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TINDER 169 2.7 A LENDA URBANA DO CRIMINOSO ATRÁS DA TELA: O IMPACTO SOBRE

1.2 A TECNOLOGIA, SEUS PROPÓSITOS E OS USOS QUE DELA SÃO FEITOS

O amplo acesso à tecnologia possibilitou que os usuários da rede pudessem interagir mais uns com os outros e permitiu a produção e circulação de conteúdos por parte de milhões de pessoas ao redor do mundo. No entanto, não é possível pensar que há uma ampla liberdade criativa nesses espaços considerando que as plataformas moldam a maneira como seus usuários vão agir, reagir e se comunicar. Segundo Van Dijck (2016, p.13), “é uma falácia acreditar que as plataformas não fazem nada além de facilitar as atividades da rede. Pelo contrário, as plataformas e práticas sociais são mutuamente constituídas”. Ou seja, nos sentimos livres para criar e distribuir conteúdo, para interagir com outras pessoas e para buscar informações, mas essas ações são todas limitadas pelas ferramentas. No Tinder, por exemplo, é possível flertar de maneira mais livre, mas, para que se possa interagir com outros usuários, é preciso ser aprovado por eles. Essa premissa influencia muito as mulheres com as quais conversei ao longo do meu trabalho de campo. É pensando nos homens que querem atrair que elas escolhem as fotos do perfil, elaboram a descrição de si (ou deixam o espaço em branco) e até mesmo decidem sobre expôr ou não a idade verdadeira. O mesmo ocorre no Facebook, maior rede social da atualidade, onde também precisamos nos adequar às maneiras como a ferramenta limita nossas interações – ninguém quer, por exemplo, postar um conteúdo que não gere “likes” (aprovação de outros usuários manifestada pelo botão “curtir” disponível em todas as publicações feitas na rede social). Isso porque receber muitos likes, ou seja, a aprovação de outros usuários, é importante para a sociabilidade do sujeito e é determinante, inclusive, para que ele possa se tornar um influenciador digital e monetizar sua presença nas diferentes plataformas.

A escolha do botão “like” revela uma predileção ideológica: favorece avaliações instantâneas, viscerais, emocionais e positivas. Desta forma, a popularidade transformada num conceito codificado torna-se não apenas quantificável, mas também manipulável: promover classificações de popularidade é uma parte fundamental do mecanismo que carregam botões desse tipo. Aquelas pessoas que têm muitos amigos ou seguidores começam a ser consideradas influentes e sua autoridade ou reputação social aumenta na medida em que recebem mais cliques. As ideias que recebem likes de muitas pessoas podem chegar a se converter em tendências (Van Djick, 2016, p.19).

Nesse sentido, pensando os sujeitos como aqueles que atribuem sentido e produzem conteúdos nas plataformas, mas dentro dos limites impostos por elas, fica evidente a ideia de constituição mútua de plataformas e práticas sociais da qual fala Van Djick (2016), mas também é possível refletir sobre como esses espaços virtuais refletem questões arraigadas em

nossas rotinas – admiramos, aprovamos, produzimos e distribuímos conteúdos nessas ferramentas a partir dos contextos nos quais estamos inseridos e dos nossos comportamentos socialmente construídos ao longo do tempo. Sobre isso, a autora vai dizer que “o ecossistema on-line está incorporado em um contexto econômico, político e sociocultural, que é inevitavelmente afetado pelas suas circunstâncias históricas” (VAN DJICK, 2016, p.16). Ao longo de minha investigação para esta dissertação, identifiquei um aspecto importante que permeia as relações de minhas interlocutoras de pesquisa no Tinder: a vergonha. Preocupadas em serem percebidas como mulheres dignas de um relacionamento sério, elas temiam serem vítimas de preconceito, não queriam ser mal vistas por estarem no aplicativo e, em optando por usar a ferramenta, preocupavam-se em escolher fotos que não mostrassem muito o corpo ou que não insinuassem que estavam em busca, exclusivamente, de sexo, porque acreditavam que, se fossem vistas dessa maneira, não seriam valorizadas pelos homens. Para além disso, tinham medo de que os homens com os quais conversavam julgassem, pelas fotos, que elas estavam dispostas a manter relações e sexuais e tirassem delas o direito de negar, tornando-se vítimas (culpabilizadas) do estupro. Ou seja, em uma sociedade em que a violência de gênero é muito presente, o contexto ainda é muito relevante para as sociabilidades dessas mulheres nos aplicativos de relacionamento. Falarei mais sobre isso no segundo capítulo, em que analiso os dados decorrentes de minha investigação.

Mas, assim como o contexto histórico, político e econômico influencia os comportamentos e a vida dos usuários dessas plataformas, a tecnologia também é determinante para sermos quem somos. Sobre isso, Lupton (2015, p.2) diz que a ideia de cultura e de sociedade “não pode agora ser totalmente compreendida sem o reconhecimento de que o software e os dispositivos de hardware não apenas sustentam, mas ativamente constituem a individualidade, a corporificação, a vida social, as relações sociais e as instituições sociais”.

