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5 O CORPO EM MOVIMENTO: um olhar sobre a educação do corpo de

6.1 Corpo-saúde

6.1.3 Tempo e espaço do descanso

É prerrogativa da educação em período integral contemplar uma rotina diária que envolva diversos cuidados corporais, como a higiene e a alimentação, mencionados anteriormente. Outra atividade integrante dessa organização é o momento do descanso. As crianças, depois que terminam o almoço, realizam a higiene pessoal, retiram os calçados – que são colocados embaixo de uma mesinha que fica do lado de fora da sala. Juntamente com a professora, organizam o espaço espalhando colchonetes pelo chão, em seguida se acomodam aleatoriamente. Cobertas e travesseiros são trazidos de casa, por esse motivo nem todas as crianças os utilizam, pois algumas não os trazem. Durante o tempo de descanso, as crianças são convidadas a dormir.

Durante as observações, constatei que a maioria das crianças dorme. As que não dormem são orientadas a permanecerem deitadas e em silêncio. Algumas dessas crianças não conseguem ficar paradas e se mexem o tempo todo, rolam no colchonete, conversam sozinhas ou com o colega do lado, brincam com algum objeto que pegaram antes de deitar. Outras parecem se incomodar de tal forma que desobedecem à orientação dada e se levantam. Quando isso acontece, escutam-se pedidos constantes de ida ao banheiro ou ao bebedouro. Também é possível identificar que uma ou duas crianças mais audaciosas pedem para passar o momento do descanso fora de sala. A resposta imediata é de indeferimento, mas presenciamos alguns casos em que as crianças foram atendidas.

Apreende-se que dormir era uma atividade obrigatória para as crianças. Todas deveriam deitar no colchonete, fechar os olhos e permanecer em silêncio. As luzes da sala e dos corredores eram apagadas, as janelas de ferro cerradas e, às vezes, uma música relaxante era reproduzida pelo aparelho celular da professora que os acompanhava durante esse momento, tendo a duração de 40 a 50 minutos. As professoras monitoravam o tempo e mediavam todas as ações, advertindo as práticas

que destoavam dos preceitos organizacionais da rotina.

A propósito, restrições também são impostas aos adultos. Um episódio que me chamou atenção foi protagonizado por uma criança, sua professora e um educador social. Após reclamar com uma criança por não colaborar com o silêncio, a professora solicitou ajuda dos auxiliares que ficam nos corredores da escola. O episódio revela limites condicionantes a todos.

Episódio: Crianças deitadas, sala escurecida, corredores quietos, escola vista

da entrada, nada se parece com um ambiente ocupado por arroubos de vitalidade, até uma voz ecoar vigorosamente: “Não consigo dormir, estou sem sono. Queria brincar. Por que todos temos que dormir, mesmo sem vontade? Isso é meio chato, quando durmo tenho que acordar logo e quando não durmo tenho que ficar acordada e é sem graça” (Rússia, 8 anos. DIÁRIO DE CAMPO, 25/04/2018).

Assim foi o protesto da garota. Certamente, a professora não estava preparada para repreender essa verdade arrebatadora. Então, solicitou que a criança saísse de sala e chamou um ESV indagando: “O que podemos fazer? Não posso obrigá-la a dormir, mas também não posso deixá-la por aí. Você pode, por favor, sentar com ela no banquinho do pátio, até a hora da aula?” (PROFESSORA “A”. DIÁRIO DE CAMPO, 25/04/2018).

Isto posto, o que se percebe é que tanto para o adulto quanto para as crianças esse momento é de muita angústia e tensão. O adulto precisa criar condições favoráveis para as crianças que querem dormir, mas, para isso, precisa silenciar aqueles que não querem, ou seja, a condição para o sono de alguns é o silêncio e a imobilidade de outros.

Neste sentido, Batista (1998) nos convida a refletir sobre a condição de trabalho dos adultos nesses espaços. Segunda a autora, não há alternativas atraentes que garantam igualmente condições adequadas para aqueles que necessitam dormir e para aqueles que não sentem sono. Em pesquisa realizada em uma creche da rede municipal de Florianópolis, a autora identificou a hora do descanso como um cuidado corporal obrigatório.

