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4 O ENTRELAÇAMENTO DOS SENTIDOS

4.4 TELA-PELE: CAMPO DE PASSAGENS ENTRE A SUPERFÍCIE E A

Embora a escolha do sentido háptico, como metáfora que discute o engajamento afetivo do espectador tenha aqui a função de não criar uma oposição entre o táctil e o óptico, as diferentes características entre o háptico e o óptico e uma discussão não abrangente sobre esses, podem tender a criar um discurso de oposições. A noção de superfície trazida aqui pela visualidade háptica como fator de aproximação e engajamento do corpo não busca a oposição, mas um modo de fazer acessar outras sensações e experiências além daquelas que estamos acostumados com a visão distanciada que, ao mesmo tempo, significa uma visão normatizada e muito acostumada a determinados modos de tratamento estético da imagem e, portanto, a padrões de CSM. Neste sentido, também é possível abarcar uma tentativa de trazer para a experiência, via superfície, uma desestabilização da própria ideia simplificadora de superfície, de tentar entender a superfície mais como um campo de passagens do que de limites.

A superfície tem agregado, em nossa sociedade, um valor negativo - um valor de superficialidade, de que algo é visto e vivido de maneira rasa. Esse ponto também está alicerçado em um pensamento que nos leva a valorizar o distanciamento e a profundidade. O modo como esse pensamento é configurado pode ser explicado na própria construção do conceito de superfície.

A superfície foi definida por Euclides (300 AC), em Elementos de Geometria (COMMANDINO, 1944), como aquele elemento que tem comprimento e largura e, portanto, apenas duas dimensões e, por essa definição, assume um achatamento. É uma área sem profundidade. Importante lembrar que essa definição é uma abstração que serve a operações matemáticas de medidas de espaço, medidas de superfície, na qual sua unidade é o metro quadrado (m2). Mas, para representar, reproduzir, construir uma superfície, é necessário sempre um ou mais suportes ou de um ou mais materiais: um papel, uma madeira, pedras, tijolos, areias, tecidos, telas. E um suporte ou um material é sempre tridimensional, não importa o quanto fino ele seja. Entretanto, os achatamentos das superfícies como ideia estão impregnados, nas nossas relações com as coisas e suas aparências, com sua extensão e seu comprimento, pois se diz da superfície como aquilo que aparece das coisas, sua área visível. É nesse sentido que uma desvalorização da superfície em favor da profundidade tem se configurado na cultura ocidental. Sempre falamos que algo é superficial para dizer que não é

bom ou que se trata apenas da aparência. A própria ideia de aparência já é carregado de valor negativo, opondo-se à essência.

A dicotomia entre superfície e profundidade está pautada no mesmo pensamento dicotômico que divide o corpo e a mente, o fora e o dentro, sendo no ponto de vista dicotômico, a superfície uma divisão propriamente dita. Aqui funciona como uma parede, um muro que separa, impossibilitando diálogos, misturas, conexões e transferências de informações, líquidos e imaginações. É o mesmo pensamento que não compreende o sujeito acoplado estruturalmente ao seu ambiente.

Giuliana Bruno (2014), também uma estudiosa da visualidade háptica, preocupada com a desvalorização da superfície na cultura ocidental, escreveu o livro Surface: Matters of

Aesthethics, Materiality, and Media (Superfície: questões de estética, materialidade e mídia-

2014) relacionando, entre outras questões, como a nossa percepção do espaço, das coisas e do mundo passa, sobretudo, pela superfície da pele, pois é por essa que entramos em contato com o mundo. Em uma entrevista para o lançamento do seu livro, a autora falou:

Quando alguém diz “superficial” geralmente é de uma forma negativa. Por isso interroguei-me sobre o porquê de acoplar essa negatividade a uma forma material que está tão presente nas nossas vidas e é tão central. [...] Falar de superfícies significa também mudar a nossa perspectiva do visual para o táctil, porque a nossa primeira superfície é a face - “surface”. A pele expressa a nossa cultura, as nossas emoções, como cobre o nosso corpo e nos permite estar em contato conosco, com os outros e com o mundo. Este sentido háptico de estar em contato é a nossa primeira experiência do espaço. Pensamos que contemplamos o espaço, mas vivemos de um modo háptico, tocando e mexendo. Esta hapticidade é uma parte muito importante do modo como apreendemos o visual e o espaço visual. (BRUNO, 2014b).

