a era moderna começou no século XVII e terminou no limiar do século XX. Era moderna e mundo moderno não são coincidentes, pois para a autora, politicamente, o mundo moderno surgiu com as explosões atômicas (ibid., p. 14).

normalizaram seus comportamentos. A partir do século XIX, a esfera do social atingiu, segundo Arendt,

o ponto em que abrange e controla, igualmente e com igual força, todos os membros de uma determinada comunidade. Mas a sociedade equaliza em quaisquer circunstâncias, e a vitória da igualdade no mundo moderno é apenas o reconhecimento político e jurídico do fato de que a sociedade conquistou a esfera pública, e que a distinção e a diferença reduziram-se a questões privadas do indivíduo (ibid., p.51).

A conquista da esfera pública pela sociedade, trazendo para o domínio de todos aquilo que era privativo do lar e da família implicou em mudanças nas práticas sócio- espaciais. A assunção da esfera social que não era nem pública nem privada no sentido mais restrito do termo encontrou sua forma política de ser o Estado Nacional que absorveu os grupos sociais em uma sociedade única, submetendo todos os indivíduos às regras e normas de conduta. Na era moderna, as coletividades políticas foram consideradas como famílias cujos negócios deveriam ser administrados por uma gigantesca administração que teve a nação como sua forma política de organização (ver Figura 9).

Em Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma categoria

da sociedade burguesa, Habermas (1984) afirma que a separação entre a esfera

pública e privada se desenvolveu no campo das tensões entre o Estado e a sociedade. Com a expansão das relações econômicas de mercado, os fundamentos do poder feudal foram destruídos pela economia do capitalismo comercial e com os Estados nacionais e territoriais.

Para Habermas, a gênese da esfera pública burguesa foi estabelecida pela nova ordem social, traduzida por um novo sistema de trocas (de mercadorias e de informações). A economia doméstica fechada cedeu lugar nas cidades às feiras periódicas e se desenvolveram técnicas do capitalismo financeiro (já existiam ordens de pagamento e letras de câmbio no século XIII). No trato das informações, a nova ordem social burguesa tornou necessária a sua publicização para que as associações

comerciais tivessem conhecimento dos eventos espacialmente distanciados e pudessem fazer suas transações (ibid.).

Figura 9

Relação Esfera pública/Esfera privada Esfera social Fonte: Síntese elaborada a partir de Arendt (1991)

Habermas faz referência à esfera pública burguesa que emerge da sociedade capitalista, destacando que ela chegou até nossos dias proveniente da cultura grega e da romana. Faz essa digressão como um recurso histórico, concentrando sua análise na necessidade de somente pensar a esfera pública burguesa, ligada às relações desenvolvidas no âmbito privado a partir do Estado Moderno. Uma nova fase é

Antiguidade Era moderna

Esfera Pública Domínio da liberdade Viver na polis – viver entre iguais

Lugar da ação política Uso de palavras e persuação

Forma política: polis Esfera Privada Domínio da esfera da casa, da família, da violência e da força Os homens viviam juntos para realizar suas necessidades Domínio do labor (animal laborans)

Esfera Social

Limite tênue entre a esfera pública e a esfera privada

Trouxe para a esfera pública as atividades da

vida activa (domínio do

labor, identificado com trabalho)

Estado nacional: forma política da relação público/privado

inaugurada com o capitalismo comercial; companhias de comércio inauguraram com as expedições novos territórios e foram elevadas ao estatuto de sociedade por ações. Para que elas avançassem foram necessárias garantias políticas seguras, dadas pelo Estado, através de suas instituições burocráticas.

A representatividade pública pautada nas autoridades estamentais cedeu lugar ao que passou a configurar esfera pública no sentido moderno: o poder público, confundido com poder estatal. A esfera do poder público exige uma administração e um exército permanentes, assim como se tornam permanentes os contatos no intercâmbio de mercadorias e de notícias. Para tal, a publicização da informação através da imprensa foi fundamental ao poder da administração do capitalismo mercantil, pelo qual os governos regulavam a vida das pessoas (ibid.).

A esfera pública, afirma Habermas, deve ser entendida como a esfera das pessoas privadas reunidas em um público que a reivindica para si. Esta reivindicação é feita com o fim de discutir as leis gerais da troca na esfera privada, mas que tem relevância pública (as leis de intercâmbio de mercadorias e do trabalho social). A estrutura básica da esfera pública burguesa do século XVIII é apresentada por um esquema de setores sociais (público e privado). Assim, “a linha divisória entre Estado e sociedade [...] separa a esfera pública do setor privado. O setor público limita-se ao poder público. Nele ainda incluímos a corte. No setor privado também está abrangida a ‘esfera pública’ propriamente dita” (ibid., p. 45).

Na análise de Habermas, a esfera privada compreende a sociedade civil burguesa e a esfera pública que pela opinião pública, intermedeia o Estado e as necessidades da sociedade (observar a figura 10). Desse modo, a política, através da esfera pública moderna, se constitui numa comunidade de civis que cobra do Estado a proteção e a regulação das relações privadas, seja na família, seja no mercado.

Habermas assinala que a sociedade civil (setor de troca de mercadorias, do trabalho social e ainda a família) se constituiu como um contrapeso à autoridade. Ele afirma que “as atividades e relações de dependência que até então, estavam confinadas ao âmbito da economia doméstica, passam o limiar do orçamento doméstico e surgem à luz da esfera pública” (ibid., p. 33). A privatização da atividade econômica

impõe, dessa maneira, um intercâmbio mais amplo, controlado publicamente na medida em que passaram a ocorrer fora dos limites da própria casa e se constituíram em interesse geral. É a isso que se refere Arendt quando observa a esfera privada tornada pública com a formação da esfera social da era moderna.

Figura 10

Relação esfera pública/privada em Habermas

Fonte: Síntese elaborada pela autora a partir de Habermas (1984)