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Capítulo 6 – Análise do tempo e espaço

6.1. Tempo

No contexto literário, podemos entender que “[...] O tempo que emerge da literatura – por mais fantasioso, absurdo e delirante que possa parecer – é um tempo

social, a expressão de um modo de atribuição coletiva de sentidos para o tempo.”

(SANTOS; OLIVEIRA, 2001, p. 53 – grifo no original), sendo assim podemos pensar em dois tempos: o tempo do momento da leitura, também chamado de tempo da enunciação e o tempo retratado na escrita, ou tempo dos enunciados.

O tempo da enunciação será “[...] sempre presente pelo fato de só se construir, no caso da língua oral, no presente da fala, e, no caso da escrita, no

presente da leitura. [...]” (Santos; Oliveira, 2001, p. 48-49 – grifo no original). Este

tempo será aquele que acontecerá quando o leitor estará em plena atividade, ou seja, no próprio momento da leitura. E esse tempo “[...] proporciona à obra o caráter de ato, de atualidade, é o tempo constitutivo de qualquer expressão artística.” (Santos; Oliveira, 2001, p. 47 – grifo no original).

Já o tempo dos enunciados, é aquele “[...] que se desloca a partir do presente da enunciação” (Santos; Oliveira, 2001, p. 49). É o tempo retratado na obra, ou seja “o tempo ficcional” com a “atribuição de uma dimensão temporal aos eventos relatados, [...]” (Santos; Oliveira, 2001, p. 50-51) E somente por meio de “[...] pactos propostos ao leitor, o tempo ficcional pode ser constituído como um tempo pluridimensional.”, ou seja “é possível desenvolver vários planos temporais.” (Santos; Oliveira, 2001, p. 51 – grifo no original).

A obra Interview with the vampire (2009) representará este tempo pluridimensional, constituído tanto pelo tempo da leitura quanto pelo tempo narrativo da ficção que se desdobrará em vários tempos: o tempo da história, o tempo dos vampiros e o tempo do suposto jornalista, o ouvinte.

Como o vampiro é um ser que atravessa séculos de sua existência, para ele a relação do tempo é completamente diferente. O tempo não atua sobre eles:

‘For a long moment it seemed I simply stood there; time had no bearing upon me nor upon those shifting vampires with their light, ethereal laughter filling my ears. I remember thinking that I wanted to put my hands over my ears, but I wouldn’t let go of the dress, couldn’t

stop trying to make it so small that it was hidden within my hands. […]’ 180 (RICE, 2009, p. 300)

Há ainda outro trecho em que Louis comenta a diferença sobre o tempo dos humanos e dos vampiros quando diz:

‘Years passed in this way. Years and years and years. Yet it wasn’t until some time had passed that an obvious fact occurred to me about Claudia. I suppose from the expression on your face you’ve already guessed, and you wonder why I didn’t guess. I can only tell you, time is not the same for me, nor was it for us then. Day did not link to day making a taut and jerking chain; rather, the moon rose over lapping waves.’181 (RICE, 2009, p. 100)

A diferença do tempo para os humanos e os vampiros é também relatada em outra passagem do romance: “‘Not very long after that I told Armand I’d seen Lestat. Perhaps it was a month, I’m not certain. Time means little to me then, as it means little to me now. But it meant a great deal to Armand. He was amazed that I hadn’t mentioned this before.’”182 (RICE, 2009, p. 330). Mais uma vez, Louis mostra a relatividade do tempo para os vampiros e os humanos bem como a incerteza dos acontecimentos. Tal incerteza dá-se pelo fato de que Louis está forçando sua memória para lembrar os acontecimentos passados e por isso há uma imprecisão do tempo.

O decorrer dos anos e a mudança dos séculos não são bem aceitos pelo vampiro Lestat, porque ele não consegue se adaptar aos tempos decorridos e podemos entender que esta não aceitação do tempo é representada pela velhice, pelo próprio definhar dos humanos. Sendo assim, o tempo nos vampiros acaba

180 - Acho que durante muito tempo fiquei simplesmente ali; o tempo não atuava sobre mim nem sobre aqueles vampiros mutáveis, com suas gargalhadas sonoras e etéreas enchendo meus ouvidos. Lembro-me de ter pensado que queria tapar os ouvidos, mas não poderia largar o vestido, não conseguiria parar de tentar torná-lo tão pequeno a ponto de escondê-lo nas mãos. [...] (RICE, 1992, p. 298)