Em que medida pode-se pensar em um diálogo entre superfície e profundidade no audiovisual e conjecturar a ideia de que a tela não é um espaço de achatamento, que encontrasse profundidade na superfície, ou mesmo, que ela abarca a tridimensionalidade?

Afirmar que a superfície possa conter tridimensionalidade não significa eliminar fronteiras indiscriminadamente ou acreditar em camadas amorfas, onde tudo é transponível e transitável, já que o acoplamento não significa destruir a unidade, mas possibilitar o permear. Por isso, a pele em sua configuração, como unidade que se acopla estruturalmente ao ambiente permitindo as passagens e transformações, serve-nos como metáfora. Ao lado da metáfora háptica, podemos aprofundar a importância da pele e, consequentemente, de todo o corpo - e fazer correlações com a tela não apenas como superfície e fronteira, mas na percepção do espaço e sua tridimensionalidade. A pele é o maior órgão de sentido do corpo humano. Como membrana de trânsito (FERRAZ, 2014) entre o mundo de fora e o de dentro do corpo, com seu sistema de trocas, a pele tem função de decisiva importância para a

sobrevivência do ser. Essas trocas que acontecem por reações químicas e físicas, mas também mecânicas em suas camadas (a derme e a epiderme) e, portanto, de forma não achatada, permite pensar os seus pelos, poros, células e terminações nervosas como espaços ou veículos de mediação ou que “a pele é uma superfície fechada em três dimensões e se ramifica nas três dimensões do espaço terrestre, assim como os ossos”. (GIBSON, 1966, p. 114). Sendo assim, pela qualidade constitutiva da pele, em permitir o trânsito e a conexão entre o dentro do nosso corpo e o nosso entorno, pode-se questionar o seu caráter de superfície, ampliando seu aspecto tridimensional nas passagens do corpo. Como cita a autora Deane Juhan, em seu livro sobre a Korperbewusstsein (Consciência corporal-1987), essas referências complexas entre superfície e profundidade já estão abarcadas desde a formação embriológica da pele que constitui com o cérebro uma unidade desde então.

A conexão entre a pele e o sistema nervoso central tem razões fisiológicas e anatômicas. A pele e o cérebro originam-se da mesma célula matriz, a ectoderme. Apenas o ponto de vista pode decidir se a pele é a superfície externa do cérebro ou o cérebro é a camada profunda da pele. Superfície e núcleo interno resultam da mesma camada e funcionam durante a vida do organismo como uma unidade, separável apenas pelo bisturi da abstração analítica. [...] Quem toca a superfície também toca o fundo. (JUHAN, 1992, p. 119).149

Ou seja, a pele tem esse potencial de abarcar a profundidade do corpo como a profundidade do espaço, configurando-se como um meio de comunicação entre o dentro e o fora por excelência.

Abordar a capacidade de compreender as passagens da superfície à profundidade, no que se refere à tela do vídeo de modo semelhante à pele, é entender uma transposição como ato de percepção; é entender a superfície não como barreira, mas como teia, tecido, área de trânsito e de locomoção. Neste sentido, é possível fazer uma correlação entre a superfície da pele e a superfície da tela, ambos como mediadores, ligando espaços internos e externos. Voltamos a Giuliana Bruno (2014), que vê a superfície como um meio (Medium), conectando espaços virtuais do mundo do filme e espaços materiais do mundo dos corpos.

Há transferências da pele para a tela, [...] a superfície é ela própria um médium. A superfície é um “entre”, é algo que liga o interior e o exterior. Se pensarmos nela como uma pele, num sentido lato, percebemos que é uma fronteira permeável, põe o ser em contato, é uma forma de comunicação. Esta ideia de superfície reflete sobre a origem do médium como uma forma de conectividade, no mundo virtual assim como no material. (BRUNO, 2014b).

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149 Der enge Zusammenhang von Haut und Zentralnervensystem hat handfeste anatomische und physiologische Gründe. Haut und Gehirn entstehen aus den gleichen Urzellen, die Ektoderm. Nur der Blickwinkel entscheidet, ob die Haut die äußere Oberfläche des Gehirns oder das Gehirn die tiefste Schicht der Haut ist. Oberfläche und innerster Kern entstehen aus dem gleichen Muttergewebe und funktionieren während der Lebensspanne des Organismus als Einheit, teilbar nur durch das Seziermesser analytischer Abstraktion [...] Wer die Oberfläche berührt, berührt auch die Tiefe. (JUHAN, 1992, p. 119).