A partir disso, também é possível pensar sobre os diferentes usos feitos dessas plataformas, muitos deles imprevistos e muitos deles diferentes em lugares distintos do planeta. Miskolci (2017) nos ajuda a compreender esses usos diversos das plataformas a partir da pesquisa que desenvolveu em sites e aplicativos de relacionamentos voltados para o público homossexual masculino em São Paulo (SP) no Brasil e em São Francisco, Califórnia, nos Estados Unidos. O autor deu início à pesquisa em mídias digitais em 2007, por meio de salas de bate-bapo, na capital paulista. Em 2013, foi para São Francisco, no estado norte- americano da Califórnia, em busca de verificar semelhanças e diferenças nas sociabilidades dos usuários dessas plataformas, desta vez, mais voltado para os emergentes aplicativos para

smartphones. Para tanto, contatou homens com idades entre 30 e 45 anos por diferentes aplicativos e sites, sempre considerando os contextos em que esses sujeitos estavam inseridos – o Brasil, notadamente reconhecido pela homofobia arraigada, e os Estados Unidos, especialmente São Francisco, por serem o berço da chamada Revolução Sexual na década de 1970, ocasião em que o movimento gay intensificou a busca por visibilidade, respeito e liberdade sexual e afetiva. Em comum, segundo Miskolci, usuários de ambos os lugares onde a pesquisa foi desenvolvida disseram utilizar-se das plataformas para conseguir encontrar mais homens gays e, com essa amplitude maior de contato, identificar, sobretudo, diversas possibilidades de relações sexuais rápidas e casuais. Há, portanto, com os aplicativos, segundo o autor, uma sensação de agência desejante e autonomia de busca por parceiro, que é mais individualizada, uma mudança na ordem da busca, no sentido de que o sexo vem antes da afinidade, uma aceleração nas relações e uma ampliação do acesso a parceiros. Além disso, em São Paulo e em São Francisco, o pesquisador identificou que, nessa nova maneira de se relacionar, mediada pelas plataformas digitais, os usuários parecem estar diante de uma tabela de Excel do amor: com uma busca mais organizada, que segue a lógica de mercado e com contornos midiáticos – as empresas que provém esses aplicativos imaginam seus usuários como bem sucedidos e passam a moldar seus desejos a partir de representações de homossexualidade, que dizem respeito a homens que frequentam academias, viajam e se vestem bem.

No entanto, uma constatação marcante da diferença entre os usos da plataforma na cidade brasileira e na cidade norte-americana, está na forma como os usuários se apresentam nos âmbitos on e off-line. Enquanto em São Paulo os homens costumavam se relacionar, publicamente, com mulheres, para manterem as aparências de seguirem uma vida heteronormativa, em São Francisco, os homens eram todos assumidamente gays e se relacionavam exclusivamente com homens, embora, “assim como os paulistanos, negociassem a visibilidade de seu desejo de acordo com o contexto e a pessoa com quem interagiam” (Miskolci, 2017, p.122). Em ambos os ambientes onde a pesquisa se desenvolveu, os aplicativos são percebidos como um facilitador de contato (exceto para os homens mais velhos moradores de São Francisco, que ainda encontram muitas dificuldades para lidar com os smartphones e que viram minguar os bares e festas em que costumavam flertar antes). Porém, a despeito dessas semelhanças, uma diferença fundamental entre os usos que esses homens fazem desses aplicativos em São Paulo e em São Francisco está no fato de que, na capital paulista, os homens aproveitam essa tecnologia para empreenderem uma busca discreta, escondida, sigilosa. Na cidade brasileira, a busca por parceiros discretos e fora do

meio, ou seja, que pareçam heterossexuais e que não frequentem espaços reconhecidamente LGBTQ+, é muito mais marcante, já que, em nosso país, o “homossexual reconhecível publicamente ainda é imaginado como moralmente repreensível ou exposto a formas diversas de preconceito e retaliação social” (MISKOLCI, 2017, p.287). Já na cidade norte-americana, a discrição, o sigilo e o esconderijo não são os principais motivadores, considerando que esses homens sentem-se mais livres para exercer suas sexualidades. O que os motiva, sobretudo, a acessar esses aplicativos é a possibilidade ampliada de acesso a homens gays. Além disso, conforme os usuários de ambas as cidades, as plataformas permitem filtrar melhor as pessoas com quem vão interagir.

Portanto, é possível notar que, assim como os aplicativos moldam os comportamentos de seus usuários, os usuários também acabam adaptando os usos dessas ferramentas e, muitas vezes, obrigam as plataformas a se transformarem a partir dos usos que delas são feitos. Além disso, a concorrência e o contexto em que essas ferramentas estão inseridas são impulsionaroes importantes para seus aprimoramentos constantes.

É evidente que as plataformas de mídia social, longe de serem produtos acabados, são objetos dinâmicos que estão sendo transformados em resposta às necessidades dos usuários e objetivos dos seus proprietários, mas, também, pela reação às outras plataformas com as quais precisam competir e, em geral, a infraestrutura econômica e tecnológica em que se desenvolvem. (VAN DIJCK, 2016, p. 14).

Minhas interlocutoras de pesquisa fazem usos diferentes do Tinder – buscam sexo casual, relacionamentos duradouros ou simples distração – mas, em sua maioria, preocupam- se com um uso, em específico: o uso criminoso da ferramenta. Uma busca simples na internet por reportagens relacionadas a crimes ocorridos em encontros que tiveram o intermédio da ferramenta mostra que os casos são poucos. Ainda assim, existem, e vitimam, também, homens usuários do aplicativo. Diante disso, o Tinder criou um manual de segurança para seus usuários. Falarei mais sobre isso no segundo capítulo desta dissertação, em que abordo, de maneira mais pormenorizada, as preocupações de minhas interlocutoras acerca de sua presença na ferramenta.

1.3 O DESAFIO METODOLÓGICO DO CAMPO EM UM APLICATIVO DE