181 - Os anos transcorreram assim. Anos, anos e anos. Mas precisei de muito tempo para que me ocorresse algo óbvio a respeito de Cláudia. Pela sua expressão, suponho que você já adivinhou e me pergunto por que eu demorei tanto a fazê-lo. Posso lhe assegurar que, para mim, o tempo é diferente e já o era naquela época. Os dias não se ligam formando uma corrente contínua e retesada. Em lugar disto, a lua nasce sobre ondas interrompidas. (RICE, 1992, p. 106)

182 - Não demorei muito para dizer a Armand que tinha visto Lestat. Um mês, talvez, não tenho certeza. Na época o tempo significava pouco para mim, como agora. Mas significou muito para Armand. Ele se espantou por não lhe haver contado antes. (RICE, 2009, p. 330; tradução livre)

tendo o mesmo efeito do tempo nos humanos, a não adaptação é esta representação de ter vivido em uma outra época.

[…] ‘He’s met with his own perfect revenge. He’s dying, dying for rigidity, of fear. His mind cannot accept this time. Nothing as serene and graceful as that vampire death you once described to me in Paris. I think he is dying as clumsily and grotesquely as humans often die in this century… of old age.’183 (RICE, 2009, p. 331)

Ainda sobre a questão temporal, mas agora no caso da produção escrita, podemos dizer que há “[...] uma defasagem de tempo entre quem escreve e quem lê, a enunciação, sempre no presente, pode gerar o efeito de suspensão dessa defasagem, permitindo um diálogo cujas vozes soam na intensidade de suas presenças.” (Santos; Oliveira, 2001, p. 49). Desta forma, podemos entender que o tempo se diferencia. O tempo do personagem será diferente do tempo do escritor que por sua vez, será diferente do tempo do leitor.

No romance Interview with the vampire (2009), o personagem Louis usará o tempo psicológico, pois relata a um suposto jornalista suas experiências através do fluxo de consciência, ou seja, o tempo da memória.

Este tempo psicológico é, neste caso, o tempo do personagem, conforme o conceito de Henri Bergson (1990 apud Santos; Oliveira, 2001, p. 57), é a “durée - duração” ou seja, é o conceito da mudança qualitativa “dos estados de consciência, os quais se fundem sem contornos precisos e sem possibilidades de medição.” (BERGSON, 1990 apud Santos; Oliveira, 2001, p. 57).

Essa relação do tempo psicológico leva às incertezas porque, é a partir do relato da memória de Louis que teremos a narração dos acontecimentos. Ele mesmo por diversas vezes é impreciso nas datas e na ordem dos acontecimentos, porque conforme já visto no capítulo 4, a perspectiva é a de Louis, portanto são “[...] as recordações, nas quais o autor esforça-se por estar “com” aquele que foi um dia, [...]” (POUILLON, 1974, p. 45). E no caso de Interview with the vampire (2009) é o

183 […] – Ele próprio encontrou a vingança. Está morrendo, morrendo de rigidez, de medo. Sua mente não consegue aceitar esta época. Nada tão sereno e elegante como a morte de vampiro que me descreveu uma vez em Paris. Acho que está morrendo tão grotesca e desajeitadamente quanto os humanos deste século... de velhice. (RICE, 1992, p. 326)

“narrador –personagem” (Santos; Oliveira, 2001, p. 7) quem relatará suas experiências pessoais como personagem central da trama.

A imprecisão das datas e da ordem dos acontecimentos é mostrada no trecho: “There were other changes in her. I cannot date them or put them in order. She did not kill indiscriminately. […]”184 (RICE, 2009, p. 102). Aqui Louis está falando de Cláudia, a garota vampiro, mas sua memória fica imprecisa ao relatar os fatos ocorridos, não se lembra das datas ou mesmo da ordem dos acontecimentos.

Há ainda outros trechos em que sua memória falha e temos a nítida sensação da imprecisão dos fatos, como acontecido na briga com Lestat:

‘I cannot tell you all that happened then. I cannot possibly recount it as it was. I remember heaving the lamp at Lestat; it smashed at his feet and the flames rose at once from the carpet. […] ‘What happened then is not clear to me. I think I grabbed the poker from her and gave him one fine blow with it to the side of the head. I remember that he seemed unstoppable, invulnerable to the blows. […] I remember taking off my coat and beating at the flames in the open air, […]’185 (RICE, 2009, p. 155-156)

A incerteza de Louis é característica do fluxo de consciência, “a experiência de um tempo relativizado em função da consciência singular de quem o vive.” (Santos; Oliveira, 2001, p. 58). Podemos entender o efeito desta incerteza: “Trata-se de uma impressão muito real: quando consideramos a vida de um indivíduo, parece- nos ridículo imaginar-lhe uma existência diferente, [...]” (POUILLON, 1974, p.128). Este é o efeito alcançado pelo vampiro Louis, a veracidade de sua história. É a “[...] exploração da tensão entre objetividade e subjetividade do tempo.” (Santos; Oliveira, 2001, p. 53).