A associação da tela com a pele não é gratuita, apresenta-se como um campo de limites e, ao mesmo tempo, de transposição entre as estruturas: uma superfície que implica em si mesmo um adentrar na profundidade ou, ainda, um processo de envolvimento corporal e espacial; um campo visível de passagens que o espectador atravessa.

Segundo Elsaesser e Hagener (2013), a palavra Tela (Screen ou Schirm), na língua inglesa e alemã etmologicamente, não esteve associada a um campo de projeção, de passagens de luz, muito menos à ideia de tornar algo visível. Tanto Schirm quanto Screen origina-se de Scirm (alemão do século 14), que significa sombrinha, indicando proteção contra as intempéries do tempo (sol, chuva, vento) ou, ainda, cobrir. Em Inglês, Screen referia-se a uma disposição em que um quarto, ou em que um espaço aberto é dividido (tal como por um biombo), com a intenção de esconder uma parte do espaço. Screen também significava revestimento ou um filtro de proteção como processo que cobre à luz solar brilhante que protege uma pessoa ou objeto sensível à luz. Essas definições são exatamente o contrário a dar visibilidade a algo ou dar visibilidade a espaços nos quais se possa ultrapassar. Segundo os autores, foi em 1864 que, pela primeira vez, a palavra Screen foi utilizada para designar uma superfície na qual uma imagem ou objeto pode ser representado. E, processualmente, passa a significar o espaço de projeção de imagens.

A proverbial "tela de prata" (silver screen) foi originalmente usado na projeção de imagens com a Lanterna Mágica, um dos precursores do cinema como entretenimento popular. E a técnica de projeção de fantasmagoria conhece o conceito de "tela de fumaça" (smoke screen), porque aqui não é projetado sobre um suporte material, mas na fumaça e vapor: O ar é tornado opaco para que a luz e sombra sejam registradas nele, sem que isso o faça ser percebido como divisão ou obstáculo. (ELSAESSER; HAGENER, 2013, p. 54).150

Embora as versões etimológicas da palavra tela no Inglês (Screen) e Alemão (Bildschirm) demarquem mais um campo de separação do que aproximação, a palavra tela do latim tela.ae significa fio, tecido, teia, cuja derivação texere é tecer, fazer tecido ou entrelaçar. Um significado que coaduna com o processo de desenvolvimento deste dispositivo de exibição de imagens no cinema (mas não apenas nele) e seu potencial de reverberação em outros sentidos. Seu potencial de mobilizar corpos permite a utilização da metáfora háptica em uma comparação com o funcionamento da pele, como campo de passagens, percepções e entrelaçamentos, pois háptico e óptico, assim como toque e visão, não precisam estar em _______________

150 Die sprichwörtliche „Silver screen“ fand ursprünglich Verwendung bei der Projektion von Bildern mit der Lanterna Mágica, einer der Vorläufer des Kinos als populäre Unterhaltung. Und die Projektionstechnik der Phantasmagorie kennt den Begriff der „smoke screen“, denn hier wird nicht auf einen materiellen Bildträger projiziert, sondern auf Rauch oder dampf: Die Luft wird undurchsichtig gemacht so daß Licht und Schatten darauf festgehalten werden, ohne daß dies allerdings als Teilung oder Hindernis wahrgenommen wird. (ELSAESSER; HAGENER, 2013, p. 54).

oposição estrita um com o outro. Muito pelo contrário, como já trazido pelos autores empáticos, esses sentidos condicionam-se mutuamente na percepção do espaço e, por isso, no desbravar do espaço fílmico, essas visões podem ser entendidas como complementares.