Todos têm que descansar na mesma hora. O que se verifica é que nem todas as crianças têm a mesma necessidade. Muitas delas demonstram que gostariam de ficar brincando, olhando um livro, conversando. No entanto, para a creche, o descanso está vinculado ao dormir. As crianças que não dormiam não estão descansando. Outro fato que merece uma reflexão é o de que neste momento o barulho e o movimento representam uma ameaça para o sono daqueles que precisam dormir. Todas as crianças na creche estão

descansando neste momento. O barulho do 1º período pode colocar em risco o sono das crianças do berçário, do 2º período e das outras turmas (BATISTA, 1998, p. 128).

A autora detectou que nessa tentativa de uniformizar a natureza fisiológica do corpo das crianças, os adultos se encontram numa posição de carrascos diante das crianças que não dormem, uma vez que passam parte do tempo advertindo-as no sentido de conter “o movimento, o gesto, a fala, o desejo, o barulho, o riso” (BATISTA, 1998, p. 128). Dessa forma, problemáticas relacionadas ao espaço físico disponível, por exemplo, são identificadas. Efetivamente, não há muitas opções, uma vez que os limites espaciais e os recursos humanos são restritivos. Outros espaços, como o pátio, o parque e as áreas externas não podem ser utilizados, pois fugiria à ordem deliberada por diretrizes oficiais. Toda a escola se condiciona para um corpo-sono. Qualquer movimento ou barulho nessa hora colocaria em risco a rotina estabelecida e, de certa forma, naturalizada.

Essa fragilidade supõe que as crianças tenham um comportamento único ou sua total adequação de tal forma que ficam impossibilitadas de agir. Elas se veem aprisionadas pelas paredes da sala. O corpo sobrevive à espera, contemplando em silêncio, imagens e fantasias desenhadas em sua mente:

A hora do descanso é chata porque tem que dormir mesmo sem querer, e se não dormir tenho que ficar quieta. Não faço nada, mas penso na minha mãe, fazendo carinho e isso me deixa feliz. (FILIPA, 8 anos. DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

No momento do descanso até que durmo vários dias. E quando não durmo brinco com os dedos e com as mãos imitando as vozes de personagens de bebês, de mulher grande e de homem. Também fico imaginando coisas, exemplo, conhecer o unicórnio e desenhos. (PEPPA-PIG, 8 anos. DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

Sempre durmo. E quando não durmo fico quieta, pensando nos amigos e nas brincadeiras que brincam. (UVA, 10 anos. DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

Quando não durmo fico brincando, pego o casaco e fico falando sozinha, como se estivesse falando com minha boneca. (POLLYANA, 8 anos. DIÁRIO DE CAMPO, 2018). Não gosto muito da hora do descanso. Não gosto de dormir. Pego um brinquedo escondido (boneco chamado Flash) e fico brincando. Ou brinco de boneco, com as mãos – faz de suas mãos bonecos que ficam lutando. (HARTUR, 8 anos. DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

Nesse momento, em que o espaço de ação fica limitado quase que somente ao seu colchonete, elas buscam diferentes formas de se expressar. Todavia, o dinamismo e a vitalidade corporal e gestual encontram-se inibidos pela cultura da

ordem organizacional, pela cultura do silêncio, da obediência à rotina e, por que não arriscar a dizer que essas imposições contribuem para o desaparecimento da subjetividade humana, assim resumindo as experiências corporais das crianças apenas a princípios biofisiológicos.

Com base nesses argumentos, é possível verificar que o corpo-saúde é entendido como uma unidade paradoxalmente material e transcendente, uma vez que o alcance das ações empreendidas não se situa apenas em resultados orgânicos, visualizamos implicações com roteiros históricos e culturais. É também um resultado sempre provisório de diversos discursos, pois é sempre atravessado por um poder regulador que o ajusta em seus menores detalhes, impondo limitações, autorizações e obrigações, que vão além de sua condição fisiológica.