Acabamos por acreditar que Louis realmente existe e passou por todos aqueles acontecimentos descritos, tornando-se assim um vampiro humanizado com seus questionamentos e incertezas que relatará em sua biografia. Sobre esta questão, Jean Pouillon (1974) explica:

184 - Houve outras transformações. Não posso precisar a data nem a ordem. Ela não matava indiscriminadamente. [...] (RICE, 1992, p. 109)

185 - Não posso descrever o que aconteceu. Possivelmente não saberia contar. Lembro-me de ter lançado a lâmpada em Lestat. Ela se partiu a seus pés e as chamas subiram do tapete. [...] O que aconteceu depois não é muito claro. Acho que arranquei o ferro das mãos dela e dei uma estocada final na cabeça de Lestat. Lembro-me que ele pareceu irrefreável, invulnerável às estocadas. […] Lembro-me de ter tirado o casaco e batido com ele no fogo, ao ar livre, [...] (RICE, 1992, p. 159-160)

O indivíduo só é tomado pelo desejo de contar o seu passado quando este já está distante; quando esse passado ainda se encontra próximo e ainda não fez mas está fazendo o indivíduo, este talvez escreva um romance ou algum arrazoado: jamais uma autobiografia. (POUILLON, 1974, p. 39)

Mais uma vez a veracidade da obra está na questão temporal, se o que Louis contará está em seu passado, aceitamos os acontecimentos como verdadeiros. A veracidade da obra é instaurada para engodar o leitor e assim concluímos que Louis realmente passou pelos acontecimentos descritos.

[…] I was sitting on the stone steps beside a church, at one of those small side doors, carved into the stone, which was bolted and locked for the night. The rain had abated. Or so it seemed. And the street was dreary and quiet, though a man passed a long way off with a bright, black umbrella. […]186 (RICE, 2009, p. 303)

As impressões que temos dos relatos de Louis nos influenciam enquanto leitores. A imprecisão dos fatos, sua perspectiva, deixa-nos com a sensação da veracidade. “Mas a imaginação não intervém apenas na consciência do que fomos: ela atua igualmente na consciência imediata do eu. Com efeito, existir para si é existir pelo sentido atribuído a si mesmo; eu sou o que acredito ser; [...]” (POUILLON, 1974, p.41). Se eu sou o que acredito ser, posso também acreditar em seres fantásticos como vampiros e dar por verdadeiro seus relatos, sua saga, assim como acontece com o suposto jornalista.

Nós, enquanto humanos atestamos nosso passado, “[...] nos lembramos captando em alguma coisa que nos esteja sendo dada uma outra coisa que não nos é dada: a significação do passado.” (POUILLON, 1974, p. 40). E este passado só se caracteriza por estar longe da percepção, só conseguirei significar meu passado se eu tiver lucidez para relatar minhas memórias, porque como Jean Pouillon (1974) coloca, a própria consciência é a imaginação e não conseguimos dissociá-las. E é a partir de seu passado que Louis explorará seu futuro e dará novos rumos à sua vida imortal.

186 […] Estava sentado nos degraus de pedra de uma igreja, numa daquelas pontinhas laterais, esculpidas na pedra, fechada e trancada para a noite. A chuva havia diminuído. Ao menos me parecia. E a rua estava fantasmagórica e calma, apesar de um homen passar ao longe com um brilhante guarda-chuva preto. [...] (RICE, 1992, p. 301)

O romance de Rice pode ser explicado como um dos modelos que Jean Pouillon (1974) propõe:

[...] aqueles que, para ser compreendido, o desenvolvimento temporal de um ser carece de uma chave, que é a sua psicologia; [...] a chave abre, por assim dizer, todas as portas; assim para que ela funcione, não se faz necessária uma estrutura do tempo, de antemão determinada. (POUILLON, 1974, p. 149)

Podemos pensar que a chave é a própria psicologia de Louis, que abrirá a porta de sua história, no momento em que a conta, esta se abre e se dá a conhecer ao leitor.

Há então certa veracidade atribuída à obra de Rice e podemos afirmar que aceitamos o mundo desses vampiros humanizados, aceitamos fazer o pacto com estas criaturas enquanto leitores e desfrutamos do tempo psicológico apresentado na obra, mesmo este sendo impreciso.

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