É nesse sentido que, apesar de sua preocupação com a superfície, a Giuliana Bruno, no início de sua pesquisa, não atrelou a visualidade háptica, exclusivamente, à superfície como único meio de produzir percepção háptica. Para ela, ver hapticamente envolve também o processo de formação espacial e sustenta que a leitura feita pelo espectador do espaço construído no filme tem um apoio no sentido háptico:

A relação entre o filme e o conjunto arquitetônico fílmico envolve um embodiment, pois se baseia na inscrição de um observador no campo - um corpo fazendo viagens no espaço. Tal observador não é um contemplador estático, um olhar fixo, um olho desencarnado. Ele é uma entidade física, um espectador em movimento - um "trabalho de pele" desenhando o mapa do espaço háptico. (BRUNO, 1997, p. 6).151

Essa noção de viagem no espaço fílmico é muito próxima da ideia do espaço caleidoscópico em Robin Curtis (2016). Além disso, Bruno compara a ação do espectador no espaço fílmico semelhante à sua ação no espaço arquitetônico de um edifício, o que reconecta com a projeção das coordenadas em Schamarsow.

O espectador (i)móvel do cinema se move através de um caminho imaginário, percorrendo vários locais e tempos. Sua navegação ficcional conecta momentos e lugares distantes. Filme herda a possibilidade de tal viagem espectatorial do campo arquitetônico, para a pessoa que vagueia através de um edifício ou um site também absorve e conecta espaços visuais. Nesse sentido, o consumidor de espaço de visualização arquitetônico é o protótipo do espectador de cinema. (BRUNO, 2010, p. 24).152

A videodança Aster (1997), com direção artística e coreografia de Philippe Decouflé, é

um exemplo de como o corpo pode viajar no espaço arquitetônico e caleidoscópico construído pela conjunção dos movimentos da câmera e dos dançarinos. Fatores para isso são um forte e desprendido movimento de câmera no espaço, estabelecendo a recorrente associação a uma câmera que dança, assim como a colocação dos corpos dos dançarinos como propiciadores da percepção de profundidade (Figura 39). Esse último é um efeito muito semelhante ao modo de construção de Cunningham e Atlas/Caplan, que faz com que o posicionamento de um em _______________

151 The relation between film and the architectural ensemble involves an embodiment, for it is based on the inscription of an observer in the field--a body making journeys in space. Such an observer is not a static contemplator, a fixed gaze, a disembodied eye/I. She is a physical entity, a moving spectator--a "skin job" drawing the map of haptical space. (BRUNO, 1997, p. 6).

152 The (im)mobile film spectator moves across an imaginary path, traversing multiple sites and times. Her fictional navigation connects distant moments and far-apart places. Film inherits the possibility of such a spectatorial voyage from the architectural field, for the person who wanders through a building or a site also absorbs and connects visual spaces. In this sense, the consumer of architectural viewing space is the prototype of the film spectator. (BRUNO, 2010, p. 24).

relação ao outro venha a sugerir um adentrar, junto com os dançarinos, no espaço da tela e que se potencializa com o movimento da câmera. São movimentos que se aproximam e se afastam dos dançarinos; aumentam e diminuem as proporções dos corpos e nos leva a sensação de poder tocar algumas partes dos seus corpos, mas também observá-los inteiros à distância.

Como em Cunningham, o trabalho apresenta uma elaboração consciente do movimento nos detalhes e no limite de aparição do corpo no enquadramento como uma moldura, em que a criação de volume e tridimensionalidade é experimentada claramente com a superposição dos corpos nas diferentes áreas do espaço. Em alguns momentos, é utilizado o técnica white pan ou “panorâmica chicote” para criar um borramento na imagem e, assim, jogar também com a superfície. Nesse efeito, a câmera é movimentada rapidamente para fazer a transição para outra cena, dando tanto uma textura abstrata para a imagem como sensação de continuidade para o próximo movimento. Ambos os mecanismos estéticos jogam com os “espaços entre”. Interessante aqui é a aparição da mão muito próxima à câmera, criando tanto um enquadramento e profundidade como sugerindo o tato exploratório.

Figura 39 – Superposições dos corpos dos dançarinos criam profundidade e a sensação de adentrar o espaço em Aster (1997) de Philippe Decouflé.

Link de acesso: https://youtu.be/5R3BosI9ahs.

É exatamente o caráter superficial que possibilita a profundidade, o espaço que se constrói entre as oposições, dissolvendo qualquer modo de apreensão ou fruição única baseada apenas em um tipo de olhar. Portanto, entendemos que as relações de tensão que possam ser construídas entre os espaços ópticos e hápticos nos ajudam a vivenciar a superfície bidimensional da tela para além de uma visão dicotômica dos olhares extremos e separados. Possibilitam viajar nesses espaços como caleidoscópios visuais apoiados nas partes profundas da pele e articulações.